A carta

Carregando a barriga nas costas, passados três dias sem nada comer. Começou a ver tudo amarelo, a cor da fome. Ainda encontra água para beber, desconsidera a origem e a disposição: bebe água de poça. Quentinha… gosto de podre. Ainda bem que choveu.

Cambaleando, quase quarenta graus na sombra, não tem sombra. Não escuta o uivo dos carros passando a mil ao seu lado. Deu de delirar de novo, mal consegue pensar em sua missão. Deseja agora rever sua mãe, ouvir a voz doce e suave de sua irmã.

Imagina-se, tudo muito nítido, escrevendo uma carta, selando o envelope e pondo nos correios, o carteiro chegando de manhã cedinho, batendo palma. Sua mãe feliz vendo a caligrafia torta: GABRIEL FERREIRA DA CONCEIÇÃO em letra de forma, só pode ter sido escrito pelo seu estimado filho. Abraça a correspondência.

— Sonia! Oh Sonia! Dona Lourdes correndo em direção de casa: — Gabriel, minha filha! Gabriel escreveu uma carta! Ele está bem! Ele está bem! Sorri.

— Me conta, o que ele diz? Fala! Sonia dando pulinhos.

— Aqui ele diz que está bem, que está bem cuidado, vivendo aventuras, salvando o mundo! Que orgulho de meu filho! Sonia aperta os punhos contra os peitos.

— Como eu amo meu irmão!

Gabriel imagina caneta, papel, escrivaninha, compondo em letra floreada, letra por letra, notícias felizes para elas, dizendo para que não se preocupem, que voltará logo, que, quando tudo estiver pronto, as levará para morar em Utopia. Lugar de gente feliz, terra da liberdade e do consentimento, da confiança e do amor. Quer dizer que não está sozinho, que tudo ficará bem.

— Mãe! Mãe! Lê a carta para mim! Pontinho por pontinho.

— Pera Sonia! Eu vou ler, eu vou ler.

“Querida Mãe, querida Soninha

Sei que o que fiz não foi correto. Deveria ter me despedido adequadamente. Peço que me perdoem por isso. Se viessem a supor os perigos de minha jornada, certamente, por zelo, tentariam, utilizando toda a eficácia que bem conheço, impedir meu destino. Sei que conseguiriam.

Mãe, hoje sirvo a um propósito. Finalmente, encontrei meu caminho. Serei, para o mundo, alguém importante. A vida antes não fazia sentido. Eu não me via como pessoa, estava preso, vivia só. Ainda não tenho ninguém ao meu lado, hoje, mas não estou só, levo toda a humanidade comigo.

Há outros como eu, Mãe, estão por aí seguindo seus desígnios, correndo o mundo. Não estou sozinho, seremos todos salvos, encontraremos nosso destino, estamos todos em busca de um lugar melhor.

Sonia, minha irmãzinha, aquele dia na igreja, vi o Arcanjo Gabriel. Sou um soldado dele agora. Estou sob seu comando e preciso encontrar Utopia: a terra prometida. Transformá-la em paraíso, lugar divino, digno para os escolhidos do Senhor, homens de boa vontade. Quando encontrá-la, pode ter certeza, Sonia, irei buscá-la para viver comigo.

Fiquem em paz, sabendo que estou bem, seguro e tranquilo.

Santa Luzia está comigo.

Beijos, Gabriel”

Repete em silêncio, milhares de vezes, cada verso de sua carta imaginária. Tantas vezes que se torna um mantra, sofisticado artifício de sua mente, tentativa desesperada de suportar as adversidades, enganar a fome. Gabriel não consegue parar de andar, chegou a um ponto em que, se parar, morre. Precisa encontrar um lugar de repouso: sombra e água. Com sorte, comida.

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 17/05/2024
Reeditado em 17/05/2024
Código do texto: T8065460
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