Reverberação

Não sei bem como tudo aconteceu, mas só sei que estou aqui, de corpo e alma com essas reflexões. O tempo decorrido, tenho cá minhas dúvidas, mas por ora não me interessa. O que me prende em ficar a refletir é essa agonia de morte, quando a sensação é de que devo fugir, fugir e não mais voltar a essas imaginações. Porém não tenho como me safar, escapulir-me, porque dentro de mim há um abismo profundo que não consigo medir.

Lembro-me vagamente de um rosto desfigurado, de mãos crispadas, de corpo contorcido, de boca rasgada num desenho macabro: cenas de horror, em poucos segundos, mas duradouros demais na minha imaginação, principalmente agora. Tento afugentar esses pensamentos terríveis, na medida em que alguém fala comigo, toca-me o braço, tenta me puxar à realidade. Sinto que o assunto é filosofia, falando da visão de mundo, de sofismo, de Platão, Sócrates. Tento sair do devaneio, mas não é fácil. Novamente os braços roçam nos meus, os hálitos bafejam em minha direção, os toques são cada vez mais fortes e impertinentes. Venho à tona.

Estava num ônibus, e tinha certeza que ele ia em direção à Universidade. As minhas amigas falavam alto, riam, jogavam palavras no ar, puxavam conversa comigo, colocavam-me a par dos últimos acontecimentos, tornaram-me real. Sacudi os ombros em sorrisos, troquei palavras monossílabas, mexi com os meus cabelos, jogando-os para trás, num gesto comum e repetitivo que teimava em querer deixar, mas não conseguia. Aliás, ultimamente muitas coisas eu não estava conseguindo deixar: vícios, pensamentos sobre o passado e nem dar atenção ao marido, acasalar-me com esmero. Sim, até sexualmente tinha dificuldade de relacionar-me. Às vezes o marido vinha com gosto, esquecido dos problemas, querendo fazer o papel de macho, numa contemplação cotidiana de quem estava vivendo mais de dez anos juntos, e vinha sorrateiro, mas vinha. Quantas foram às vezes em que me dava conta e tudo já tinha passado. Fechava as pernas e tentava dormir, virar para o outro lado, livrar-me do compromisso, ficava a sós. Teimava em esquecer tudo o que acontecia, mas era só o pensamento divagar por estradas, que lembrava curvas; por planície, que lembrava sol; por mares, que lembrava chuva, depois carro, freios estridentes, batida, acidente: morte. Enfim, dormia mal, remexia-me na cama, balbuciava palavras desconexas, tinha pesadelos. Um homem, de olhos fechados, de nariz torto, de boca com filetes de sangue, de cabeça esfarelada. Ele vinha ao meu encontro. Não entendia por que ele vinha direto, se estava com os olhos fechados. Talvez pelos braços erguidos em minha direção. Ele sabia do meu estado. Estava aos frangalhos, os nervos apavorados, o coração aos estrondos. A vontade era de gritar, de correr, mas não conseguia. Sentia que algo me molhava, e via que era uma chuva fina que caia, inebriando os meus sentidos. Molhava minha cabeça, meus cabelos e meus olhos. De repente, não via ninguém, mas eis que surgia uma mulher. Tentava decifrar suas feições, mas só conseguia ver seus cabelos: curtos ao pescoço, castanhos, lisos, bonitos. O homem desapareceu, mas não, ele estava no banco do carro, preso às ferragens, o rosto banhando em sangue, o pára-brisa esfacelado, grande parte na sua cabeça. Ele, provavelmente morto. Eu, com certeza também morta. Quase sempre acordava com um grito, e o meu marido acordava junto e vinha me consolar. Abraçávamo-nos, não dizíamos palavras, elas não eram necessárias, pois sabíamos de tudo. Ficávamos assim por um longo tempo, e depois me recostava e dormia. O pesadelo não voltava mais.

Novamente no ônibus, repleto de pessoas alheias, de gente de toda espécie. Meu primeiro dia de aula. Lembrei-me do beijo de despedida do meu marido e do esquecimento dos filhos que ainda dormiam: duas lindas crianças. Ansiedade no peito, mesmo com aqueles pensamentos atordoados, mas precisava esquecê-los.

Na Universidade, conheci minhas colegas de sala de aula. Todas com sorrisos nos lábios. Tinha um deles também nos meus, até porque chegar a uma faculdade não era tão fácil, principalmente depois de tudo que passei. Talvez se um dia tivesse que falar com as colegas sobre isso, certamente elas teriam uma história parecida ou pior do que a minha para contar, e o fato de ter galgado um espaço na universidade era uma vitória acima de tudo.

Apertávamos as mãos, nos abraçávamos. Aos poucos nos conhecíamos, trocávamos palavras, refletíamos sobre as provas do vestibular, ríamos. Conhecíamos os professores, tecíamos comentários, enfim, esquecíamos dos problemas e aprofundávamos em teorias, deixávamos a prática de lado, o cotidiano, a família, os problemas. Éramos pura filosofia, nos preparávamos para o magistério.

Na sala havia mais mulheres do que homens, e isso era um ponto importante porque sentia-me mais a vontade. Dezenas delas passearam por minha cadeira, tanto quanto fui às delas. Numa dessas colegas, apertei a mão de uma. Chamou-me atenção pelos seus cabelos curtos ao pescoço e seu sorriso maravilhoso. Os seus olhos eram graúdos e sua voz suave. Sem querer dar-me de vidente ou sabedora de tudo, perturbou-me a idéia do que havia por trás daqueles olhos e das suas feições, algo que ela escondia. Não era de se imaginar mais profundidade porque todas as outras, inclusive eu, também escondia muitas coisas. Mas o que aquela colega disfarçava era algo mais forte. Deixei para lá.

Várias, então, foram as aulas depois desse encontro, e nos tornamos íntimas, ali mesmo, colegas de sala de aula, de discussões sobre filosofia, educação e tantos outros campos.

Em casa repassei para meu marido sobre as aulas, a felicidade de estar numa universidade, das amigas. Rapidamente tracei um perfil de cada uma, ou mais precisamente daquelas que mais se afinaram comigo. Ele simplesmente deu de ombros e o tema foi esquecido. Mergulhei nos afazeres da casa, dos cuidados com as crianças. Pensei estar feliz, muito feliz.

Muitos dias depois, acordei de sobressalto. O peito era só angústia, o coração a sofrer, os nervos abalados. Novamente o sonho veio, agora com força, com todas as cenas marcadas, ponto a ponto, detalhe a detalhe, quadro a quadro. Revivi aquele dia terrível, opaco, chuvoso, inesquecível. Minha querida, meu marido consolava-me, tudo já passou... já faz tanto tempo, por que não esquece tudo isso? Como esquecer, querido? Quanta complicação aquele fatídico dia nos trouxe... e ainda está trazendo. Regina, o que a tormenta...? Não sei, respondi com lágrimas nos olhos. Deixe para lá, meu amor. As coisas aconteceram, não foi culpa nossa. Foi um acidente inevitável, como outro qualquer. A diferença é que foi conosco, nos envolvemos por uma fatalidade. Ele morreu, está certo, mas nós estamos vivos. Tentei não me envolver emocionalmente, mas em vão, e disse perplexa. Às vezes sinto-me morta, por sob aquele carro, tragicamente marcada por um dia terrível. Não vamos nos recordar, por favor! O meu marido consolou-me.

A súplica do meu marido foi debalde. Sozinha em casa, as crianças na escola, o marido no trabalho, e eu nos meus cotidianos afazeres, rabisquei na memória o acidente.

Era um dia de chuva. Ela caia fina, mas persistente. Estávamos no carro nós quatro. Meu marido risonho com as crianças. Estávamos felizes, mesmo com aquela chuva, impedidos de baixarmos os vidros, o ar abafado nos sufocava, a paisagem nos abandonava. Passavam por nós carros velozes e aumentavam os respingos no pára-brisa, deixando-nos para trás. Olhei para o velocímetro do veículo, e marcava oitenta quilômetros. Estávamos numa velocidade compatível com a estrada, com a paisagem, só não com os outros carros. Mas para que correr, se a chegada seria certa? Para que se preocupar com os outros que passavam, voavam, levantavam respingos d'água, encharcavam-nos? A estrada era de mão única, não havia perigo. Mas o perigo veio. O choque, o inevitável, o barulho, o horror, os vidros quebrados, a chuva a respingar, a morte escancarada no rosto do outro motorista O estado dos meus filhos, os gritos, meu marido saindo do carro, nervoso, minhas crianças deitadas no banco de trás, vivas, e eu desequilibrada na emoção, os olhos não querendo ver, o coração acelerado e a chuva que não parava. Criei coragem, e deparei-me com o que veio na contramão, decerto bêbado, decerto morto, com certeza marcando nossa vida para sempre. Vislumbrei que estava só.

Dias depois, repercussão, o noticiário, as audiências, a viúva do motorista imprudente a nos telefonar, meu marido a responder, o tempo a passar, as coisas esfriando. E hoje essa emoção que não pára, esse desequilíbrio, esse martírio, essa vida que teima em querer mostrar-me que tudo passa, mas que deixa sulcos, feridas, cenas impertinentes.

Voltei às aulas, à Universidade, aos braços de minhas colegas, à filosofia. E nesse período o assunto era sobre visão de mundo e eis que me deparei com palavras que me elevavam, embora também me sufocavam, me constrangiam, me deixavam pensativa por demais. Por causa disso, o pior aconteceu: a vida me pregava uma peça, os círculos da vida, os passos dados, as voltas, o mundo de tão grande, pequeno. E filosofei um pouco antes desse novo acontecimento, que não me parecia novo, via o mundo de outro ângulo. Isto era o início de tudo ou a continuidade de tudo ou o fim de tudo, não sabia. O texto falava de que se devia soltar-se das amarras, de ir em busca da liberdade, da descoberta do novo, mesmo a deparar-se com o enigma que era a vida.

A colega de cabelos curtos ao pescoço, entre um texto e outro falava, desabafava, lembrava do seu passado, do outro ângulo de vida. Não me dei conta. Voltei aos textos. Eles chamavam a atenção sobre o ponto comum em que o homem devia trabalhar o novo, mesmo convivendo com o velho, com a mesmice, com o cotidiano, com o trivial. Devia soltar-se das amarras que o prendiam nas cavernas circunstanciais que a vida se lhe apresentava, desde a curta visão, até o envolvimento voluntário daquilo que se chamava "comum". O homem, como a águia, devia posicionar-se com coragem para alçar vôos mais altos, mesmo que achasse que suas asas lhe eram curtas ou que as mesmas não estivessem a seu favor. Devia subir, procurar outros ângulos, e buscar apreender do conhecimento para suplantar-se ao que, parte da vida, lhe mostrava como pueril e simples. Devia ainda tornar-se criança, a saber, que o mundo era uma coisa nova, sempre.

Intervalo, tomada de respiração, a colega voltava ao assunto de antes. Aquele texto fez-lhe lembrar de algo, de um tempo sarcástico, voltava-se para mim, para outras colegas e exclamava, com os olhos marejados, o semblante pálido, as mãos, que seguravam as folhas, trêmulas. Era viúva, perdera o marido num acidente de carro.

O texto voltava à tona, o professor interrompeu, achava que ia sucumbir-me, mas o hálito da realidade me bafejava nas faces.

Preso às circunstâncias da vida, nada mais simples e comum era deixar-se conviver com o que, diariamente, a vida oferecia. Nada mais simplório do que se vendar os olhos à claridade que a vida apresentava, quando a luz tendia a querer mostrar-se sempre. Nada mais confortável deixar-se levar pela ordem, pelas regras impostas, do que superá-las dentro de uma descoberta que teimava em querer expandir-se. Nada mais comum do que ver a vida no ângulo em que se pensa que se enxergava a amplidão.

Acidente de carro, o homem na contramão, o marido morto. Curiosa, cheia de coragem - não sei onde a encontrei - perguntei quando acontecera. A resposta veio trôpega, porém veio aos meus ouvidos sensibilizados. Engraçado, balbuciei, aconteceu um acidente com o meu nesse mesmo dia, mas ele está... Infelizmente o motorista do outro carro...

Ela olhou-me perplexa, boquiaberta. Eu retribui. Boca escancarada, a lamuriar nãos impossíveis. Tentei disfarçar, senti-me culpada. A filosofia teimava em pregar novo ângulo de vida, e eu sem poder praticar coisa nenhuma. Num rápido pensamento angustiante, indaguei-me qual caverna estava me escondendo, sem que pudesse sair em busca da luz. Como pode alguém se banhar duas vezes num mesmo rio? Impossibilidade que imaginava, também, ser inverossímil para a minha realidade. Tantos lugares, tantos momentos, tanto tempo, e tudo fazia crer em dois corpos ocupando o mesmo espaço, o som ser mais rápido do que a luz e a inexistência da relatividade. Meu Deus, e essa moça vir a extrapolar isso tudo, a mostrar-me à pulsação do incrível, do extraordinário. Naquele momento, choramos sobre os textos, salgamos a filosofia. As outras colegas comoveram-se. E o mundo e a vida lançaram duas criaturas frente a frente. Coincidência ou não, tudo era conflito, lamúrias, nossos olhos não mais se encontraram, as luzes não refletiram. Não sabia o que dizer, somente lamentar. Tropeçamos nos próprios passos tempos depois a depararmos com o mágico, com a pulsação da vida, eclodindo e dizendo que estávamos vivas, mesmo com um pouco de morte por dentro.

Não sabia dizer nada, não pensava em nada, mas alguém me acotovelava ao lado, e pedia-me para reparar no texto que se seguia:

O mundo, essa potência universal, abre-se a tantas cavernas, lança grandes intempéries, prega tantas peças traiçoeiras, e fecha-se a muitos enigmas. Cabe ao homem, aquele de visão mais ampla, universal tanto quanto, descobrir a luz, mesmo que ela tente queimar seus olhos; sair da mesmice, do pequeno mundo cercado por pessoas de visões limitadas; lançar-se à poesia da vida, bebendo de uma fonte da sensibilidade, para sentir que os dias não se vão, mas chegam, contraem-se, multiplicam-se; enfim, decifrar tantos enigmas dos mais simples àqueles que ele mesmo contribui para complicá-los.