UM JUMENTO NOS OLHOS DO SEU DÉ.

- Jumento é um bicho errado, Maruca. Ele morde, dá coice, é pilantra, é tinhoso, teima, faz feio no meio do povo, ainda tem um que “vai p’outro” de mais de metro.

Isso dizia Juvenal Lourenço, o “Seu Dé”, passando pensativamente o pano no balcão da venda, com o olhar voltado para o futuro.

Seu Dé era um homem probo, digno e fiel. Ia à missa, tomava uns poucos caraminguás de pinga sim, porém nunca foi visto bêbado. Era econômico, parcimonioso, bom amigo, um marido sofrivelmente fiel para Dona Maria do Carmo – a Maruca – e honesto nos negócios. Não aceitava fiado, mas sempre dava um “de menos”.

O único defeito do seu Dé era só fazer filhas. Tinha 11, concebidas na esperança de “daquela vez vir um homem”.

Quis culpar a mulher, mas o médico, especialista consultado na esperança do filho homem sentenciou: quem determina sexo é o pai. Foi-se a última esperança de Seu Dé, junto com as trompas de Maruca que esgotada ameaçava separação ou suicídio – tanto fazia!

Havendo concordado, ainda que sob protesto, aliviou-se em pouco, em 12 anos de casamento haviam 11 bocas e mais a Maruca para sustentar. Mas a Maruca aprendeu corte e costura e – no melhor sentido – costurava para fora e ajudava nas despesas.

O primeiro problema era escolher nome pra tanta gente não é fácil nada, ainda por cima se você começa com uma letra, como no caso de Maruca. Apaixonada discretamente pelo marido e querendo prestar-lhe uma homenagem botou o nome da primeira filha de Juvelina, diante da impossibilidade – o camarada do cartório recusou-se, era uma presepada, disse desrespeitoso, acintoso mesmo, esperasse um filho homem para botar o nome do pai – de colocar Juvenala Junia.

Daí Julia, Julieta, Juliana, Jussara, Juraci, Junia, Juraíde, Juventina, Jumara e Jubiléia – essa ultima já foi um sufoco, primeiro para achar o nome e depois pela possibilidade do camarada do cartório – aquele peste – recusar-se a registrar a criança. A diferença entre elas era um ano exato, todas de junho. O médico admirava-se:

- Porra, Seu Dé! – dizia ele numa intimidade de muitos anos – Nem que marcasse no calendário! Era a trepada do ano, era?

Seu Dé calava-se. Não era homem de dar-se a esses desfrutes. Trepava era muito, mas ninguém, fora ele e Maruca, precisavam saber disso.

O segundo problema era o caso de que as meninas foram crescendo. Quando a mais velha completou 15 anos, numa festa modesta, porém decente, a “rataiada” no dizer de Dona Maruca se assanhou.

As meninas do Seu Dé eram bonitas de doer na vista. Morenas cevadas, olhos rasgados, cadeirudas, busto de burguesa, cara de camafeu e duas tinham olhos verdes. Pancadões!

Ai o seu Dé deu pra ficar triste, cismar da vida e filosofar: com tanta fêmea em casa como ter sossego, Jesus? E onde arrumar genros que tivessem alguma valia, Senhor Deus?

O mundo estava cheio de homens, sim. Davam em “rengos” e nunca em genros. A maioria não servia de nada, eram o diabo do sem préstimos, uns bananas, uns sibites, uns boca-de-ponche, uns aproveitadores baratos. Onde encontrar onze cidadãos honrados, capazes de sustentar suas filhas e não dar prejuízos. Nunca havia tencionado matar ninguém, mas quem bulisse com suas filhas...bem, bem...Deus o livrasse!

Acontece que as filosofias de Seu Dé, quinze anos depois do primeiro namorado da primeira filha, apresentado com pompas e circunstâncias na festa, pequena, porém decente – e que depois se saiu um bom dum safado, disposto a desgraçar a menina com um casamento sem futuro e ainda mais a Seu Dé que o sustentaria para sempre – nunca deram em outra conclusão senão a certeza, absoluta, final, cortante, circunstante, óbvia de que: por mais errado que fosse o jumento, a mulher só não se amiga com um se o mesmo recusar.