FIM DE SEMANA

- ALBERTO VASCONCELOS

Deixei paletó e gravata no assento traseiro do carro e entrei no Bar Sopra Dois do velho Altino Remígio. Gotardo, Ildefonso e Aníbal já estavam com a torre de cerveja quase no fim. Lourinaldo, garçom amigo, companheiro de grandes noitadas, fiel e discreto como mordomo inglês do século XIX, chegou-se à mesa para anotar o meu pedido:

- O de sempre, major? (Major é o tratamento que ele dá a todos os clientes homens. Quando se dirige às mulheres as chama de Princesa)

- Não, milorde. Hoje eu quero a torre daquela cerveja artesanal que vocês preparam.

- Uma bela pedida, Major. Vou providenciar imediatamente.

- O pai do Gotardo vai fazer um churrasco no sítio dele e quer a nossa presença para nos conhecer. Acho que é para confirmar as mentiras que este impiastro inventa a nosso respeito. Disse Aníbal às gargalhadas.

Lourinaldo chegou com a torre e solenemente anunciou que era com os cumprimentos do Sr. Altino Remígio que, em breve, viria pessoalmente nos cumprimentar.

Sobre a mesa já estavam fatias de presunto de Parma, mortadela defumada, diversos queijos da Canastra, azeitonas de Málaga e azeite Batalha para acompanhar o pão integral, pesadão, escuro de aroma envolvente, exclusividade da casa dos Remígio, cuja receita era guardada a sete chaves por muitas gerações da família.

- Estes acompanhamentos são para vinho, não são para cerveja, mas gente sem classe não sabe distinguir as coisas nem escuta quem sabe, falou Gotardo com visível indignação, mostrando a todos nós a caneca de porcelana portuguesa, mas ninguém deu a mínima importância à sua demonstração de finesse.

Como se falasse a mim mesmo, comentei com os colegas:

– Não consegui fechar as contas de Mercadorias e de Devedores. Há diferença significativa entre os inventários, as notas e os boletos, mas deixei para conciliar na segunda-feira quando voltarmos com a cabeça aliviada pelo fim de semana.

- Deve ser nota fria para sonegar imposto. (Comentou Ildefonso, encarregado da expedição no armazém dos Alvarenga & Associados, nossos patrões.)

Acima do som da radiola de ficha, uma Jukerbox 1930, todos puderam ouvir a voz feminina dizer:

- Pare com isso ou vou pedir socorro. Sua importunação já ultrapassou todos os limites...

Todos os presentes olharam para aquele casal de aparência comum, sentado na mesa de canto. Lourinaldo dirigiu-se rapidamente para junto da moça e, com a solenidade de sempre, perguntou:

- Qual é o problema, princesa?

- CLÉA MAGNANI

Aquele casal já era conhecido de Lourinaldo. Começaram a frequentar o Bar Sopra Dois meses atrás. Quase todos os sábados eles chegavam separados, encontravam-se no balcão e depois de tomarem um drink dirigiam-se para a mesma mesa, ou caso de que já estivesse ocupada, procuravam outra, no lugar mais discreto possível, onde conversavam em voz muito baixa, como a trocarem informações secretas, ou confabularem sobre algo suspeito. Comiam alguns petiscos, acompanhados de vinho, ou cerveja, mas nunca da famosa artesanal, que era mais cara. Apresentavam alguns papéis, trocavam dados nos laptops ou nos celulares, e depois comiam o prato da casa servido pelo finíssimo Lourinaldo que, curioso, virava e mexia e se aproximava solícito, para ver se conseguiria “pescar” alguma frase ou olhares, que indicassem que ali estaria nascendo algum romance talvez. Mas nunca conseguiu passar do seu atendimento profissional, perguntando se tudo estava a contento, se desejavam mais alguma coisa, e nunca chegou a nenhuma conclusão. Não formavam um casal que chamasse atenção em nenhum detalhe. Ela, bonita, muito bem maquiada, discretamente vestida, de idade indecifrável, sempre trazia uma grande bolsa onde guardava seu mini note book, que deixava dependurada no espaldar da cadeira vazia sob suas vistas. Ele demonstrava ser um pouco mais jovem do que ela, e as conversas antes da refeição, pareciam ser sobre negócios. Após a sobremesa, invariavelmente um pudim para ele e uma taça de sorvete para ela, a música da antiga Jukerbox, parecia convidar a algum clima mais romântico, porém nunca passou de olhares distantes, palavras sussurradas, não se sabia bem se por causa da música, ou para que ninguém ouvisse do que se tratava. Como já estivessem se tornando conhecidos ali pela discrição do casal, a atitude dela naquela noite, e as palavras, quase um pedido de socorro, contra um acompanhante que parecia conhecido dela, escandalizou a todos. Do que se trataria? Lourinaldo, solicito, mais interessado em saber do que se tratava do que em resolver o problema, não obteve nenhuma pista a respeito, a não ser o estado do rapaz, que parecia haver bebido um pouco demais naquela noite. Recompondo-se imediatamente, ela pediu desculpas e disse que estava falando sobre um assunto, e elevado um pouco a voz no momento em que a música terminava. Sorriu para disfarçar e garantindo que estava tudo bem, pediu uma água gelada, com gás.

- ARISTEU FATAL

Gotardo, Ildefonso, Aníbal e eu somos colegas de trabalho na empresa situada aqui em nossa cidade. Trata-se de um armazém de relativo porte, principal empregadora da maioria dos habitantes daqui. Sou gerente geral e financeiro com mais de 30 anos de serviço.

De um certo tempo para cá a diretoria da empresa vem me informando certos de problemas acontecendo, como a falta de materiais, descontrole de preços em notas fiscais, enfim, estão desconfiados de irregularidades constantes nos setores de compras e vendas. Já contrataram uma empresa de São Paulo para realização de auditoria geral no armazém, muito famosa Albuquerque & Marcondes Auditores Associados. Precisava manter sigilo total sobre esse assunto. Já fui apresentado a dois funcionários que vieram para nossa cidade, estão hospedados no Hotel Guarani, vizinho do Bar Sopra Dois.

Então propus:

- Bom, então amanhã vamos ao churrasco no sítio do pai do Gotardo. Eu ofereço para irmos com meu carro.

E Gotardo acrescentou:

- Eu vou com meu pai. Vou ajudá-lo a levar todo material, carnes, bebidas, e outras coisas. Vamos ainda hoje, e dormir lá.

- Estou preocupado com as coisas lá do armazém. Pelo menos dou uma desanuviada! (Acrescentei).

Tudo combinado, pediram a conta para o Lourinaldo, pagaram e, inclusive se despediram do casal, pois, após a moça se desculpar pelo seu grito, as coisas se acomodaram, não havendo mais um clima de mal-estar.

O churrasco se deu no melhor ambiente. O pai do Gotardo um senhor dos seus 80 anos, viúvo, bem saudável, muito animado, com bom humor, só mesmo queria conhecer os colegas dos filhos.

Quanto ao casal, de fato eles estavam mesmo trabalhando há meses no caso do armazém. As discussões, os cochichos entre os dois eram inerentes ao trabalho que executavam. Ela solteirona, muito competente em seu mister, preferiu não casar para melhor se dedicar ao trabalho. Ele, filho de uma irmã dela, também muito aplicado em sua profissão, completava uma dupla de auditores da mais alta qualidade. Após mais de meses de contínua verificação de toda a papelada do armazém, apresentaram um extenso relatório, concluindo pela existência de inúmeras irregularidades, e até práticas delituosas dos quatro amigos. Foram todos demitidos por justa causa, sem direito a qualquer tipo de indenização.