Sua majestade a água
SUA MAJESTADE A ÁGUA
A Amazônia, por suas peculiaridades, comprova que a terra é o planeta água. A substância responsável por todas as formas de vida sobre a terra, estabeleceu sua morada nos rios e igarapés, furos e paranás, estuários e poços, cacimbas e nascentes que irrigam as terras verdes da grande região. Sobre as águas desliza a riqueza, os produtos são escoados celeremente, penetrando nas veias abertas no interior da floresta. A massa líquida faz germinar as sementes exóticas, premiando com a exuberância da vegetação, o chão coberto de húmus.
Na única vez que Jonas viajou de navio para Santarém teve oportunidade de contemplar a beleza do Rio Amazonas e seus afluentes, as embarcações que cruzavam os rios e igarapés. A massa de água comprimida entre as margens distantes. Do convés do navio, o menino olhava para o leito enrugado do Amazonas e conferia os modelos de barcos que procuravam destino no curso das águas. Havia navios de grande calado, embarcações menores, saveiros, lanchas, paquetes, popopôs e canoas. Crianças nuas, de tenra idade, em cascos de madeira, se aproximavam do navio em que ele viajava, enfrentando a turbulência das ondas geradas pela passagem do barco, de onde Jonas mirava, admirado os pequeninos em sua luta contra as águas revoltas. A convivência diária com o grande rio ensinara aqueles fedelhos desnutridos a domarem o torvelhinho que se aproximava. O remo era manejado com incrível habilidade, para quem talvez ainda não soubesse andar direito. Para o ribeirinho, nadar e dominar o rio, suas riquezas e seus mistérios, é uma questão de sobrevivência. O caboclo Atanázio explicava para Jonas, que as crianças vinham pedir comida para os passageiros. Frutas, bolacha, pão, biscoito, eram atirados dentro de sacos plásticos para serem apanhados pelas crianças ou por mulheres grávidas. Elas já sabiam o horário das linhas de barco. O barulho do motor era o aviso de que o navio já estava próximo.
Mais adiante, Jonas avistou, na margem do rio, um cemiteriozinho, com poucas covas. O caboclo Atanázio novamente transmitia sua experiência - aurida em dezenas de viagem pelos rios da Amazônia - para o pequeno Jonas. Ali - explicava ele para o filho do doutor Moura - eram enterrados os ribeirinhos, canoeiros, pescadores, lavradores, balateiros, seringueiros, caçadores, enfim, as pessoas humildes que habitam as margens do grande rio e vivem do extrativismo amazônico. Os males mais comuns e doenças que retiram daqueles corpos o sopro da vida são conhecidos: sarampo, catapora, malária e a peçonha da mata. Crianças, anjinhos, morrem de sarampo. Os velhos morrem de malária. O velho Tomás, lenhador antigo, foi ferrado por uma surucucu. Conseguiu sobreviver ao veneno da bicha, mas seu corpo frágil de velho, não resistiu ao coice de uma árvore que derrubara a machadadas. O pé de samaúma quebrou-lhe as costelas. Ele ainda sobreviveu por três dias, mas não suportou a hemorragia intensa dos pulmões, afetados pelas lascas da árvore.
No período das marés altas, o rio invadia o cemiteriozinho, desrespeitando o sossego e o silêncio dos mortos, quebrado apenas pelo pio da suinara, a coruja agourenta, nas madrugadas enluaradas. A rasga mortalha agourava mais um cristão, com seu cantar assustador. Atanázio conhecia aquela história. O povoado ficava sobressaltado e tenso ao ouvir a ave noturna. Quem a suinara, com seu canto sombrio, anunciava a morte em breve? A água barrenta do rio penetrava nas covas rasas, cavadas com instrumentos toscos : terçado, ferro-de-cova, enxada. A água queria de volta os nutrientes que fornecera para alimentar aqueles corpos que durante muito tempo viveram na margem das águas. Quando retornou de Santarém e desembarcou na escadinha do Ver-o-peso, o filho do doutor Moura, estava convencido de que os políticos, o Estado, as pessoas que habitam as cidades ribeirinhas, alimentadas pelos frutos colhidos nos rios, ainda devem um monumento a ser erigido como tributo perene à sua majestade a água, a rainha única destas paragens do norte, ameaçada pelo desmatamento e pela poluição que perfilham a senda do progresso. Do progresso anunciado pelo governo.