Botões

Como de costume, por volta de seis e meia da tarde, Marta abre o portão de ferro da casa do pai, Seu Ernesto, que depois de viúvo preferiu viver sozinho. A chaminé de tijolos, mais alta que o telhado da casa, expelia fumaça. A jovem advogada entra pela porta dos fundos com a sacola de supermercado. Vê o velhote sentado em um banquinho, mexendo com as mãos em um dos canteiros de sua horta.

— Vai assar carne hoje, pai?

— Por quê?

— A churrasqueira tá acesa...

— Ah. É só um monte de lixo que eu botei pra queimar.

— Ô, pai... mas quantas vezes eu tenho que falar pro senhor? A gente não queima mais lixo em casa. O caminhão da coleta passa aqui três vezes por semana. Além de ser ruim pra natureza, é até proibido! O senhor não ouve mais o rádio, Seu Ernesto?

— Não.

— Não? Ué, por quê não?

Ele não responde. Em instantes, a moça surge diante da porta com as duas mãos na cabeça.

— Pai!! Deus... o senhor foi roubado! Assaltaram a casa, pai! O senhor nem me ligou! A casa tá vazia e...

O homem permaneceu em silêncio, sem voltar os olhos em direção à filha. Enquanto arranca a tiririca do canteiro com ajuda de uma velha faca de mesa, Seu Ernesto lembra-se de como foi seu dia.

***

Dia de pagamento da aposentadoria. Semana antes, a filha comprou para ele um aparelho de telefone celular. Disse, meio em tom de ordem – essas coisas que os advogados aprendem uns com os outros – que ele devia ligar quando quisesse. Ela mesma poderia ir receber por ele, pagar as contas; bastava ligar e pedir. O máximo que conseguiu foi, a muito custo, fazê-lo atender o dito cujo quando ela telefonava. Quanto ao benefício da previdência social, ele mesmo preferia ir buscar. Já estava mais do que habituado.

Antes de abrir o banco, Ernesto já aguardava diante da porta. Assistiu à fila formando-se logo depois dele. Às dez da manhã, um rapazinho, desses estagiários magricelos, disse que a partir daquela data os pagamentos seriam feitos através dos caixas eletrônicos, para não haver acúmulo de fila nos guichês. Foi uma choradeira de velhinhos reclamando, maldizendo o banco, o governo, o gerente e o estagiário, coitado.

Seu Ernesto, o primeiro da fila, recebe a ajuda paciente do moço. Inseriu o cartão magnético na máquina que só havia visto de passagem.

“Qual o valor?” perguntou o rapaz.

“Dois salários”

“Senha” disse, apontando para o teclado da máquina

“Só um pouquinho” falou o velho, abrindo outra vez a carteira, procurando a papeleta que ele havia recebido no mês anterior das mãos desse mesmo jovem. Encontrou e deu-lhe o papel com alguns números escritos à caneta.

“Desculpe. É o senhor mesmo que deve digitar”.

Tremendo um pouco, os dedos ossudos acompanharam o trajeto dos olhos: papel-teclado-papel-teclado até o último dos algarismos.

“A tecla verde, vô”.

Apertou o botão, já mais seguro.

“Senha inválida, seu Ernesto”.

Novamente, todos os dígitos saíram da papeleta para as teclas.

“Não deu. Tem certeza de que é essa a sua senha?”

Copiou mais uma vez, e mensagem se repetiu.

“Senhor, a sua senha foi cancelada. Agora o senhor vai ter que...”

Sem esperar, Ernesto guardou o pedaço de plástico azul, o papel e a paciência. Virou as costas e ia saindo porta a fora. Atendendo ao pedido de outros antigos companheiros de fila, engoliu o orgulho e foi receber seu dinheiro do caixa de carne e osso.

Atravessou a praça procurando desanuviar a cabeça. Entrou na agência dos correios para esvaziar a caixa postal. Como aceitavam o pagamento de contas, era uma viagem a menos. Abriu a portinhola, retirou de lá as correspondências: as que não eram faturas, eram malas-diretas de cartões de crédito com fotos de pessoas sorridentes de cabelos brancos. Sentado, descolou as laterais das cartas uma a uma, aguardando pacientemente a sua vez. Depois de algum tempo, percebeu que todas as outras pessoas eram chamadas, menos ele. Foi então que uma das moças-do-correio, a sua preferida, perguntou

“O senhor pegou a sua senha?” apontando em direção à entrada.

Lá estava, ao lado da porta, uma maquina com botões verdes onde o povo espiava, escolhia, apertava e sacava um tíquete cuspido por ela. Amassou as contas, enfiou num dos bolsos e ganhou a rua outra vez.

Estava chateado. Resolveu voltar para casa antes que perdesse a boa imagem e o autocontrole pelos quais era conhecido. O ponto do ônibus ficava do outro lado da avenida, defronte à prefeitura. Os carros passavam sem parar. “Será que deu defeito nessa sinaleira?”. Muitos minutos depois, um rapaz, soldado do exército, deu um tapinha no ombro do homem.

“Vô, tem que apertar esse botão aqui pra poder passar” enquanto fez exatamente o que descreveu. O sinal luminoso mostrou um homenzinho verde caminhando. Os carros pararam. Ernesto agradeceu, e atravessou a rua pisando duro.

No ponto de ônibus havia outras pessoas. Jovem ouvia música, o fone de ouvido ligado a um aparelho menor que seu polegar. Ouviu-se um trecho de “Pour Elise” e mulher tirou um telefone de dentro da bolsa. Menininho, alheio a tudo, jogava videogame. Chegou o coletivo, e todos embarcaram. Era um desses modernos – estavam renovando a frota.

Aproximando-se do seu ponto, o velhote levantou-se para puxar a cordinha; surpreso, não a encontrou. Apressou-se para o lado da porta, pedindo ao motorista que parasse adiante. Ao descer, Seu Ernesto segurou-se na haste metálica diante dos degraus e, sem querer, meteu o dedo em um botão vermelho onde lia-se “Pare” que ali estava, produzindo exatamente o mesmo som que fazia quando acionava a obsoleta cordinha. Já estava furioso. Continuou calado.

Desceu. Virou a esquina, andou mais vinte metros e, enfim, portão de casa. Junto dele chegou o rapaz que faz a leitura do registro da água, segurando uma parafernalha preta repleta de botões coloridos.

“Boa tarde, seu Ernesto. Olha a sua fatura.” E com um toque, o trambolho expeliu a conta no mesmo instante. Ernesto respirou profundamente.

Naquela hora, despencou sobre ele uma idéia, dessas idéias repentinas e traiçoeiras que chegam sem aviso prévio. Deu meia volta e foi até o mercadinho da esquina.

“Bom dia, Seu Ernesto.”

“Bom dia, Ataliba.”

“O que era para o senhor?”

“Vê pra mim uma caixa de fósforos. E um litro de querosene.”

***

— Ouviu o que eu disse, pai? Sumiu tudo: rádio, tevê, cafeteira, torradeira, liquidificador... O senhor tem que registrar uma ocorrência. E...Minha Nossa! O que é isso? Não tem luz?! Cortaram os fios! Ta me ouvindo? Pai! PAI!!!

O homem levanta-se de onde está. Calmamente caminha na direção da filha. Parado diante dela, enfia dois dedos no bolso da camisa.

— Abre a mão. – em um tom de ordem que advogado nenhum consegue impor. A filha obedece. Sobre a palma branca e macia da mão de Marta, Ernesto deposita um pequeno pedaço de plástico chamuscado: um botão com os símbolos “O/I”.

— Que é isso?

— Guardei pra ti. Foi o que sobrou daquele telefonezinho que tu me deu.