Conto inédito *

 

 

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IMAGEM GOOGLE

 

 

 

 

 

 

 

Ter-se vergonha da sua imoralidade é um degrau na escada em cujo extremo se tem também vergonha da nossa moralidade.

Friedrich Nietzsche

 

 

 

 

A ESCADA DA VIDA

 

 

Conheceram-se numa tarde de primavera, após ela se ter apresentado no escritório onde ele era gestor de compras. Representava uma empresa que concorria para lhes vender componentes eletrónicos, juntamente com outras. Ganharia o melhor preço, era a regra base de mercado. Ela Laura, ele Manuel. Mais velho o gestor, menos oito anos a vendedora.

Durante a manhã seguinte Laura apresentou o produto que pretendia a empresa comprasse, expôs as vantagens dessa opção. Manuel escutou com atenção as palavras dela, intervalaram essa apresentação com um café e bolinhos de canela.

Por fim, com a promessa de uma decisão a ser tomada após analisar todas as propostas – eram quatro no total - despediram-se com um aperto de mão.

No dia seguinte, um sábado, depois de almoço, Laura foi a um Centro Comercial acompanhada do marido, Leonardo, e da filha, Anita. A pequena, que em breve iria aniversariar os oito anos, entrou logo numa loja de brinquedos, namorando uma boneca de tamanho XL que ria e mexia os braços. Olhava suplicante para os pais, aguardando uma decisão positiva. Mas quando Laura viu o preço e mostrou a etiqueta ao marido, este fez uma careta. De facto era muito cara, acima do orçamento planeado para prendas. A pequena acabou por se conformar com o não deles.

Passearam olhando distraidamente as montras e por fim sentaram-se numa esplanada, bebendo café e água, a pequena sorvendo um gelado de chocolate.

Estiveram por ali mais de uma hora. Às tantas, Laura pareceu vislumbrar Manuel misturado com o magote de gente que aquela hora circulava pelos corredores. Ele também a viu e dirigiu-se sorridente para a sua mesa.

Ela apresentou-os, Manuel fez uma carícia na cabeça de Anita e convidaram-no a sentar-se. Ele declinou o convite argumentando estar com uma certa pressa, tinha um compromisso dali a minutos. O casal compreendeu a situação e depois despediram-se dele.

Laura ficou a segui-lo com o olhar, depois desviou a atenção para outro lado, ficando pensativa.

O marido notou e inquiriu-a: «Então este é o homem que pode decidir o teu futuro?»

«Não é bem isso, querido, mas agora ia ajudar-me bastante. A comissão seria ouro sobre azul, bem sabes. As nossas finanças andam em baixo e da administração já me pressionaram pois não tenho apresentado resultados de vendas positivos, muito abaixo dos objetivos definidos».

Leonardo assentiu em sinal de compreensão e depois foram-se embora para casa.

Três dias depois a empresa dela recebeu um ofício, enviado diretamente por Manuel, informando que a proposta deles tinha sido selecionada, convidando-os para enviarem o documento de formalização da compra.

Coube naturalmente a Laura ser a portadora dos documentos. Manuel estava acompanhado pelo jurista, que atenciosamente analisou as três páginas colocadas à sua frente e depois deu o assentimento. Estava em conformidade com os valores e condições apresentadas anteriormente.

Após a assinatura, os olhos de Laura brilharam de satisfação. Apertou efusivamente as mãos do jurista e sobretudo de Manuel. Ele olhou-a meio curioso e perante aquele olhar inquisidor, ela desviou o seu e corou.

«Disse alguma inconveniência? – inquiriu Manuel».

Laura retorquiu, num assomo de sinceridade, que aquela comissão lhe caíra do céu. Ele sorriu e depois do advogado sair da sala, perguntou-lhe se queria almoçar com ele. Laura corou de novo e declarou não poder aceitar pois tinha que ir à administração da sua empresa entregar os documentos, comprometera-se a isso. Ele concordou. «Talvez haja uma próxima vez, quem sabe?»

Laura despediu-se e só então, tendo-se afastado uns quantos metros da empresa de Manuel, o seu coração abrandou. Sentiu-se afogueada, sem ter explicação para tal.

À noite, após o jantar, estiveram um pouco a ver televisão depois deitaram a pequena e também se foram deitar. Leonardo mostrou-se mais afetivo que o costume e ela percebeu o que ele queria. Mais tarde Laura entregou-se aos arrufos do marido, mas tentou expulsar da ideia a imagem de Manuel… Revoltava-a a ideia de pensar em outro quando estava nos braços do marido, mas não conseguiu apagar aquela imagem. Até lhe pareceu que se mostrou mais entusiasmada e dengosa pela situação.

Nos dias seguintes continuou na rotina do costume até que no final de uma manhã o seu telemóvel tocou, estava ela dirigindo, rumo a outra empresa potencial cliente. Desviou o carro para a berma, ligou os piscas e depois atendeu. Era Manuel, convidando-a para o tal almoço. Ela hesitou mas acabou por negar de novo.

Laura ficou muito perturbada, o coração a mil… Não entendia o porquê, qual a razão que lhe provocava aquele incómodo. Pensou ser a sua situação civil que a inibia perante ele.

De tarde, estava no escritório a preencher papelada inerente à sua função quando o celular tocou de novo. Era Manuel. Laura ficou irritada… Homem mais insistente, hem?

Ele repetiu o toque. Por fim, Laura atendeu. «Porque não atendeu? Acha que sou um lobo? Nem eu o sou nem você é o Capuchinho Vermelho, embora seja delicada e encantadora como é suposto ela ser…».

Laura ficou irritada e demonstrou-o desligando-lhe o celular na cara. Ele não voltou a ligar.

O assunto morreu ali e três meses depois a empresa dela candidatou-se a outro concurso para fornecimento de peças à empresa de Manuel. No dia agendado para entrega da proposta, foi Manuel que a acolheu, sorridente. Ela ficou logo nervosa, não esquecendo o incidente anterior.

Não disfarçando o seu mal-estar, Laura fez a apresentação e no final Manuel reteve-lhe a mão e olhando-a com intensidade, perguntou se desta vez aceitava o seu convite.

Laura não teve como negar o incómodo mas lembrando-se da generosa comissão que receberia por esse contrato, acabou por concordar.

Encontraram-se no local indicado por ele, ela estacionou em local afastado, discreto e dirigiu-se ao restaurante. Desta vez Manuel mostrou-se amoroso, cheio de deferências, ela bebeu vinho a acompanhar uma requintada refeição e então ele pôs as cartas na mesa: Se ela acedesse a deitar-se com ele, teria as portas da sua empresa abertas e a garantia de muitos concursos ganhos e comissões chorudas. Laura sentiu a cabeça à roda, fruto da bebida e também da proposta tentadora… E Manuel também era uma tentação, acabou por reconhecer…

Quase sem dar por isso, estava na cama de um quarto do hotel anexo ao restaurante, nos braços de Manuel. Foi tudo relativamente rápido. Depois ele adormeceu ao lado dela e só então Laura se deu conta do que fizera. Chorou sem ruído, molhando a almofada.

 

 

 

 

 

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 22/07/2023
Reeditado em 27/07/2023
Código do texto: T7843261
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