O Por do Sol no Madeira

Ele acordou, como sempre, muito antes da alvorada. Da janela da cozinha dava para ver os primeiros raios do sol na barra da manhã por detrás do Ferroviário. Na frente da casa, ainda adormecida, passos na rua anunciavam os últimos foliões saindo do Ferroviário Esporte Clube após a noitada de carnaval da Terça-Feira Gorda... “Ô Quarta-Feira ingrata chega tão depressa pra contrariar...” Deu um sorriso. Ele havia acordado ao som da famosa marchinha de carnaval. Recordou nostálgico, os carnavais ao lado de Marina, no salão de baile do Clube Ferroviário, ali pertinho, quase ao lado de sua casa. Ele que morava ha tantos anos na Rua do Coqueiro que já nem lembrava a quantidade exata. Só sabia que era muito tempo. Muito tempo. Quando um novo amigo perguntava onde ele morava, respondia simplesmente que morava na Rua do Coqueiro, sentido Sete de Setembro em direção ao Alto do Bode, ali no rumo do Bairro Triângulo, passando pela Baixa da União, onde aos domingos pela manhã ia assistir aos jogos de futebol da Segunda Divisão. Sorriu mais um sorriso nostálgico. Nem a Rua do Coqueiro e nem os jogos de futebol existiam mais, muito menos o coqueiro que dava nome à rua. Até o Morro do Alto do Bode não existia mais. A especulação imobiliária com sua voracidade os tinha engolido, todos, só não devorou as doces recordações. A cidade que o tinha adotado há tantos e tantos anos mudara muito. De quase vila, transformara-se em quase metrópole. Os anos a remoçaram, o contrário acontecera com ele e com Marina. Só o espírito continuava moço, o corpo, nem tanto. Marina, no entanto, aos seus olhos, continuava linda. Parecia que a tinha conhecido ontem. O amor por ela continuava o mesmo. Marina... Linda, linda, linda... Deus! Como a amava. Naquela quarta-feira de cinzas comemorariam sessenta anos de casados. Quem diria! Hem? Ele beirando os noventa anos e ela os oitenta e cinco. Na opinião dele ainda estavam taludos. Prontos para mais uns pares de anos. Ora se estavam... Ficou absorto por um momento. Ainda estava latente o dia em que a conhecera. Ele, recém desembarcado do navio “Lobo da Almada”, navio mercante de cargas e passageiros que fazia a linha Belém/Manaus/Porto Velho.

Desembarcara em Porto Velho com destino para Guajará-Mirim, cidade, segundo o haviam informado, fronteira com a Bolívia. Recordava que comprara a passagem para a cidade destino na Estação da Estrada de Ferro Madeira Mamoré e para espairecer fora caminhar na margem do Rio Madeira até a hora do jantar em alguma pensão onde passaria a noite até a hora da viagem de trem para Guajará-Mirim, lá pelas cinco horas da manhã, segundo constava no bilhete. Caminhava distraído, sem ter o que fazer quando a viu na beira do barranco do Rio Madeira, parada, tal qual uma deusa, olhando para o horizonte. Estava acompanhada de uma amiga. À mão, portava um delicado e colorido leque. Admirava o Por do Sol.

Especialmente naquele dia o sol caia no firmamento incidindo reflexos multicores nas águas ligeiras do Rio Madeira. As águas do rio refletiam matizes que variavam do vermelho escarlate ao rosa mais tênue, entremeados por raios amarelos tão dourados que lembravam finas espadas de ouro. De relance, na perspectiva do barranco para o outro lado do rio, os reflexo dourados do astro rei confundindo-se com as águas amarelas lembravam ouro liquefeito. E por cima das águas, voando em direção à mata no lado oposto do rio, bandos de papagaios, casais de tucanos e araras azuis e vermelhas voavam para o aconchego de seus ninhos, quem sabe levando o último alimento do dia para os filhotes. A chuva caída pouco antes do por do sol, gentilmente presenteou os transeuntes e admiradores com um arco-íris multicor fundindo-se com as nuvens coloridas em tons de azul claro,celeste e anil. Tons cinza de todas as nuances mesclados de fiapos de nuvens brancas tão tênues que mais pareciam véus de delgados fios de seda. E sob aquela aquarela viva ele a viu voltar-se para ele, lentamente, provavelmente magnetizada pelos insistentes olhares lançados por ele. Também o fitou fixamente por longos minutos. Ficaram lá, um olhando para o outro, hipnotizados, encantados.

Marina... Marina... Descobriu depois o nome dela. Morena em flor, pele trigueira, cabelos longos de um negro tão intenso que lembrava os cabelos de Iemanjá. Eparrei! Minha mãe! Tudo nela lembrava a rainha das águas, até o vestido justo azul celeste com pequenas flores brancas bordadas que ela trajava lembrava a entidade. O vestido mal disfarçava o corpo esbelto de delicados seios e cintura fina sustentada por bem torneadas pernas. O vestido azul celeste bordado de pequenas flores brancas a transmutava em um ser mítico, transcendental. Não existia a menor dúvida, aquela mulher era a sua Iemanjá. Aquela mulher lhe pertencia. Ele, daquele instante em diante viveria para conquistar aquela mulher. E para aniquilar de vez qualquer dúvida sobre o desejo de ter aquela mulher, ela deu alguns passos para o lado e emoldurou-se sob o arco-íris e os raios do sol poente. Naquele instante a cabeleira negra ondulou soltando reflexos de ébano. Cupido, implacável, sorriu de orelha a orelha.

Até hoje, passados tantos anos, décadas, eras, ele não lembrava como chegou ao lado da mulher amada. Sim, ele a amava muito antes de conhecê-la. O que lembrava é que num rompante a estava cumprimentando e audaz, se apresentando. “Boas tardes! Muito prazer! Meu nome é José Maria da Silva. Um nome comum para um brasileiro comum”. “E a sua graça...?” Percebeu que ela, a despeito de há poucos instantes o ter olhado fixamente, agora baixava os olhos recatadamente. Longas e lindas pestanas cobriam os olhos de um castanho intenso. Ficou lá, parado, o gesto desprendido da aproximação agora sem significado. Ele sem nada a dizer, encabulado, tímido. Ela também calada, olhos baixos, o colo arfando, as mãos sem saber o que fazer com o leque. A amiga olhava alternadamente para os dois. Um sorriso jocoso insinuava-se em seu rosto. Divertida, a amiga deu as costa para os dois e discretamente cobriu a boca para conter um riso galhofeiro que ameaçava romper constrangendo ainda mais o casal encabulado.

Para quebrar o silêncio inoportuno ele comentou apontando para o horizonte. “Olhe, o sol acabou de se por, ficaram só os raios por detrás das nuvens, iluminando-as. Elas estão parecendo fogueiras de São João. Como é bonito o Por do Sol, aqui, neste lugar”. Lentamente ela voltou-se para o poente e respondeu. “É verdade, é lindo por demais. A propósito, meu nome é Marina... Marina Silva dos Santos. Um nome comum pra uma moça comum”. Sorriu timidamente da sua audácia em imitá-lo na apresentação cordial. Ele derretendo-se todo com as duas covinhas em sua face, respondeu. “... Silva dos Santos pode até ser comum, mas, Marina... Marina é um nome diferente. Significa o quê?” “Não sei. Minha mãe nunca me disse. Ela conta que me deram o nome em homenagem ao mar. Nasci no mar, em um navio quando minha família estava de mudança de Fortaleza, capital do Ceará para cá, para a Amazônia”.

Depois daquele primeiro encontro, ele esqueceu o destino final de sua viagem. Fincou pouso em Porto Velho. Falou com os pais dela, pediu a moça em namoro. Ainda lembrava do ‘queixo caído’ do pai de Marina. Os olhos arregalados da mãe, e a pergunta inevitável. Cuidado de pais com a segurança dos filhos. “Mas senhor José Maria, o senhor acabou de chegar à cidade, conheceu Marina hoje, o senhor é doido ou o quê?” Riu divertido do gesto inopinado. Os demais encontros progrediram céleres. No início, tímidos, encabulados, quase platônicos. Aos poucos foram ficando mais ardentes, beirando o profano. Noivaram e casaram. Para a família e as demais pessoas ela transformara-se em uma anciã de cabelos brancos. Para ele, ela continuava a linda morena do primeiro encontro. Nada havia mudado. Só o amor que sentia por ela havia mudado. Tinha ficado mais intenso. Sempre que ele via o Por do Sol, não importava onde estivesse, no mar, no rio, na selva ou mesmo na cidade, o Por do Sol sempre lembrava Marina, a sua Marina.

Em meio aos seus devaneios nem percebeu que a manhã avançava rapidamente. Dentro em pouco chegariam os filhos, netos, bisnetos, noras e genros. A casa ia encher-se da algaravia alegre dos entes queridos. Era certo que Marina ia ficar muito cansada. Melhor pedir que filhos e netos comedissem seus afagos, beijos e abraços para não agita-la demais. Quando ficava cansada ela dormia além da conta. Às vezes dormia até altas horas do dia. Não se alimentava direito.

De nada adiantou a vigília, os pedidos. Parecia que o carnaval continuava em sua casa. Corre-corre das crianças, pipocos de abertura de latas de cerveja, risadas soltas pelos corredores e salas. Música em alto volume. Entra e sai na alcova de Marina. Beijos e pedidos carinhosos. “Vovó tome esse suquinho”. “Ô Bisa! Come mais um bocadinho”. “Eu sabia, é só pedir com jeito, ela come tudinho, né Bisa?” “Nossa, vó...! Como você está bonita?” Os filhos, filhas, netos e bisnetos eram só atenção. Adoravam a anciã. E mais ainda depois que souberam que a querida Bisa, Avó e Mãe não estava bem.

E o dia foi passando. Aproximando-se o final da tarde todo mundo foi para o quintal. “Ô quarta-feira ingrata, chega tão depressa...”. Preparar o famoso caldo de feijão, receita de Marina. Segundo ela, levantava até defunto. A Casa esvaziou. Ninguém pelas salas e corredores. As risadas, as conversas soltas, a correria das crianças tinham sido transferidas para o amplo quintal. A paz reinava no interior da casa. Um silêncio total, reconfortante.

De súbito, alguém deu o alarme. “Mamãe, a Bisa não está na cama”. “Paiêeee, Mãeeeeê! Vovô também sumiu. Já procurei na casa toda...”. Um bisneto desconsolado comentou. “A cadeira de rodas da Bisa também desapareceu. Fui procurar ela, lá atrás da porta, queria brincar e não encontrei nada. Tava tudo vazio”.

A família entrou em polvorosa. O quintal ficou deserto. Carrinhos de bebês abandonados. A casa regurgitou de gente. Bêbados emergiram de seus estados etílicos. Algumas mulheres cheiraram sais, outras preferiram a velha e boa água-com-açúcar. Homens saíram às ruas, telefones foram acionados. “Na esquina não estão, o carro deles está na garagem, não falta nenhum carro na frente da casa. No meio da confusão uma voz baixinha de uma menina, bisnetinha, esquecida num canta da sala. “Vi o Bisa pegar a Bisa, colocar na cadeira e sair com ela. Foram lá prá beira do rio”. Um tio recém saído da bebedeira sentiu ganas de torcer o pescoço da infanta. “E por quê você não avisou a gente que eles foram para a beira do rio? Ficou aí, calada, feito uma porta?”. “Ora, tio...! E alguém perguntou...? Tava todo mundo feito barata tonta. Achei que era alguma brincadeira de carnaval”.

Saíram em comitiva. Todos falavam ao mesmo tempo. Os mais velhos preocupados, os mais jovens, adolescentes em geral, divertidos. “Papai pirou. Abilolou de vez”. “Isso é coisa se faça? Pegar a vovó e sair assim... Que falta de responsabilidade... É muita inconseqüência”. “Taí! O Bisa pegou pesado. Radical. Vai ver, tava de ‘saco cheio’, em casa o dia todo, agüentando a turma encher a cara”. “Cala a boca, menino! Só abre a boca pra falar besteira!!”

Chegaram à Beira Rio. Espaço de bares e restaurantes ao longo de um calçadão por detrás dos barracões da Estrada Ferro Madeira Mamoré que a prefeitura havia reformado. Nos dias de carnaval o povão tinha homenageado o Rei Momo além da conta. Foi farra dia e noite. A Bandinha de “Mestre Tico” esteve incansável nos dias de carnaval. “Papai parece que é doido, trazer mamãe nesta hora para a beira do rio. Não sabe que ainda pode haver muitos bêbados amalucados por aqui?”

“Olha lá! Os dois, na ponta do barranco. Estão olhando para o outro lado do rio. Estão tão entretidos que parecem duas estátuas”. Apontou a menininha que viu os dois saírem de casa. “Até que enfim essa menina serviu pra alguma coisa”. Comentou um tio, irritado.

“Pai, o senhor ficou louco? Trazer a mamãe, nestas condições para a beira do rio, e ainda a esta hora? Não vê que a doença dela requer cuidados especiais?” “Eu sei filho. Eu sei que esse mal, essa ‘coisa’ que atacou Marina. Esse tal de Alzheimer, foi deixando a coitada esquecida. Agora, você viu, ela nem falar, fala mais comigo. Na última consulta, na semana passada, o médico disse que essa ‘coisa’ havia chegado em seu estágio mais avançado, e que para ajudar no tratamento era para eu deixar música tocando no quarto dela, acariciar suas mãos com óleos perfumados, e, esse conselho, ele nem precisava me dar, sempre fiz massagens nas mãos dela o tempo todo, com o maior prazer. O médico disse também para mostrar a ela o que lhe dava mais prazer em ver. E olha, meu filho, o que ela mais gosta de ver na vida é o Por do Sol no Madeira. Olha só que tela linda”. “Eu sei pai, mas precisava trazer aqui?” “Precisava, filho, precisava... Se não dá para levar o Por do Sol até sua mãe, vou trazê-la para vê-lo todos os dias, até o fim de nossos dias. E não esqueça, hoje estamos fazendo sessenta anos de casados. E o mais importante de tudo, nós nos conhecemos aqui, neste barranco, ao Por do Sol, no barranco do Rio Madeira. Nunca mais nos separamos. E, filho, escute bem, enquanto eu tiver forças vou trazer a sua mãe para ver o Por do Sol, com ou sem recomendação médica”. “Desculpe-me, pai. Perdoe a minha estupidez. É que às vezes a gente esquece que os velhos, nossos pais, também amam. E eu juro pai, diante desse Por do Sol, que quando o senhor não tiver mais forças para trazê-la, eu trago os dois”. As mulheres da família, que não eram diferentes das demais mulheres, sempre emotivas, ao ouvirem a conversa entre pai e filho, choraram emocionadas. Os homens, eternos farsantes, para esconderem as lágrimas baixaram a cabeça e engoliram em seco. Depois, em almoços dominicais, sempre tinha alguém jurando ter visto um dos homens da família chorar igual a uma criança.