PRESSÁGIO

Quando eu era menino havia um personagem de histórias em quadrinho que chamou a minha atenção bem antes de aprender a ler. O Fantasma, aquele ser quase mitológico que habitava a caverna da caveira num ponto imaginário qualquer das florestas africanas, que era amigo dos pigmeus de Bandar, e usava um anel de que deixava a imagem de caveira tatuada na cara dos bandidos.

Naquele tempo mocinho enchia os bandidos de murros e tabefes, ilustrados com o balão escrito POW! (Só muito mais tarde foi que eu tomei conhecimento que significa a onomatopeia, em inglês, para as porradas, tabefes e socos BOING, KA-POW ou POW!).

Apesar da indumentária imprópria para a época esse personagem foi marcante na vida de muitas crianças, mas o que mais atraia a minha atenção era a capacidade de Capeto – misto de lobo feroz com cão dócil – de sempre aparecer para auxiliar ao Fantasma nos momentos mais abracadabrantes da história.

Tanto isso é verdade que a partir daí quase sempre tive um cão chamado Capeto, na esperança de que fosse tão esperto quanto o das revistas.

Meu Capeto atual é um SRD (vira lata, em bom Português) de pelo negro e curto, como todo Capeto deve ser, tranquilo, inteligente e esperto, principalmente para esconder-se quando vê os preparativos nos dias de banho. Late ferozmente para qualquer coisa estranha que se aproxime, principalmente à noite, mas capaz também de quase se desmanchar para demonstrar alegria por qualquer um que lhe faça um agrado.

Sexta-feira passada fui tomar umas cervejas com os colegas do escritório e o acúmulo de saideiras me fizeram voltar para casa já no meio da madrugada. Guardei o carro na garagem e ao fechar o portão notei que a bruma e um silêncio tridimensional envolviam o bairro naquele clima de mistério das horas mortas, como os antigos se referiam às horas que antecedem o alvorecer de um novo dia.

Todos dormiam, menos dona Candinha, mãe da minha sogra que veio passar uns dias conosco.

Sob a luz mortiça da lamparina em frente ao santuário, a velha senhora estava ajoelhada no chão e sobre a cama, um livro de orações bastante usado.

– Algum problema? – Perguntei.

- Não. Estou pedindo proteção para a nossa família pois coisas ruins estão para acontecer.

- Verdade? E que coisas são essas?

- Não sabemos. São os mistérios do universo que estão muito além da nossa compreensão.

- Mas o que foi que fez a senhora se preocupar a ponto de ficar acordada até essa hora?

- Capeto deu o sinal.

- Capeto? Ele falou com a senhora? (Imaginei que dona Candinha estava variando das ideias).

- Não. Claro que não. Os bichos não falam, mas sentem quando algo vai acontecer. Eles são criaturas puras que Nosso Senhor colocou perto de nós para nos auxiliar na caminhada da vida.

- Mas o que foi que aconteceu.

- Desde cedo, ele não quis comer a ração e não para de uivar. Ele e outros cachorros da redondeza.

Quando dona Candinha disse isso, lembrei-me de que achei estranho tanto o silêncio do bairro quanto os uivos que ouvi e que enquanto estava guardando o carro Capeto apareceu, mas não fez a costumeira recepção.

- E cachorro uivando quer dizer que algo vai acontecer? Não é por estarem sós e querendo companhia que eles se comunicam?

- Não. Cachorro não uiva, cachorro late. Quando eles estão uivando é porque o anjo da morte está por perto. Tem muita gente doente com essa doença nova e hoje mesmo aconteceu um desastre com um vizinho aqui na rua. Aquele senhor que mora no prédio da esquina e que sai todo dia para passear com o cachorrinho dele caiu no buraco que se abriu na última chuva. Foi preciso chamar os bombeiros para fazerem o resgate. Ele foi levado para o hospital, precisou ser operado e dizem que está muito mal na uti...

- Mas a senhora não precisa se preocupar, nós estamos todos bem...

- Meu finado Alonso estava muito bem, chegou em casa na hora da ceia, foi tratar da burra que passou o dia todo trabalhando com ele. Não se sabe o que fez com que ela desse o coice que matou ele na hora. Os cachorros do engenho tinham passado a noite anterior uivando feito doidos. Vá dormir. Eu vou continuar rezando, porque já vi acontecer muita desgraça anunciada pelos animais agoureiros da noite...

GLOSSÁRIO

Fantasma – personagem criado pelo escritor Lee Falk.