Brasas de uma vida.
(...ah, o cheiro do meu primeiro amor!)
Levantei a vara. Na ponta da linha um anzolzinho vazio. Os peixes tinham comido toda a bolinha de massa enquanto eu estava hipnotizado.
Dava até pra ver na flor da água um pequeno cardume circulando ali onde eu joguei meu anzol.
Acho que eles avisaram uns aos outros que ali tinha comida farta e que o pescador estava ensimesmado.
Até nem coloquei mais massa no anzol. Fiquei ali saboreando a visão daquele congresso de peixes, lindos e sorridentes, com as barriguinhas cheias, isso porque, gostei da idéia de conviver com eles, então passei a fazer pequenas bolinhas de massa, e juntava-as na mão e depois arremessava suavemente onde eles estavam.
Vi que a cada momento apareciam mais e mais peixinhos, circulando. Uns mais ousados pulavam fora d’água. Eu não sei se estavam disputando comida, se queriam me dizer alguma coisa ou se estavam se mostrando melhores para as peixas do pedaço.
Peixas?
Dei conta de que peixe é comum de dois e aí é que fiquei mais curioso.
Se os peixes não usam brincos, chapéu, saia, sutiã, não falam fino ou grosso, como é que eles identificam se a paquera está sendo feita a um macho ou a uma fêmea?
Curioso isso. Talvez seja pelas cores, pensei.
Mas, estava ali um cardume com todos iguaizinhos, pareciam peixes clonados. Nem uma pinta diferente, um olho de cor diferente, nada.
Parei por um instante de arremessar as bolinhas, porque levantei a cabeça e vi meu pai uns metros acima do rio com uma carranca tão brava que tremi.
Ele lá exposto ao sol, como charque de boi, lutando pra pegar uma mistura pro nosso jantar, se sujeitando às mutucas e pernilongos,
e eu aqui, tratando dos peixes.
Naturalmente que os peixes vieram todos pra perto de mim.
Me senti um Jesus Cristo no horto das oliveiras.
Se era mentira ou não, estávamos envolvidos ambos em cardumes de peixes.
Voltei a fixar o pensamento na convivência dos peixes.
Dava nitidamente pra ver que os mais saltitantes, comiam mais bolinhas e, sem ameaçar os outros, rondavam languidamente no centro do cardume.
Será que eles também agiam assim no acasalamento?
Anos depois fui saber que machos e fêmeas dispersos em rios, lagos, baías e áreas de alimentação saem para a calha dos rios, deslocam-se milhares de quilômetros formando cardumes que se dirigem às áreas de desova, onde estarão próximos, maduros, prontos para o acasalamento. A fecundação dos peixes migradores é externa, e a elevada concentração de machos e fêmeas aumenta as chances de fertilização no ambiente aquático.
Estava ali meu fascínio pelos peixes. Eles na água como eu na terra, gostávamos e nos orientávamos por cheiros.
“ – Oh menino!!! Você veio comigo pra pescar ou ficar parado como uma mosca-morta?
Se você não quer pescar, tudo bem, mas ficar atrapalhando é demais.”
Puxa, que boa lembrança.
Mosca-morta era exatamente o que o pai do meu primeiro amor dizia para ela como justificativa pra não deixar que nós nos amássemos.
Ninguém sabe o peso que carrega uma pessoa quando é cerceado nos sentimentos.
Só quem viveu rejeição é que sente. Ser o bonitinho, o riquinho, o isso ouo aquilo do bem e do bom, é muito bom.
Sobreviver, isso mesmo, sobreviver com um amor entalado no peito, uma voz ou uma cena de rejeição é complicado demais.
As coisas parecem que não têm gosto, não têm cheiro, não têm vida.
A vida da gente fica um sapo sem pernas pra pular. Fica um baile sem música.
No criado-mudo, na carteira, fixada na parede do quarto a foto da pessoa amada.
Esses detalhes do enamorado ficam tão marcados na vida da gente como se fossem mesmo marcas de tatuagem. Você sobrevive, um ou outro vence, dá as costas às coisas não resolvidas da juventude, mas como um braseiro de fogueira de São João, basta um sopro de vida ou um ventinho mais forte, as cinzas voam, as brasas reaparecem, vivas e quentes como um verdadeiro primeiro amor. 

Doe sangue. Doe vida.
Augusto Servano Rodrigues
Enviado por Augusto Servano Rodrigues em 02/03/2008
Reeditado em 03/03/2008
Código do texto: T883813
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