O menino diferente
Não consigo entender. Toda vez que eles vão passear, me deixam em casa. Parece que eles não gostam de mim. Quando eles saem, eu fico chamando, chamando, eles fazem de contas que não ouvem. Não adianta nem eu chorar.
Sei que todos eles me amam, por isso é muito estranho o que fazem comigo. Papai, mamãe, vovô, vovó, maninha, maninho, todos eles me tratam bem, nunca deixaram faltar nada para mim, brincam comigo, demonstram carinho de todas as formas.
Até os parentes e os amigos da família quando vêm nos visitar já chegam fazendo festa pra mim, fazem carinho, conversam comigo, me dão presentinhos e me deixam cheio de alegria como um balão de ar. Claro, logo depois viram as costas e vão conversar, como se eu não existisse mais. Eles têm lá os seus assuntos que não me dizem respeito, então vou cuidar das minhas brincadeiras, ou vou descansar, e fico quietinho no meu canto, pensando na alegria que me trouxeram.
O problema é quando eles vão passear. Uma época eu pensava que eles eram surdos, porque eu pedia pra ir junto, implorava, e eles nunca prestavam atenção ao que eu dizia. Mas logo percebi que o problema deles não é surdez. Quando eles estão em casa e eu estou brincando no quintal, se chega alguém eu chamo, eles correm pra ver quem é. Portanto, quando eles querem, ouvem muito bem o que eu falo.
Aí cheguei à conclusão de que eles são interesseiros. Mas acho que na verdade eles têm vergonha de mim, porque eu nasci diferente um pouco. Não gostam de me levar nos passeios. Às vezes dá certo e vou atrás deles. Passo correndinho pelo portão, ou passo pelo buraco que tem no muro, e vou passear com eles. Aí eles ralham comigo, me mandam voltar para casa, mas dessa vez eu é que faço de contas que não escuto eles. E vou na frente, ou vou seguindo atrás deles. E vou em qualquer lugar onde eles forem porque não tenho vergonha de ser como sou.
Eles vão em lugares interessantes, onde tem bastante pessoas comendo coisas gostosas, e ali eu vejo de tudo. Tem uns que ficam incomodados com a minha presença, principalmente os donos do lugar, mas tem sempre aqueles que me chamam pra brincar, fazem carinho na minha cabeça, me elogiam, dão coisinhas pra eu comer. Aí vem alguém da família, geralmente o papai, e briga comigo, manda eu deixar as pessoas em paz, pede desculpas para as pessoas como se eu estivesse incomodando meus próprios amigos.
Devia ser proibido tratar alguém dessa forma. Ouvi eles falando sobre Direitos Humanos. Minha vontade é denunciar, mas eu não sei ler e escrever, também nunca me deram um celular pra eu aprender a mandar mensagens.
Olha lá eles de novo, estão saindo pra passear, e vão me deixar trancado em casa. Acho isso um desaforo. Sei que não adianta, mas vou falar mais uma vez que quero ir junto, ora bolas. Desta vez eles vão ter que me ouvir, porque vou gritar bem alto:
— AU!... AU!... AU!...
(Essa é a história do Thor, nosso cachorro)