Na pia das almas

Zími recebeu a doação de alguns jogos de pratos, copos e talheres que eram de uma tia que morreu.

O material ainda estava embalado para presente, e nunca havia sido usado.

Foi buscar em Pirituba de Kombi com o amigo e vizinho, o uruguaio Silvano, que na volta estreou um copo de cristal para tomar vinho.

De acordo com ele, esse era o remédio para a ressaca que sentia por ter vencido uma batalha de bebedores de tequila na noite anterior.

Quando voltou para casa, Zími vestia uma camiseta do New Model Army e Silvano, uma do Captain Beefheart, adquiridas por escambo. Trocaram alguns dos pratos com Miro Torres, ex-colega de escola de Zími.

Miro frequentemente sofria bullying por ter uma tatuagem da banda Toto, algo completamente estranho e inédito para Zími.

Miro estava começando a trabalhar no ramo de camisetas com estampas de Rock. Assim como Zími, ele passou décadas fazendo de tudo para que não precisasse ter um patrão e nem empregados.

Costumava dizer que empregados dão ainda mais trabalho e aborrecimentos que patrões.

Os pratos que restaram ainda não tinham destino certo, e provavelmente seriam usados por Zími, Silvano e Mila Cox (parceira musical de Zími na banda Crop Circles) como material para trabalhos artísticos decorativos e aleatórios.

Os copos seriam usados de forma convencional. Ficaram décadas guardados para alguma ocasião especial que nunca aconteceu, e agora estavam fadados a uma rápida destruição.

Eram sessenta copos no total, de diversos formatos, todos de cristal.

Zími apostou que em menos de um mês, estariam todos quebrados, mesmo sem terem filhos para ajudarem na destruição.

Mila Cox apostou que isso aconteceria em até duas semanas, e Silvano achava que em dez dias já não haveria mais nenhum.

A destruição dos copos de cristal simbolizava para eles uma espécie de resposta para os sonhos de uma sociedade que conta com dias vindouros melhores, que nunca chegam.

Eles normalmente usavam copos de plástico ou de requeijão.

A tia de Zími fazia a mesma coisa, com a intenção de oferecer copos melhores para visitas que nunca foram feitas.

Ela havia ganho aquilo como presente de casamento.

O casamento faliu rapidamente, o que ajudou na inútil preservação dos presentes, pois o casal não tinha amigos e por isso, nunca recebia visitas.

No entanto, ela vivia alimentando expectativas, sempre frustradas.

Para Zími, Mila Cox e Silvano, não receber visitas era não só algo maravilhoso, mas quase uma premissa para a felicidade. Gostavam de encontrar pessoas quando saiam para fazer shows.

Eles não abriam mão da solitude e da privacidade. A mais perfeita descrição da infelicidade, para eles, era se conformar com a companhia de qualquer pessoa por medo da solidão.

Uma quantidade enorme de pessoas parecia não entender que é na solidão que uma pessoa entende o tipo de companhia que ela é. E que apenas estando sós conseguem se aproximar daquilo que entendem como paz.

Estavam no apartamento de Silvano desembrulhando as peças e Zími disse:

"Minha tia vivia e não aprendia. Se o sofrimento realmente ensinasse, o mundo estaria povoado por sábios. A dor não tem nada a ensinar àqueles que não encontram a coragem e a força para escutá-la. Quando eu era mais jovem, ela era acérrima ao criticar minha postura em relação à vida, mas nunca olhava pras aberrações que praticava pra ela mesma, Ela sempre mencionava o passado de forma saudosista e o futuro com desesperança. Era fã do Paul Anka e coisas desse tipo."

Então, Mila Cox falou:

"Ao contrário do que acontece, as mulheres deveriam ser as primeiras a reconhecer o casamento como uma instituição arcaica e falida."

Silvano, que era uma banda de um homem só, tocando guitarra sentado e fazendo a parte percussiva com os pés, prometeu fazer uma música para a tia de Zími, a tempo de tocá-la no sábado seguinte, quando ele e os Crop Circles tinham show marcado em São Caetano.

Conseguiu terminar a canção a tempo, já no sábado de manhã. A música se chamava "Fuck off".

Para Zími, lembrava o começo da carreira do Dave Clark Five. imortalizando, de uma certa forma, a história de uma vida sem brilho.

Fernando Barreto de Souza
Enviado por Fernando Barreto de Souza em 25/03/2024
Código do texto: T8027609
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