Medo

2:47

Tudo é tão perfeitamente belo e bom dentro de mim.

Quando não há verdades definidas, não há o que temer. A vida só se torna vida quando tudo é mentira, tudo ilusão.

Quando não há matéria, quando não há eu, quando tudo é um monte de merdas e baboseiras vagas, não há o que temer.

É um sonho. Um maldito sonho que estou tendo nesses momentos de felicidade.

Minha vida sendo perfeita dentro de mim e eu perdendo tempo com a realidade.

Quando eu era criança costumava ser assim, ser tudo um sonho. Nada me atormentava e nada me preocupava, não havia conflitos, só dúvidas e soluções, era tudo imaginação.

Era tudo ilusão.

2:48

- Você sabe qual é a sensação de um soco no estômago?

Ele diz que não, mas que pode descrever usando a imaginação.

- Então comece.

Ele descreve algo totalmente confuso, alguma coisa haver com órgãos genitais e dor nas costas, sua fala tem momentos de hesitação e sua expressão corporal dão aspectos de confusão.

- Olha meu jovem, se você deseja ser um escritor vai precisa ser melhor que isso.

Esse jovem tem um aspecto de prepotência, então não acredita que sua descrição foi ridícula. Confia que será um grande escritor no futuro, pois tem imaginação. Mesmo com seu orgulho, pergunta qual seria a melhor definição.

O velho apaga seu cigarro, olha fixadamente para os olhos do rapaz e diz:

- Isso irá doer.

Primeiro sua pele se avermelha e depois ele fecha sua mão, contrai os músculos de quase todo seu corpo, recua o braço para trás e em um movimento rápido e objetivo acerta o centro do tórax do rapaz, tudo isso com uma careta feia. O rapaz, por sua vez, em pé, leva as mãos ao local do estrago e dobra o corpo da cintura para cima e aos poucos estremece os joelhos até capotar ao chão com gemidos de dor.

- Agora descreva o que é um soco na barriga! – o velho diz.

É a realidade.

2:49

Sinto algo doer dentro mim, não é uma dor abstrata como aquelas que costumo sentir nos meus melodramas da vida, é uma dor sensível mesmo, aqui olha, no meu coração.

Mas estou dormindo. Não é possível que posso sentir a dor da realidade fora dela. Seja lá o que for, é melhor que fique lá fora.

Nos meus sonhos as coisas costumam ser sem nexos e completamente desprovidos de sentido racional. Bem, não é muito diferente de minha vida.

No domingo é dia de uma das garotas da minha vida brincar que gosta de mim, ela adora manter a impressão que sente alguma coisa por mim. Eu não falo nada, não há o que dizer, as mulheres são tão próximas da exatidão que falar alguma coisa não irá mudar nada. Todo esse papo de que mulheres são complicadas não muda muita coisa na minha vida; elas se tornaram tão simples e sistematizadas que fica fácil saber quem é quem.

Já não há segredos a serem revelados, é tudo tão ridiculosamente fácil e vago que aqueles filósofos, que antigamente costumavam ser deuses do conhecimento, agora são uns trapalhões caducos, cheios de formulas hipotéticas e generalizações jogadas ao ar.

Era melhor quando não sabia nada, era belo e perfeito, Marx era o Deus dos pobres, Nietzsche dos loucos, Schopenhauer dos perdedores, Hegel dos sonhadores, e assim ia, era só decorar algumas frases de efeito que tudo estava resolvido. Era um conhecimento que não se conhece, mas finge se conhecer, basta ter uma noção, o resto a gente complementa.

Era melhor quando não se exigia muito da realidade.

2:50

Agora é o ápice, é o ponto máximo da dor, é a devastação da tranqüilidade, é o ataque de nervos, o ponto máximo de algo que já se prolonga a tempos.

O pulmão respira, mas o ar não vem, o coração parece que está deslocado do peito e bate desesperado para todos os lados. É a vida, é o saber sensível que mostra que estamos vivos, todo mundo deve sofrer pelo menos alguns minutos ao ano para saber que está vivo, só assim as pessoas acordam e fazem alguma coisa por elas.

Eu já devo saber, mas a primeira regra da vida é não fazer perguntas sobre ela.

Imagine acordar e descobrir que tudo que fez no dia anterior foi vergonhoso, sentir-se culpado por ter feito tanta merda e se repreender por ser quem é. Você se torna bem mais franco assumindo essa postura. Talvez essa imaginação é o conjunto da obra de minha vida e a explosão foi agora.

Eu acordei de um sonho.

2:51

" Há coisas que se pode fazer e outras que se tornam demasiadamente difíceis. Com o tempo, tudo se torna demasiado difícil": a vida é isso.

"- O que você acha de mim? Não sou bonito nem divertido, não consigo entender por que atraio você. Sou um cara comum, não muito simpático e destinado a uma vida ridícula. Você chega, é amável e carinhosa comigo e me dá prazer. Acho que está procurando em mim alguma coisa que não tenho. Você vai se desiludir."

São as palavras que saem da minha boca em um dia que já tinha perdido as esperanças. Há coisas que não consigo entender o motivo, acontece tão repentinamente e de uma maneira tão exata que não parece ser verdadeiro. Minha descrença vira medo e meu medo vira vicio.

É... acho que sou viciado em medo. Algumas pessoas são viciadas em cocaína, outras em heroína, mas eu sou viciado no principio ativo do medo: descarga de adrenalina, aceleração cardíaca, tremor, atenção exagerada a tudo que ocorre ao redor, depressão, pânico, etc. Quase a toda hora preciso receber minha injeção interna de medo, estou tão acostumado que minhas pontes neurais já estão perfeitamente alocadas, minhas células estão com os receptores totalmente completos, eu só preciso de alguns empurrãozinhos. É só armar todo o palco e estrear minha peça do medo: medo dos outros, medo da vida, da morte, dos lugares, do ambiente, de um “oi”. Medo bobo, sem sentido, talvez imaturo seja a palavra que melhor se encaixa, mas o meio não é levado em consideração pelo meu vicio, meu corpo pede e eu tenho que atender, ele não entende de sociedade, de cultura, de moral; ele não quer saber o que é vida, ele pede e pronto.

É tudo realidade, e a realidade dá medo.

2:52

Talvez meus problemas sejam as mulheres, aquelas que nunca conquistei e que nunca me amaram. Hoje em dia é tão difícil sentir prazer e encontrar pessoas dispostas a dar, que seduzir uma mulher e gostar dela virou uma fonte de vergonhas e problemas. Só de pensar nas conversar chatas e desinteressantes que é preciso aturar, além de ter que ouvir ela encher o saco com seus problemas egoístas e seus antigos relacionamentos, e depois de tudo isso descobrir que ela não é uma boa companheira; não vale o esforço.

Fica fácil entender por que o mercado sexual é tão ativo: para evitar o amor é mais fácil pagar alguma puta. Com toda essa coisa de trabalho e preocupação com futuro, não resta tempo para todo esse melodrama do amor e da existência, é melhor uma vida simples e prática. Ainda temos a internet e o mercado pornográfico, só é preciso de um pouco de orgasmo para que as pessoas se sintam serenas.

É a ilusão se mesclando com a realidade.

2:53

Depois de todo esse pânico, só me resta deitar e esperar. Minha paciência esgotou, meu corpo está cansado e me resta muito tempo, uma eternidade que não faço a mínima idéia do que vou fazer, seja realidade ou ilusão.

Plínio Platus
Enviado por Plínio Platus em 28/02/2008
Reeditado em 28/07/2009
Código do texto: T880162