Uma saudade que eu não conhecia

Ao findar da tarde aquilo me cortou o coração. O sentimento desprazeroso de estar diante do futuro e automaticamente sentir-me num passado muito agonizante. Simplesmente porque eu vivi aquilo há anos atrás. Exatamente aquilo. Sim, eu vivi o que se vê hoje, na rua de casa. Era simples: uma bola amarrotada fazia toda rua concentrar-se na minha frente - na frente da minha casa. E a diversão não era porque existia alguém que sentia vontade de um movimento. Nascia todos os dias uma paixão desesperada pela presença dos outros, das brigas e gargalhadas. Aqueles mesmos que um dia pisotearam as orquídeas da frente de casa. Eu arregalei meus olhos e levei as mãos à boca, como sinal de que havia alguma coisa que uma pessoa não poderia descobrir. E pisoteou-me minha mãe aos tímpanos quando enrugou a sobrancelha arqueada, guarnecida de pêlos bem retirados e entortou a boca ao ver o acontecido. E nesse dia, eu jurei: nunca, nunquinha devolver o espaço da frente de casa [eu sempre o emprestava, porque sempre achei que fosse meu]. Eu não devolveria a rua para meus colegas, jamais emprestaria minha tarde de risadas novamente às mãos vermelhas e inxadas de tanto empurrar contra o vento aquela bola. Jamais. Infelizmente a promessa desses dias rendiam-se aos pedidos sedutores de nossas amizades. Mas apesar de tudo, era fácil: é que eles já sabiam da minha triste bondade de ceder aos meus próprios desejos avassaladores, de menina.

Ao findar da tarde aquilo me cortou, de verdade, o coração: porque não tinha mais como retroceder. Passou. E pensando bem, eu poderia ter dado pouquinho mais de valor pra essa época, não? Talvez eu simplesmente diminuiria o hábito de sair daquela roda de bola para entrar correndo na cozinha, tomar um copo d'água tão gelado que de tão fazia suar o copo e essa água escorria até o pescoço. Era de dar arrepio. Depois, quando aos berros de minha mãe, guardava o jarro na geladeira, novamente, corria em disparada, levantando até as pedras do meu quintal, tamanha velocidade e sede; porém essa era de bola. Se eu soubesse, não me daria o direito de intervalos.

Se disso eu soubesse, jamais sairia daquele hoje cemitério que naquela época vivo de futuras lembranças para, simplesmente, pedir uns centavos ao meu pai para comprar umas outras balas na mercearia. Aquelas redondas e enormes, de canela. Aquelas, sim. Mas isso, não! Se soubesse, não as desejaria.

Mas como a dor da lembrança é cruel com todos aqueles que dão olhos à ela -e eu sou uma dessas-, pude sentir doer o coração. E a alma, e a lembrança, e o umedecer dos meus cílios. E fazer vibrar as pálpebras de força contra a tristeza que sentia o âmago.

E hoje a história se repete com os outros, os de outra geração. Se eu pudesse, os alertaria: saiam menos dessa roda, percam menos tempo com trocados. Sintam mais o alvorecer com cheiro dessa terra. Terra que suja os pés, que rala as mãos e os joelhos. Mas sinta. Esse momento excentricamente prolongado aos olhos de quem o vive; porém loucamente desejado aos que já o deixaram.

Por isso eu de coração cortado, chorei e ri -de tristeza.

Ao findar a tarde aquilo me cortou o coração porque eu invejei: não era eu ali.

Heloisa Rech
Enviado por Heloisa Rech em 13/02/2008
Código do texto: T858434
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