Quem eu costumava ser

Quando acordei não existia nada. Apenas um completo e silencioso vazio. Daqueles que sugam tudo ao seu redor. Mesmo que não haja nada para sugar.

E depois de uma eternidade algo começou a surgir. Uma coisa totalmente nova. Tão pequena ainda que era muito difícil de reparar. Mas foi crescendo, tomando forma, até se tornar completamente visível.

Uma ideia.

“Quem sou eu? Não sei.”

E por que ?

Um acidente de carro. Eles disseram.

Uma batida tão forte na cabeça que me deixou em coma por vários meses. E quando acordei, só havia o vazio.

E depois dessa primeira ideia, várias outras começaram a brotar. Como plantas, algumas boas e outras, meras ervas daninhas.

“O que torna um ser humano único? O que diferencia uns dos outros, excluindo a aparência? A alma ainda é a mesma quando perdemos a memória de quem somos?”

Muito barulho e caos no antes silencioso “nada” em meu cérebro.

Resmungo palavras desconexas e logo uma enfermeira aplica uma injeção em meu braço e uma névoa gostosa silencia meus pensamentos.

Sonho pela primeira vez. Que me lembre. Mas nada que me diga quem sou. Ou era. Só um emaranhado de coisas. Árvores. Céu azul. Vento no rosto. Estrelas em um céu escuro.

Fragmentos despedaçados de coisas que vi, senti e vivi. Imagino que seja isso.

Gasto minha curta paciência tentando lembrar. Alguma coisa, qualquer coisa. Nada!

Os médicos falam comigo, mas não entendo totalmente. Algumas coisas não fazem sentido nenhum. Outras me preocupam.

Amnésia total irreversível. Reaprender a viver. Paralisia parcial temporária. Afasia consciente temporária. (Parece que falo só quando estou dormindo, ou sob efeito de analgésicos, mas apenas palavras desconexas.) Família ansiosa para uma visita.

Que família? Eu tenho uma família? Então eles devem saber quem sou… ou era.

Muita informação!

Hiperventilação… taquicardia… tremores…

Injeção, névoa, sono, vazio reconfortante.

A família:

Marido

Homem, uns quarenta anos, mais ou menos bonito, olhos tensos, ansioso. Fala gentil, mas não chega muito perto. Olha sempre para os médicos esperando aprovação.

Filha

Pré adolescente, uns doze anos. Bonita, aparência infantil ainda. Sorri para mim, mas não consigo sorrir de volta.

Filho

Adolescente, uns quinze anos, rosto apático, triste. Olhar indeciso. Tenta chegar perto de mim, mas alguma coisa em meus olhos faz com que se afaste.

Deve ser medo.

Estou morta de medo.

Não conheço essas pessoas. Não tenho a mais leve sensação de algum dia ter visto qualquer deles.

Muita pressão!

Hiperventilação… taquicardia… tremores…

Injeção, névoa, sono, vazio reconfortante.

Estou sozinha. A cama é quente e confortável. O despertar é suave e tranquilo. Meu cérebro parece mais forte e estável.

Os médicos parecem confiantes. Trazem um espelho. Explicam que pode ser um choque me ver, mas é necessário. Perguntam se sei como me pareço. Dou de ombros. Não faço a mínima ideia.

O rosto que me encara é completamente desconhecido. Levanto as sobrancelhas só para ver se sou eu mesma. O espelho devolve uma imagem inquisidora.

Olhar vazio. Rugas de preocupação. Linhas de expressão. Cabelo na altura dos ombros, liso armado. Castanho claro, com fios brancos espalhados.

Me explicam que a cicatriz da operação fica escondida pelos cabelos. Passo a mão no couro cabeludo até encontrar. Uma linha fina de fora a fora no meio da cabeça.

Dou de ombros. Isso não me importa. Nada parece importar.

Fisioterapia para voltar a andar. Dor.

Fonoaudiologia para voltar a falar. Dor.

Terapia para voltar a pensar normalmente. Dor.

Terapia em grupo com a minha família para poder voltar para casa. Dor. Dor. Dor.

Como posso voltar para um lugar onde nunca estive?

Minha voz é rouca. Pela falta de uso. Consigo formular frases pequenas e simples.

Estou com fome.

Preciso ir ao banheiro.

Vou dormir.

Nada além disso. Ainda. Mais por não ter o que dizer do que por não conseguir.

O que mais eu falaria?

Meus filhos vem me visitar bastante agora. Não sei o que perguntar. Não tem nada que eu queira saber. Eles trazem fotos. Dezenas delas. E tudo o que vejo é uma estranha sorridente, em várias fases da vida. E eles pequenos, tão diferentes. Parecendo tão felizes.

Meu terapeuta diz que sofreram muito. Todo esse tempo que fiquei em coma. Mas eu não sinto pena. Não sinto nada.

Meu marido vem todos os dias. Senta do meu lado e fala. Fala sobre tudo. Conta como nos conhecemos, como casamos, como tivemos as crianças. Eu fico só ouvindo. O que mais posso fazer?

Do nada surge uma ideia.

— Eu tenho mãe?

Talvez por ser mãe agora e não ter a mínima noção do que fazer.

— Você tinha. Mas ela morreu. Alguns anos atrás… e seu pai morreu também, faz uns dez anos.

Não sinto nada. Talvez alívio. Se eles estivessem vivos seria mais pessoas com quem teria que conviver.

Consigo andar sozinha agora, mesmo que com dificuldade. Mas não tenho lugar nenhum para ir. Sugerem o jardim do hospital. Mas não tenho vontade.

Quanto mais meu mundo parece expandir, mais angustiada fico. O vazio era reconfortante. Pessoas, coisas, lugares, cores e sons são exaustivos.

Receitaram (além dos remédios, da terapia e do acompanhamento com a equipe multidisciplinar) baixa exposição a coisas novas. E aumento gradativo com o tempo.

É normal. Pelo que dizem. Passei por muita coisa. Meu cérebro está se curando ainda. Um dia voltarei a sentir normalmente. Um dia estarei confortável com minha família e comigo mesma.

É o que dizem.

“Faça uma lista do que gosta e do que não gosta.”

Gosto:

Café com leite.

Pão novo.

Manteiga.

Geleia de framboesa.

Suco de maracujá.

Silêncio.

Vento na janela.

Sol ameno.

Chocolate amargo.

A música que a menina disse que era minha preferida.

O livro que o menino lê para mim quando vem me visitar.

Perfume que o marido usa.

Não gosto:

Café puro.

Torrada.

Geleia de pêssego.

Suco de caju.

Barulho.

Luz forte.

Muitas pessoas.

Perguntas.

Abraços.

TV ligada.

Campainha do hospital.

Vou aumentar a lista com o tempo.

É o que dizem.

Estou indo para casa. Mesmo sentindo que a única casa que conheço é o hospital.

Olho para o mundo pelo vidro do carro. Muita coisa, muita gente. Meu cérebro registra tudo, mas nada me causa qualquer sentimento.

Não sinto nada além de apreensão. Nada passa pela barreira que meu cérebro criou. Só queria sentir alguma coisa além do medo. Qualquer coisa.

Minha casa é boa. Tudo está em seu lugar, limpo e confortável. Fotos por todos os lados. Desenhos de criança em molduras de palito de picolé. Almofadas artesanais, que dizem que fui eu quem fez.

Fotos que tirei. Livros que comprei. Móveis que planejei. Cortinas que escolhi. Livros de receitas que usei.

Acordo ao amanhecer.. O marido dorme no sofá do lado da cama. Levanto e por intuição, vou até a cozinha. Olho para o fogão. Para a cafeteira.

Imagino que sabia fazer café. Então ainda devo saber. E simplesmente vou fazendo. Não tem pão, mas tem bolo. O menino fez ontem de noite. De banana com gotas de chocolate. Disse que é meu preferido.

Pego um pedaço generoso e uma caneca enorme de café com leite e me sento em uma poltrona posicionada no sol fraco que entra por uma janela enorme.

Pela primeira vez sinto algo como familiaridade.

O bolo é delicioso e o café tem gosto de lar.

O marido me olha com os olhos cheios de lágrimas.

— Era seu lugar preferido da casa… pensei que nunca mais ia te ver aí ,como sempre…

Parece que meu corpo tem memórias que minha mente não possui.

A menina me abraça tão forte e por tanto tempo que a aflição vai passando e automaticamente meus braços correspondem e o cheiro de seus cabelos traz lágrimas aos meus olhos. Mas não sei por que estou chorando.

Elogio o bolo que o menino fez e ele sorri orgulhoso.

— Foi você que me ensinou.

Parece querer tanto um abraço quanto a menina, mas já perdeu a coragem que só a infância dá.

Chego perto dele e ensaio um carinho estranho. Um abraço de lado, dando tapinhas em suas costas.

Ele coloca os braços ao meu redor e encosta o rosto no meu. Ele é mais alto. Tem que se abaixar um pouco.

O marido está chorando agora. Mas não tenho forças para mais abraços.

Os dias passam lentamente. A memória do corpo é incrível. Sei cozinhar. E tudo que cozinho parece ser o que as crianças mais gostam.

Passo as tardes lendo os livros que já li. Alguns gosto. Outros coloco de lado para doar. A música é a primeira coisa a me maravilhar de fato. Não todas, é claro. Algumas. Mas fico satisfeita de saber que alguma coisa pode me trazer sentimentos fortes.

Estou aprendendo mais sobre as crianças. São boas crianças. Às vezes me pego conjecturando (não sabia que sabia essa palavra) sobre o que se passa na cabeça delas. Quase perderam a mãe. E agora, a mãe que elas têm, não é a mesma de antes.

— Como eu era antes?

— Você sorria mais… e falava mais… fazia biscoito pra gente, e me arrumava pra ir na escola… você abraçava e beijava mais. — A menina diz sem rodeios.

— Desculpe…

— Não é sua culpa. — O menino responde.

Aos poucos vou conseguindo fazer o que esperam que eu faça. O que parece que devo fazer. E a vida vai seguindo. Aos poucos vou sentindo. É bom sentir.

Não sei como sentia antes, mas agora é um sentimento calmo. Gostos simples, mas que satisfazem a alma. Minha lista do que gosto e não gosto agora tem também o que gosto muito e o que detesto.

Algum dia espero que tenha o que amo e o que odeio.

A interação com os filhos está indo muito melhor do que a com o marido. É diferente. As crianças são parte de mim. Agora, ele… não sei ainda por que o escolhi entre tantos.

Vejo que ele sofre muito por minha completa falta de interesse, mas não consigo me importar ao ponto de realmente tentar algum avanço sentimental em nosso relacionamento.

Ele ainda dorme no sofá do quarto. Não o trato mais como um estranho completo e sim como um bom colega de quarto.

Não sei se antes do acidente ainda o amava. Podia ser que não. Depois de tantos anos de casamento…

Prefiro não perguntar. Talvez ele não saiba, ou talvez minta, dizendo o que for mais conveniente para ele. Na realidade nunca vou saber a verdade.

Procurei diários pela casa, mas não achei nada. Nenhuma linha escrita por mim dizendo como me sentia nem nada sobre meus pensamentos e sonhos.

Então passei a escrever. O mais detalhado possível. Sentimentos, pensamentos, dúvidas, sonhos, medos. É uma segurança. Ver meu eu se formando lentamente diante de meus olhos enquanto folheio as páginas.

É quem costumava ser? Não sei. Mas é o que posso ser agora.

Desenvolvi uma coisa que chamo de intuição. Mas nada mais é do que a incrível memória do corpo. Às vezes sei de alguma coisa, não porque me lembro, mas apenas porque sei.

Foi assim que senti que as crianças eram realmente meus filhos. Que haviam nascido de mim e que eu as amava muito antes e que voltaria a amar um dia.

Foi assim que descobri meu amor por literatura, música e culinária.

Foi assim que descobri minha preferência pela praia, dentre todas as pequenas viagens em família.

E foi assim que um dia descobri que poderia voltar a amar meu marido. Quando me peguei rindo de uma frase boba que ele disse, e quando espontaneamente o ajudei com a gravata. Quando ele me abraçou e beijou meu rosto, sabia que ele era muito importante para mim.

Ainda sonho com fragmentos da realidade passada. Pequenos retratos de antes. Nada que me faça lembrar, mas que me mostra que eu existia antes. Que ela também era eu e que eu também sou ela.

Recomeçar nunca é confortável. Porque se pressupõe que o que quer que havia antes não existe mais.

Pelo menos não como era antes.

E o novo pode ser pior.

Mas também pode ser melhor.

Quem pode saber?

E o vazio foi se enchendo. Até que as lacunas não faziam mais falta. Até que uma nova eu foi surgindo.

Segundo as crianças, diferente de antes, mas tão boa quanto a outra.

É o máximo que eu poderia esperar, afinal de contas.

Priscila Pereira
Enviado por Priscila Pereira em 21/03/2024
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