Tempos de pandemia

Ao passar pelo alpendre, encontro a rede. Meu marido deixou-a pendurada nos ganchos, pronta para uso. Espicho-me, acomodo as pernas, os braços, o corpo.

As cocotas grasnam na árvore dos fundos, a grande figueira cujos galhos cobrem quase meio quintal. Os sons que emitem me chamam a atenção, logo que me estendo. Depois de um tempo, o escarcéu diminui. Gostaria de tirar uma soneca, como me acontece às vezes nas horas modorrentas de calor. Pensamentos difusos me impedem de adormecer. Estou acordada quando meu marido aparece na porta e me alcança o celular.

Em março, depois de encerrado o veraneio, chegamos à nossa antiga casa no balneário. Viemos premidos pelas circunstâncias: um vírus invisível se espalha por países e cidades, levando as pessoas ao isolamento social. À beira da lagoa, podemos desfrutar da natureza, respirar melhor em ambientes abertos. Meu marido abraçou o trabalho em casa, enquanto reserva um tempo para cuidar das plantas. Sente-se revigorado. Aposentada, circulo entre as lides domésticas e as atividades culturais. Agora, vivemos muito através da Internet.

Os primeiros dias são de plena fruição. Gosto de caminhar pela avenida, vazia se não fossem algumas bicicletas e carros esparsos. De vez em quando, saímos a pedalar, vamos dar uma espiada na lagoa. Ou giramos pelo balneário. Nessa temporada, curtimos bastante o pátio, assim como o jardim.

Pelo menos uma vez por semana, um de nós (ou ambos) vai ao centro para abrir o apartamento, molhar as plantas, fazer algum pagamento ou alguma compra. À noite, vemos filmes, séries, entrevistas. Acompanhamos as notícias, o aumento exponencial do vírus na Itália, Espanha, França. Se o aparente controle da doença na China dá um ânimo, logo a contaminação se torna grave em outros países, como os Estados Unidos. E em pouco tempo a pandemia se espalha pelo Brasil.

Em fins de abril, aproveito um dia mais ameno para visitar a cidade. Abandono o paraíso verde e deparo-me com ruas quase desertas, pessoas rápidas e esquivas, usando máscaras. Um estranho esvaziamento domina os lugares que eu costumava frequentar. Não deixo de ficar contente com isso, concluo que as pessoas estão respeitando regras de distanciamento social.

Dou as minhas voltas pela manhã. Depois de um banho demorado, que serve não só para relaxar, como para descontaminar, almoço uma refeição que peço ao restaurante da esquina. Antes de voltar ao balneário, desfruto do apartamento, onde tenho os meus livros, a maioria das minhas coisas.

Ajeito-me no sofá para acompanhar as notícias televisivas. Notícias graves, de propagação da pandemia. Notícias de um governo que, nessa altura, tenta convencer o povo de que é importante retornar ao trabalho, fazer a economia andar. Enquanto isso, muitos brasileiros perecem.

Pouco depois das duas horas, toca o telefone. Não o celular, que usamos na praia, pois lá não dispomos de telefone fixo. Levanto-me para atender e, como o aparelho se encontra longe, corro para chegar a tempo. Uma voz me pergunta:

– A senhora, por acaso, perdeu o seu cartão de crédito, ou o emprestou a alguém?

Nego, em estado de alerta. Ela continua:

– Aqui é do Centro de Monitoramento de Compras. Constatamos que acabam de fazer uma compra com seu cartão no supermercado X, de Porto Alegre.

Peço detalhes. Ela apenas me adianta:

– Foi uma compra no valor de 900,00 reais. Não foi a senhora que fez?

Começo a me exasperar.

– A que horas foi feita essa compra?

– Há cerca de uma hora.

– Impossível que eu estivesse em Porto Alegre há uma hora, estou a quase 300 km daí.

– Aconselho que a senhora bloqueie o seu cartão. É só ligar para o número que está no verso do cartão.

– Certamente, obrigada.

Penso em telefonar para a minha agência. Lembro-me de que a expansão do coronavírus impõe uma série de dificuldades, poucos funcionários no local, muitos operando em casa, grandes filas em busca de atendimento. Após colocar o fone no gancho, vou em busca do meu cartão. De um dos meus cartões, para ser mais exata. Disco o número registrado no verso. Rapidamente, sou atendida. Ouço a musiquinha que me é familiar, digito o número correspondente à clonagem de cartão. A funcionária promete solucionar o caso, sem necessidade de ir à agência. E começa a me dar as instruções.

– Preciso que a senhora digite as suas senhas, para que eu possa trocá-las. Pode digitar no teclado do telefone, não vou tomar conhecimento delas.

Lembro-me do corolário: nunca entregue as suas senhas! Digo a mim mesma que estou tratando com o meu banco e, como nele tenho confiança, sigo em frente. Acredito que essa operação constitua o caminho inevitável para resolver o problema das compras indevidas, efetuadas com o meu cartão de crédito.

Quero dar o assunto por encerrado, concluir essa ligação que se arrasta, mas a atendente não tem pressa. A voz escorre ao longo de um tempo, para mim, infindável. Depois de pormenores e protocolos, ela pede que coloque os meus cartões em um envelope, um funcionário do banco virá buscá-los. Algo me diz que ela passou dos limites. Enviar os meus cartões? Até aí, cumpri todas as instruções, mas entregar os meus cartões, depois de ter liberado as senhas, me sacode por dentro.

A voz tem resposta para tudo:

– Não se preocupe, os cartões vão ser inutilizados. Preciso dos chips para fazer a perícia. Se quiser, pode cortar os seus cartões ao meio.

Mais tarde, meu marido me liga, querendo saber se estou retornando. Resumo rapidamente o acontecido, percebo que ele fica apreensivo.

– Conversamos quando eu chegar. Já estou saindo.

Tomo o caminho da praia. Para minha sorte, não tem muito movimento, avanço rumo à nossa casa à beira da lagoa.

– É melhor falares imediatamente com o teu gerente. Tens o contato?

– Vou procurar no Whatsapp. Ele está trabalhando em casa.

– Faz isso logo. O melhor seria ligar direto.

Deixo um recado, peço que retorne com urgência. À tardinha, o expediente já deve ter acabado, espero que não me deixe na mão. Estou cansada. Trato de me aconchegar na rede, protegendo-me de um ventinho maroto. Penso que, se nossa saúde for preservada, como está sendo até agora, estaremos no lucro. Um toque interrompe os meus pensamentos. Meu marido aparece e me alcança o celular.

Equilibro-me na rede. Tento não ouvir o grasnar das caturritas na árvore dos fundos.

– Aqui é o Mauro, seu gerente. A senhora por acaso teve hoje algum problema com a sua conta?

– Sim, tive. Por isso enviei a mensagem. Fui avisada no início da tarde que clonaram o meu cartão, fizeram compras num supermercado de Porto Alegre.

Ele me responde em poucos segundos, que me parecem muitos.

– Não compraram em Porto Alegre, não. A senhora caiu em um golpe!

Um hiato para eu decodificar aquela fala. Então, faz-se um vácuo no meu mundo: não era à toa que eu estava sentindo um aperto no peito. Tento retrucar:

– Mas eu disquei o número impresso no verso do cartão. O banco me atendeu.

– Eles interceptaram a sua ligação, a senhora tratou todo o tempo com estelionatários.

A revelação me deixa muda. O gerente me explica que, na hora de encerrar o expediente, descobriu várias operações que fugiam ao meu perfil. Decidiu bloquear os meus cartões, para evitar novas transações possivelmente fraudulentas. Quando eu lhe mandei a mensagem, suas suspeitas se confirmaram. Efetivamente, era golpe!

Esforço-me para deglutir as suas palavras. Ele termina por me pedir que vá na manhã seguinte ao banco, a fim de trocar as senhas.

No outro dia, tomo conhecimento dos estragos causados pelos meliantes: despesas em supermercados, adiantamento do décimo terceiro salário, empréstimos…Durante um tempo que não sei mensurar – semanas, meses – uma espécie de letargia me domina, como se eu estivesse boiando no vazio. Paulatinamente, muito paulatinamente, retorno à vida. Chego à conclusão de que, apesar dos enormes prejuízos materiais, não perdi o essencial.