OS SAPATOS DO VEREADOR

Lembro que era outono e fazia frio.

A cidade de pouco mais de dois mil habitantes estava em sua quietude observando o comportamento dos moradores mais assinalados no que se refere à corrida atrás de um rabo de saia.

As mães de família em sua suave armadura, típica de quem sabe o que o marido faz, mas, finge não saber para manter a moral e os bons costumes das pessoas de bem, tinham em suas faces maldosas, exatamente, o que de fato era o ar das suas conversas sobre o comportamento dos homens casados que faziam parte do clã social, ou, daqueles que eram chamados de os mais abastados de bens materiais.

Nesse tempo, mulher era um ser sem nenhum direito perante a lei, que em favor delas estava longe de ser criada, nascida, ou, vinda a furo da maior reportagem que algum jornalista que ousasse defendê-las.

Eram sofridas, tinham o semblante abatido, volta e meia eram agredidas fisicamente pelos seus maridos, quero dizer por aqueles maridos que se achavam no direito de ter mais de uma mulher para dizerem que eram suas.

Contudo, esse relato mais que fictício, e, um tanto querendo ser real quando penso que falar de três sujeitos que tomavam conta de uma das moças da casa noturna, mas, que cada qual queria, ou, se fazia ser o único, ainda que houvesse titular valentão, que de fato, mantinha a galega, e, sequer, sonhava sobre a existência dos outros dois, que também ciscavam no mesmo galinheiro.

Todos na cidade tinham medo do Tião. Diziam que ele já havia matado alguns lá pelas bandas do litoral, fugiu e depois, tornou-se fazendeiro, decerto adquiriu as terras com dinheiro sujo. Nessa localidade, a falácia sobre o dito matador de aluguel era feita aos cochichos, ninguém se garantia, porque o tal Tião, não era flor que se cheirasse. Pelo sim, pelo não, melhor não abusar da reputação do sujeito, de maneira que, quando ele chegava na roda de conversa, todos piavam e o assunto em pauta ficava somente nos olhares. A maioria conhecia pelo tinir das esporas, quem era o chegante da vez. Apeava do burro e já ia tomando pé dos últimos acontecimentos, botando ordem na situação, fazendo com que o grupo se dispersasse.

Era um tempo sem mídia, somente alguns tinham um rádio de mesa da marca SEMP, disputado o tempo inteiro por aqueles que não o tinha e queria saber de alguma novidade sobre a cidade grande.

A galega era cheia dos truques, adoçava os três. Um deles era o vereador da vila, que ia sacudindo o bucho sob as calças de alfaiataria muito bem cortadas, cuja cintura marcava bem acima do umbigo, camisa bem esticada pelo ferro que a empregada da casa deixava lisinha, para que essa retornasse como se estivesse sido mastigada por uma vaca.

O nanico também se achava o gostosão, pelo fato de ter um salário de vereador. As moçoilas do baixo bairro lhe davam o maior mole, mas, ele gostava mesmo era do perigo e sua libido se renovava, a cada vez que avistava a galega do Tião.

Antro da perdição, como era chamado o lugar, onde nenhuma moça donzela, ou, casada podia passar. Era proibida a presença de qualquer jovem menor de idade, ainda que, muitos por lá andassem na calada noite, levados pelo pai, ao seu primeiro deleite.

Contavam as boas línguas, que o próprio Tião levou o filho de quatorze anos, e pediu para que a cafetina arrumasse alguém interessante para lhe tirar a virgindade, mas o menino ficou tão amedrontado que não deu conta de nada. Saiu de lá apavorado e como o pai estava com a galega, o moleque montou no seu cavalo e se mandou à galope, chorando porque a lombriguinha envergonhada não deu o ar da graça e ele morria de medo de que o pai ficasse sabendo.

Sobre o nanico gordo, posso dizer que ele se dava ao desfrute de atravessar a rua enrolado na toalha para ir se banhar no riacho, a qualquer hora do dia, ou, à boca da noite.

O outro sócio, era o mais frouxo deles, mas, ainda assim, comia do mesmo banquete do valentão e do vereador.

Esse segredo cabeludíssimo, posso dizer que eu tinha nas mãos, que coçavam com o desejo de passá-lo adiante, porém, meu medo era maior que a coragem. O pensamento de bater com a língua dos dentes se dissipava, tão logo, um arrepio passava por minha espinha... não podia de jeito nenhum, cometer esse desatino, pois, era bem capaz de anoitecer e não amanhecer vivo para repetir a fofoca.

Hoje, posso aqui detalhar cada minúcia desse episódio, porque todos eles já estão morando na cidade dos pés juntos.

A tal moça bem cuidada pelos três, era sardenta de olhos tão azuis que mal enxergava na claridade do dia.

Nessa tarde fria, que de tão fria, ninguém ousava sair à rua a não ser pela necessidade de comprar alguma coisa, não pude deixar de registrar a conversa do nanico com um dos fofoqueiros de plantão, à porta da casa de pães.

Nossa casa ficava aos fundos da padaria da Dona Florzinha. O cheirinho de pão quente exalava do forno que ficava próximo à cozinha de casa. Mamãe me mandou buscar pão, enquanto ele fazia seu chá especial de amendoim. Fui correndo.

O vento uivava ladeira abaixo ao ponto de doer meus ossos.

Virando a esquina, eis que esbarrei em três moças que também se dirigiam à padaria. Reparei que eram moradoras do tal bairro proibido para menores, bem por isso tinha acabado de ouvir do nanico sobre a visita que faria mais tarde, ao seu cobertor de orelha. Nem sabia que cobertor tinha orelhas. Fiquei a pensar no que poderia acontecer se não estivesse tão frio. A rua estava quase deserta, além de nós, o nanico, também entrou na padaria. Comprei o pão e retornei correndo.

Mesmo não entendendo as causas pelas quais a sardenta não saía à rua, não deixava de ficar grilado ao ouvir meu pai dando conta da vida dela à mamãe.

Meu pai fazia o relatório de tudo o que acontecia por lá, enfatizando as damas do ofício como protagonistas em sua narrativa, que minha santa e inocente mãezinha punha total sentido, sem ao menos desconfiar que se ele sabia fazer tão bem um relatório, decerto, era um dos assíduos frequentadores, igualzinho aos outros bons da boca, conforme diziam as senhorinhas mais velhas que costumavam sentar na calçada nos fins de tarde, para também se informar sobre a vida alheia.

Ainda que eu não tivesse saído dos cueiros, conforme me foi dito por uma delas, em certo dia que passava pela rua principal para vender leite e fui cercado por uma, já meio idosa, dizendo que ia comprar todo o leite que ainda tivesse no tambor pendurado na garupa da bicicleta, para que eu fosse embora e me deu o ultimato de não pisar mais por ali, por ser um lugar perigoso para alguém como eu. Fiquei assustado, mas, um tanto feliz. O galão seria esvaziado. A dita mulher pegou um balde e ficou com o leite. Pagou e me mandou sair rapidamente. Fui embora pedalando feliz da vida

Não entendi direito a proibição daquela senhora, tampouco, pensava em obedecê-la, porém, fiquei a pensar qual seria o mal em passar por aquele bairro? Matutei o resto do dia e no fim da tarde, enchi-me de coragem e fui perguntar ao velho João, nosso caseiro, pessoa em quem eu confiava. Foi então, que ele riu muito enquanto, eu lhe narrava as fofocas que sabia.

Depois de uma boa baforada de cachimbo, foi me dizendo: - É deveras perigoso, meu menino, tão somente por você ainda ser um menino, quando crescer vai entender tudo. Àquele lugar só podem frequentar, homens adultos. Você pode perceber que durante o dia tudo é silencioso, mas, à noite, quando a luz vermelha se acende a algazarra começa a vai ia até o amanhecer. É um lugar de pouca vergonha e muita safadeza. Saiu a rir e tomou o caminho da roça.

Fiquei mais intrigado ainda, porque já havia visto meu pai encaminhar-se naquela direção, muitas vezes, à luz do dia.

Depois desse dia, passei a observar mais atento o que era dito pelas pessoas do vilarejo e também no movimento do bairro, quando passava para ir à igreja que ficava no pico mais alto do morro. Lá do alto dava para ver muito bem quem ia e quem vinha de lá.

Era ela, a sardenta que vinha no meio de mais duas que eu nunca tinha visto. Entraram também na padaria. Decerto, as novatas, tinham vindo de outras bandas para ser mantida por algum safado ali da nossa comunidade. Só restava saber quem seria os manteúdos.

O Tião era o dito e cujo mantenedor da sardenta, proibia-a de sair à rua, com toda razão, eu havia de concordar, pois, a sua beleza desfocava os olhares masculinos quando passava, até os meus, uma vez que era sabedor de segredos um tanto quanto perigosos.

Todas as minhas descobertas se deram por causa da venda do leite e porque lá do alto da igreja eu ficava observando como quem não sabe de nada, e, foi nessas observações que descobri que meu pai também era dono de algum cacho por lá. Imediatamente lembrei das novatas. Será que papis teria coragem?

Nessa função, certa manhã ao entregar o líquido precioso na casa do vereador, escutei quando a empregada, enfurecida dizia sobre o sapato e as meias do patrão estarem enlameados e fedorentos. Falava disso enquanto tentava tirar a sujeira no tanque.

Assim que a patroa pegou o leite, as duas estenderam o diálogo sobre o tal sapato e meias. A criada dizendo que não conseguiu encontrar o outro pé, falando que ao abrir a porta, logo cedo, viu no chão, fora da calçada, o par de meias e apenas um pé do sapato e que precisava encontrar o outro pé, porque nesse dia, logo após o almoço, o patrão teria reunião na câmara e certamente ia querê-los limpos e engraxados.

Pois bem, até o almoço saiu atrasado, por causa da confusão na procura do objeto.

Quanto o vereador acordou já passava das nove horas e sem muito falar, sentou-se à mesa para degustar o café. Sua cabeça estourando de tanta dor pela ressaca e as costas marcadas pelo acidente noturno, sobre o qual não podia comentar. Sua cara não estava boa. Pediu à esposa para ir comprar uma pomada e remédios para dor. Ao voltar da farmácia Dona Nice não lhe poupou do interrogatório.

Mesmo sabendo que os hematomas das costas estavam feios, não se incomodou com a cara feia e quis saber sobre o sumiço do sapato e sobre a situação das suas roupas, dizendo que ia colocá-las no lixo, por não haver condição de voltar a serem usadas. Colocou-as numa sacola.

Naquele tempo as casas não tinham muros, tampouco haviam ladrões, mas, um cão vira-latas tratou de sair correndo com um dos sapatos na boca.

Na casa da galega, assim que o dia amanheceu, Tião se deu conta do sapato perdido embaixo da janela e dos rastros misturados com as ferraduras do seu cavalo que ele deixava ali próximo para que o mesmo pudesse pastar e beber água do riacho. Foi conferir de perto e descobriu que além do pé de sapato, tinham quatro rastros, dois do tal que só tinha um pé e dois bem maiores.

Furioso, desceu e pegou o calçado tirou a lama e o pôs numa sacola, aos gritos, e enchendo a mulher de bofetes, querendo saber quais os quatro pés de tamanhos diferenciados estiveram na cama dela, antes dele.

Claro que ela não disse, mesmo sendo socada pelo valentão.

Ao montar no cavalo levou consigo o sapato. Seu intento seria descobrir quem era o dono. Fácil descobrir não seria, contudo, impossível, também não. O dono calçava número trinta e oito, a outra marca que ele verificou e mediu era, segundo seus cálculos, uns quarenta e três. Ficou matutando sobre quem havia pulado a janela com a sua chegada? Não era possível que fossem dois ao mesmo tempo?

Mal virou a esquina deu de cara com o cachorro carregando na boca o outro pé de sapato, já meio mastigado, porém, possível de saber que se tratava do outro pé. Pulou do cavalo e tomou-o do cachorro. Agora, estava com o par completo dentro da sacola pendurado na cabeça da sela.

Assim que apeou do cavalo no único armazém que tinha na avenida principal, avistou o vereador vindo todo no terno e gravata, mas, nos pés vestia chinelos. Para quem ia presidir a reunião camarista da semana, aquilo não era normal.

Era o Tião reparando nos pés do vereador e esse se borrando de medo, mas, fazendo de conta que estava tudo sob controle. Cumprimentou o rival e tratou de entrar na sua velha rural e se mandar. A cidade próxima a quem pertencia o distrito de Fundão ficava a dezessete quilômetros de distância e ele tinha que chegar mais cedo para comprar outros sapatos. Na vila não havia lojas de conveniências, somente esse mercadinho de últimas necessidades.

O outro rival do Tião estava em casa, todo escatembado. Não perdeu os sapatos, nem estava com a coluna fora do lugar, mas, torceu o pé e como não havia médico, chamou o farmacêutico em sua casa, e, esse lhe receitou unguentos, ataduras e anti-inflamatórios.

O escatembado estava na cama, porque mal podia ficar num só pé, precisava de uma muleta, que também não tinha na vila.

Tião bateu na sua porta assim que saiu do mercado.

O doentinho do pé luxado tinha uma pequena máquina de beneficiar arroz, que atendia aos poucos moradores do local, mas, nesse dia quem o atendeu foi Dona Filó , a esposa maltratada, mal humorada, para não dizer mal amada, uma vez, que seu marido estava incapacitado e de cama.

Enquanto pesava o arroz do Tião, não deixou de comentar sobre o acidente que o marido teve na noite anterior.

Disse que ela não sabia por onde o marido havia andado para ter chegado naquela situação, ao ponto de não poder atendê-lo pessoalmente.

Tião deixou o arroz para ser descascado e saiu com seu pensamento fervilhando. Fervilhou tanto que derreteu com as doses de cachaça do mercadinho.

No outro dia era domingo. O sujeito do pé numero quarenta e três tinha que ir celebrar o culto na igreja, contudo, impossibilitado de andar, mandou que a mulher fosse comunicar o ocorrido através do pau do fuxico e o porquê de não haver culto.

Nesse domingo, por pouco, Tião não mata os dois.

Já era fim da tarde, o quarenta e três foi sentar na calçada, apoiado num cabo de vassoura, a esposa sentou-se ao seu lado, enquanto cuidava das crianças brincando na rua.

O vereador que tinha costume de ir tomar banho de rio envolto na toalha tinha que passar por ali. Na volta do banho, trajado com calção e a tolha envolta nos ombros, parou para conversar.

O dia findava e Dona Filó entrou com os filhos para lhes dar banho. Os dois sozinhos tiveram que encarar Tião, que voltava para buscar o arroz.

Tião havia bebido bastante no mercadinho, mas, ainda dava conta de cavalgar, depois, seu animal já estava tão acostumado com o dono que andava equilibrando em seu lombo para que ele não caísse.

Quando os dois avistaram Tião virando a esquina, pensou que ele havia descoberto serem eles os apreciadores da sua iguaria, e que jantavam-na antes dele, mas, ele estava atrás de levar o arroz despelado para a fazenda. Dona Filó o despachou prontamente com o arroz descascado dentro do saco.

As evidências estavam claras, todavia, a bebedeira do Tião não deixou que ele se desse conta do ocorrido.

Os dois, sem poderem fazer nada, encheram as calças de tanto medo. Tião despediu-se e seu animal saiu no trote. O nanico retornou ao rio para lavar os fundilhos.

Creusa Lima
Enviado por Creusa Lima em 22/02/2023
Reeditado em 31/01/2024
Código do texto: T7725472
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