Internéticos

Como acontece na maioria dos textos que a gente lê por aí, tudo isso ocorre às três da manhã. Aquele horário onírico, entre o dia e a noite, como um portal mágico que separa o bem e o mal.

Ela, sem sono, foi para a cozinha preparar sua única especialidade: café instantâneo. Será que é verdade que café tira o sono? Se bem que não tinha nenhum sono mesmo... e sua última esperança de dormir tinha ido embora horas antes, junto com seu namorado, que a partir daquele dia seria carinhosamente chamado de “ex”. Crápula, para os íntimos.

O cara inventa um macarrão que cozinha em três minutos e vai o resto do mundo na onda. Sopas. Pudins. Mousses. Até café. Até homens, meu Deus. Onde ela estava mesmo com a cabeça? Ah, sim, no café. Só ferver a água, incluir açúcar (ou adoçante) e pronto: poderia chorar bastante agora, mas pelo menos faria bem agasalhada e com a xícara na mão. Enganara-se, homens não são de preparo rápido. A gente apóia, ajuda a estudar, cuida da febre, arruma a casa dele pra mãe dele não saber que ele torrou o dinheiro que deveria ser para uma empregada... pra quê? Quando eles crescem, arrumam bons empregos e se firmam na vida, descobrem que “você é como uma irmã...”. Eles não são instantâneos. Se fossem, ela não seria trocada por uma menina que tinha a idade que ela teve há uns 8 anos atrás.

03:07:44 Czar entra na sala

Ele estudava História. Deveria estar, naquele momento, preparando um trabalho para o dia seguinte, mas não costumava ter muita inspiração de madrugada. Até abriu o livro para saber mais sobre os Romanov, ligou uma musiquinha suave, tomou um pouco de leite. Sua vontade era plantar bananeira em cima da cama pra ver se vinha alguma boa idéia para o trabalho, mas nada. Nunca fora compensado com o benefício da paciência. Deixou suas coisas num canto e foi ligar o computador. Sorriu. Bem sabia que seus colegas buscavam trabalhos prontos na internet, mas ele queria se esforçar. Grande coisa, a essa hora todos eles já deviam estar com tudo pronto e ele ali, entrando numa sala de bate-papo, com o apelido ridículo de Czar. De Czar ele não tinha nada.

A que ponto chega o nível de solidão humana. Nunca pensou que pudesse ter tanta gente sem somo navegando àquela hora. E o pior de tudo é procurar gente com algum bom assunto, tarefa difícil, pelo visto. Terrivelmente tímido, o positivo era saber que aquelas pessoas nunca o veriam, falasse o falasse. Decidido a conversar e encontrar alguma jóia rara naquela Gomorra moderna, só fez pausa para satisfazer os caprichos de uma urgência vital: a fome. Foi fazer um macarrão instantâneo.

Ela odiava televisão. Principalmente àquela hora, que não dava nada interessante. Não entendia nada de cozinha, nem de homens e acabava de descobrir horrorizada que não sabia nada de filmes. O único paliativo era que o café estava bom.

As coisas na vida nunca acontecem como nos filmes. A mocinha havia dado à luz um bebê há poucos dias e estava lá toda linda e magrinha. Há meses não sabia o que era um chocolate. Tudo em nome da boa forma que ela ainda não tinha, mas pretendia ter. Mas o que matava mesmo eram os salgadinhos co-internet. Ela não conseguia ficar no computador sem comer umas bobagens para matar o tempo. Assim, acabou fazendo disso uma prática: quando queria enterrar a cara no pecado da gula, ligava o computador, pra se convencer de que não estava fazendo nada de errado. E no fundo não estava mesmo. O crápula sempre brincava com isso. Chamava a pobre de comilona, só pra sacanear. Deu uma ponta de saudade, ela não sabia se era por pensar nele ou nos salgadinhos.

As saudades vêm e vão sem que a gente se dê conta dos motivos. Pode ser de um momento, um cheiro de xampu, um filme cheio de melodrama. Essas misturas loucas de dor, desejo e saudade dão um nó no peito, daqueles que a gente nem sabe explicar, só sabe sentir. Nada disso faz sentido, mas é o combustível dos sonhos, é a força que leva a gente para o minuto seguinte, esperando ter momentos tão bons quanto os que nos acendem a memória.

Ela decidiu que a saudade era dos salgadinhos e ligou o computador.

O microondas foi uma invenção e tanto. Nada como um bom macarrão com queijo, bem de madrugada, algumas horas antes do seu professor de História olhar pra você com cara de “eu sabia que você era um fracasso total”. Entrava cada apelido maluco naquelas salas de bate-papo. Às vezes ele pensava na telepatia irremediável que unia milhões de pessoas na mesma solidão por detrás de telas. Ou na mesma falta de sono por causa de um trabalho da faculdade. Tem-se a ilusão de que o grande irmão une-se às pessoas. Mentira. Ele estava ali, com quinze homens, nove mulheres e dois possíveis travestis, mas, no entanto, totalmente só.

Não suportava queijo. Lembrava infância de roça, beijo de tia gorda, primos espinhentos, besouros e carrapatos. O pai fazia queijo na fazenda da avó, quando ela ainda era pequena. Briga por herança, tio olho-grande, boteco, enfim, perdera sua parte na fazenda e suicidara. Não lembrava muito bem disso, mas sua mãe nunca esquecia. Queria que ela casasse, lhe desse netos. Bem, tinha chegado bem perto disso, não fosse o crápula e a sua ruivinha de aparelho dentário. Sua mãe não queria vê-la assim, tão inerte.

Filhos podem ser uma coisa ótima a princípio, mas chega um momento em que você não sabe mais onde aquilo vai dar, se vai conseguir levar tudo em frente sozinha, era por isso seu medo. Estava tão só. O apelido de Messalina não condizia muito com a sua imagem no momento, mas queria conversar. Falava com Czar. Coisas vistas, visitadas e vividas.

Trocou o salgadinho de queijo por um de calabresa.

Se tivesse que dar uma nota, a dela seria oito. Engraçada, culta, mas um pouco revoltada demais com a vida. Falava sem parar e nunca esperava respostas. Mas como era graciosa. Poderia até ser uma vovozinha de trezentos anos, mas como lhe parecia bela às três da manhã. Já nem confiava mais nos seus próprios sentidos, pois há muito não se envolvia com uma mulher. Chegou até a passar uma idéia absurda na cabeça, envolvendo um ônibus, muita cara de pau e um sim da mocinha, é claro. Mas ela disse que estava com sono, ele acabou dizendo que também dormir. Talvez não fosse desta vez. Ele lembra que ainda imaginou como seria ela, antes de ir dormir.

Legal o cara. Falava bem, entendia de política e nem deve ter reparado que ela estava meio bêbada. Ou reparou? Pouco importa, já era tão tarde. Tinha herdado do pai suicida a capacidade quase palpável de falar demais, encher a paciência, passar vexame. Ela se despediu antes que pudesse ver num desconhecido um amor há tanto esperado. Mas como era inteligente! Fazia faculdade, dava aulas de espanhol. Queria perguntar de onde ele era, se tinha namorada. Não deu tempo. Tão carinhosamente ele cortava os assuntos, fazia chacota dos outros colegas da sala, dizia que ia fingir uma doença naquela manhã. O não dito ficou só na imaginação e quem sabe algum dia sirva de alguma coisa. Era tão tarde... e nada de sonhos adolescentes de Rapunzel via fibra ótica.

Nunca se encontraram. A Rapunzel pós-moderna nunca soube, mas ele morava em Petrópolis e o professor teve uma crise de sinusite, nada mal. Ele conseguiu fazer o trabalho e entregou ao faltante, na semana seguinte, com cara de “que coisa feia, professor”. Ela namorou um rapaz, casou, mas não teve filhos. O crápula engravidou a menina do aparelho. Dormiam em Blumenau toda sexta-feira.

Sempre acontece. Em todo lugar da rede tem gente interessante, divertida, inteligente. Na maioria das vezes não tem encontros, nem beijos, nem viagens intermináveis de ônibus para encontrar o moço com o cravo na lapela. É tão estranho e tão bom. Pena que finais felizes sejam raros e, no fim, a gente desliga a telinha e vai dormir. Sozinho, talvez mais do que antes.

Para não ter tristeza é simples: é só imaginar sempre que o piadista versado em História que está do outro lado da tela é casado, vesgo e mora em Bangladesh. E se ele for um vovozinho de trezentos anos... hum... melhor ainda.