O MISTÉRIO

- Cléa Magnani

Naquela casa enorme, onde viveram a vida toda com seus velhos pais e os oito irmãos, Hortência e Margarida, a quarta e a sétima filhas de Leôncio e Prisciliana, viviam agora, já com 50 e 60 anos de idade.

Os irmãos mais velhos casaram-se. Uns moravam na mesma cidade, e outros até fora do país. Leonardo, o oitavo irmão formara-se padre, e morava num Seminário no Rio de Janeiro. Pouco se comunicavam, devido às atividades dele em comunidades carentes. E depois da morte de seus pais, as duas irmãs, solteiras, ficaram no casarão no interior de Goiás, onde a vida parecia ter parado no mormaço dos dias quentes. Eram quase duas estranhas na casa. Servidas por duas empregadas criadas pelos seus pais desde crianças, e por um caseiro que cuidava da parte externa da casa, nada tinham a fazer, senão assistir o tempo se escoar através da repetição eterna do Amanhecer e do Anoitecer... Liam muito. Hortência gostava de bordar. Margarida, a mais velha, escrevia muito, não se sabia o que em pilhas de cadernos que guardava, trancados, num baú em seu quarto. Certa vez Hortênsia lhe perguntou sobre o que tanto ela escrevia, e muito irritada, Margarida respondeu:

- São coisas minhas, que não interessam a ninguém!

Depois disso, Hortência nunca mais lhe perguntou nada, apesar de sua curiosidade haver aumentado muito. Esperava que algum dia em que a irmã saísse, o que era raríssimo, ela pudesse descobrir o que havia naquele baú.

E a oportunidade esperada parecia haver chegado.

Em finais de junho, na cidade de Trindade, haveria a tradicional Romaria de Trindade, em homenagem ao Divino Pai Eterno, quando as cerimônias de uma semana, terminam na primeira semana de julho. E Leonardo viria para participar da Romaria.

Margarida ficou muito animada para participar da Romaria ao lado do irmão Padre.

Hortência, prevendo o momento único, de poder saber o que queria, fingiu estar muito feliz com saída dos três irmãos, e até comprou vestidos novos para a viagem e para os dias em que estariam em Trindade. Fizeram reservas numa pensão já conhecida, para a semana toda, e tudo estava preparado para partirem no dia seguinte da chegada de Leonardo.

Porém na manhã da partida, Hortência ao se levantar, caiu fragorosamente em seu quarto, assustando seus irmãos com o barulho da queda e os gritos que dava. Socorrida, disse ter sentido uma forte tontura, e torcido o pé ao cair, o que a impediria de se movimentar e logicamente ir aos festejos de Trindade, acompanhar procissão e participar da romaria.

Negou-se a ir ao médico, preferindo confiar num emplastro de erva Rubi cozida com sal, que Socorro, uma das empregadas sabia fazer muito bem. Lamentou muito por não poder acompanha-los na viagem e pediu que rogassem ao Pai Eterno por ela, disse enxugando uma lágrima...

- ARISTEU FATAL

Não colou, efetivamente não colou!

Margarida logo notou a falsidade do drama inventado por Hortência, para não ir ao evento religioso em Trindade.

- Olha aqui, mocinha, você pensa que eu sou tão inocente assim, para não desconfiar de suas intenções? Você ultrapassou os limites de confiabilidade. Antes de irmos para a estrada de Trindade, vou passar na delegacia de polícia. Tirei fotos do baú, farei uma queixa de tentativa de violação de coisa alheia, e na volta de minha viagem se houver constatação de que ele foi arrombado, abrirei um processo contra sua pessoa. Pode esperar!

Diante de toda essa revolta, Hortência acabou por se desculpar, sua mala já estava pronta, e foi com os irmãos. Pensou, não vou conseguir nem ver os escritos proibidos, e nem participar da Romaria do Espírito Santo!

Margarida, na realidade, teve uma passagem demais dolorosa em sua vida. Quando tinha 20 anos, vaidosa, foi uma moça muito bonita, sempre bem vestida, loira esbelta, que atraia a atenção do público masculino. Nos bailes, festas, era a mais requisitada pelos rapazes da cidade. Chegou a ser miss do Automóvel Clube!

Um certo dia, necessitando de um conserto numa de suas bolsas, dirigiu-se a uma oficina especializada em serviços dessa natureza, que sabia existir na cidade, mas nunca havia necessitado fazer uso dela. Foi atendida por um rapaz muito simpático, educado, prestativo, que elogiou a marca da bolsa, como uma das mais caras e famosas existentes no mundo da moda. E ele tinha uma característica, falava um português meio arrastado, demonstrando não ser brasileiro. Todavia, ela simpatizou-se com ele, e a recíproca foi verdadeira. Ficou de voltar daí uns cinco dias.

Indo para sua casa, pensou muito no moço, estranhando um estrangeiro estar morando, pelo menos ela assim pensava, num lugar tão afastado dos grandes centros do país. Mas, enfim, ela ficou impressionada com o “estrangeiro”.

Passados os cincos dias, Margarida voltou ao estabelecimento. Atendida, após retirar a bolsa consertada, Giacomo, como ele se apresentou, iniciou um diálogo, perguntando seu nome, se morava na cidade, querendo ter uma maior aproximação com ela. E foi correspondido, acabando por marcarem um encontro, naquele dia, numa sorveteria. Assim começou um namoro. Tudo muito escondido, não querendo que a família soubesse, principalmente por ser ele desconhecido, e, ainda mais, um italiano, como se declarou.

E o romance se tornou uma paixão séria.

- ALBERTO VASCONCELOS

Alguns rapazes que se encontravam na praça em frente à igreja, aonde Margarida e Giacomo foram passear depois da sorveteria, repetiam em voz nem tanto baixa, a quadrinha originada com o início da imigração italiana para o Brasil. “Carcamano pé de chumbo/ calcanhar de frigideira/ quem te deu a audácia/ de casar com brasileira? ”

Talvez por não entender direito o que falavam ou por estar embevecido pela presença de Margarida, Giacomo jamais reagiu às provocações. Ele sabia que havia animosidade por conta da guerra que se desenvolvia no velho continente e foi exatamente por isso que os encontros tiveram que ser interrompidos quando chegou a convocação para ele se apresentar ao consulado italiano e voltar para a Europa. Na despedida, sem alarde ou cenas dramáticas, prometeu à Margarida que voltaria para casar-se com ela. Que a manteria informada através de cartas que enviaria para o seu tio Pietro Berdi dono da oficina de artefatos de couro. As correspondências, com muitos meses de atraso e cada vez mais esparsas, traziam o carimbo da censura do governo federal estampado no envelope e no papel da carta. A última recebida dava conta de que Giacomo havia sido ferido em combate e que estava internado num hospital na Suíça com gangrena nas duas pernas atingidas pelos estilhaços de granada. O desespero tomou conta de Margarida que, em prantos, finalmente falou aos pais sobre o seu relacionamento com o rapaz que voltara para a Itália para participar da guerra estúpida provocada por velhos covardes que se conhecem, se odeiam e que mandam para a morte jovens patriotas e idealistas que não se conhecem nem se odeiam. Os dias se transformaram em semanas, meses, anos e mais nenhuma outra notícia sobre o paradeiro do soldado. No ano seguinte ao fim da guerra, o tio Pietro recebeu o comunicado dos parentes que se recusaram a deixar a velha aldeia em Copparo de que Giacomo havia falecido. Margarida ao ser notificada, colocou luto por mais de ano e, apesar dos insistentes apelos dos pais e irmãos, procurou isolar-se de tudo e de todos. Na solidão do quarto, dando tratos ao romantismo da adolescência, escrevia diariamente uma poesia para seu amado. Depois crônicas do dia-a-dia imaginando como seria o trato com os muitos filhos que haveriam de ter, como cada um desses filhos se colocaria na existência adulta, cartas amorosas para os filhos internados em colégios na capital, comentando situações imaginadas com base nas próprias traquinagens da sua vida escolar. Aquele amor surgido de repente e que teve convívio breve, foi capaz de criar a imagem quase física do rapaz presente todo tempo em sua imaginação de como seriam as carícias dos momentos mais íntimos do casal. Certa de que os seus escritos jamais seriam lidos por quem quer que fosse, enquanto estivesse viva, deixou fluir a imaginação em relatos de ações de dar inveja aos ensinamentos do Kama Sutra indiano. Findas as festividades em Trindade, voltaram para casa e para suas rotinas...