Magnétika- cap. XVIII

E o tempo se passou; aproximava-se a época de minha formatura. Começou a desocupação das casas para a construção do edifício Arco do Triunfo; as máquinas iam e vinham, fazendo aquele barulho e levantando poeira. A casa de Seu Jô e Dona Zulmira resitia; o barulho que o pessoal do bairro fez surtiu efeito; houve até uma reportagem na tv em que ficamos todos na frente da casa, com camisetas com as fotos deles estampadas, que eu mandei fazer, pegando um dinheiro escondido da minha mãe, dizendo que era para comprar uma bicicleta; depois eu me entenderia com ela.

Eles eram muito queridos no bairro, até pelos do lado alto, de casas bonitas. Algumas madames vinham se sentar na cozinha de Dona Zulmira e jogar conversa fora, pois ela era atenciosa com todos, muito paciente. De vez em quando dava uma gargalhada estridente, mas que era seu charme. Havia a poeira, os gatos miando, mas mesmo assim preferiam aos lugares suntusos e cheios de etiqueta, onde reinava aquela frieza glacial. Seu Jô, então, sempre recebendo aquele pessoal literato e artístico, sem um tostão no bolso e filando uma boia da Dona Zulmira, mas eles nem se importavam.

Por enquanto as coisas se aquietaram; minha mãe resmungava, mas com má vontade aceitava minha amizade com eles. Um dia a peguei pensativa; olhava as fotos antigas de sua famíla e tinha lágrimas nos olhos: " isso aqui é de quando era criança..."

"Nossa, como era bonita!"-respondi. "Ah... aquele bairro; tudo precário; água de poço, ruas de terra. Quero esquecer!" .Depois olhou outra foto, já como estudante de Secretariado; maior, já vaidosa, como sempre foi; esboçava um sorriso meio amarelo. "Eu lutei muito para chegar aqui; às vezes mal tinha dinheiro para o ônibus..."

Foi num estágio que fazia numa empresa que meu pai a conheceu; uma secretária vistosa. A sorte lhe sorrira a partir de então; meu pai sempre foi de classe média alta; nunca lhe faltou nada. Tratava a todos com respeito, mas com aquela distância característica entre classes que não se misturam, como o óleo e a água. Compreendia agora o medo que minha mãe sentia de voltar atrás na linha social, tão a custo conquistada. Mas a vida era minha; lembro bem das visitas que fazíamos aos meus avós mais pobres, das coisas que levávamos; conhecia dois ambientes distintos, que contrastam de forma nítida e violenta.

Qual não foi sua surpresa quando anunciei quem seriam meus padrinhos formatura no colégio. Ela já vinha jogando no ar indiretas: "Chame aquele primo de seu pai e sua namorada; eles podem te dar um presente bom...". Um dia, cheguei da escola e disse de supetão: "Quero Seu Jô e Dona Zulmira como meus padrinhos de formatura!" Ela gelou, mudou de cor, ficou triste e depois voltou a sua máscara social de costume: "Não quero essa gente na formatura!"

Não adiantou; no dia , o pessoal todo formal , de terno e gravata, no colégio caro. Os formandos eram anunciados um por um, e a salva de palmas dos parentes. Quando chega a minha vez; sou anunciado e, na hora do discurso, tomo a palavra: "Quero homenagear dias pessoas incríveis e que me ajudaram muito nessa trajetória; Seu Josisvaldo e Dona Zulmira!" Eles se levantam; ela com vestido emprestado, ele com o terno puído e barba característica. E é aquela ovação de toda a sala; realmente, eram pessoas muito queridas no bairro. Minha mâe ficou quieta, mas meu pai vacilou e não tardou também em aplaudir.