VIVER É PERIGOSO.

            

              
Marcos estava um pouco suado, quando chegou para pagar uma conta no banco, que sua mãe era cliente. Entrou. Pegou a Senha número 1856. Olhou para o painel e viu informar a senha número 956.

            - Merda!

            Ele odiava ficar esperando. E ainda mais em fila de banco, que todo mundo reclama. Estava muito cansado da noite anterior, quando passou a noite em claro terminando um trabalho da faculdade. Bem, poderia terminá-lo dia seguinte, mas, já estava prontamente avisado pela sua mãe, que ele teria que ir ao banco, depois que ele saísse do estágio.

Não tinha mais lugar para sentar. Todas as cadeiras ocupadas e ainda tinha uma fila para pegar o assento de quem fosse atendido. Alguns, desolados, iam dar uma volta e mesmo resolver alguns problemas pessoais no centro de Brasília. Escorado na parede da imensa sala, viu uma escadinha que dava acesso privativo aos funcionários do banco. Decidiu ir se sentar lá. Encolheu-se ao máximo para não atrapalhar a passagem dos funcionários. Tudo certo. Ninguém reclamou.

Tirou da mochila o livro que estava lendo, Grande Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa. Que se fosse vivo faria cem anos naquele ano. Estava lendo esse livro a quase um mês, quase terminando. Não tinha muito tempo, uma vez que a faculdade de Direito lhe tomava muito tempo.

Começou a ler. A primeira página foi tranqüila: leitura dinâmica. Depois dessa, seus olhos pareciam que tinham vida própria. Queriam por que queriam se fechar. Ficou lutando contra seu sono por alguns minutos.

Continuamente à escada onde estava Marcos, sentou-se uma moça. O quê o despertou temporariamente. Não sabe o quê viu nela. Não era bonita, mas sentiu algo especial.

A moça, depois de se sentar delicadamente, mas sem muito efeito, tirou da bolsa um livro. Marcos ficou olhando para o perfil dela, e percebeu a curiosidade de saber qual livro que ela lia. Passou uns instantes olhando com atenção, olhar fixo na moça. Foi até inconveniente para a moça, quando percebeu o estado daquele menino.

Marcos por ato totalmente alheio ao seu ser, mais pelo sono do que pela coragem, aproximou dela:

- oi!

- olá! Falou a moça, assustada, surpreendida, mas com a voz firme e um sorriso no rosto.

- tudo bem?

- tudo! E você?

- bem. Desculpa, assim... Essa abordagem, mas fiquei curioso sobre você.

(Risos da moça, e rosto totalmente corado. Movimento de cabeça para baixo aliado ao sorriso, aumentou mais ainda o interesse de Marcos.)

- qual o seu nome?

- Mariele... E o seu?

- Marcos... Belo nome esse seu, parece de rainha. Falou Marcos com um leve sorriso.

- Obrigada...

- Que livro é esse?

- Crônica de uma morte anunciada, de Gabriel García Márquez. Conhece?

- Sim, já li umas duas vezes. No final ele morre. (sorriu largamente, mas sem barulhos).

- Claro né!? Acho que não é muito difícil prever isso... E esse aí? Apontou para o livro de Marcos.

- Grande Sertões: Veredas.  Leu?

- Não. Muito grande. E, além disso, soube que é bem difícil a linguagem...

- Hummm. Não deixa de ter razão... Qual a sua senha? 

- 1979.  E a sua?

- 1856.

E olhou para o painel, com a esperança que aparecesse seu número, mas informava 985.

- Nossa, vai demorar demais.

- e coloque demora nisso.

- Deixa eu te falar... Eu estou com muito sono, e eu queria muito dormir, mas muito mesmo... É... Será que tem como eu dormir aqui do seu lado, e na hora do meu número você me acorda?

- Sem problemas. Falou Mariele, sem muito pensar. Queria terminar de ler o livro, pois se sentia envolvida com a história.

Marcos se concertou e encostou para dormir ao lado de Mariele. Pensou que fosse louco. Nem conhecia aquela moça e já fazia um pedido desse.

Mariele ao ver que Marcos estava dormindo, olhou-o pausadamente, observando todos os traços do seu rosto. Um rosto muito cansado, apesar da idade, mas muito bonito. Não devia ser muito velho, a barba por fazer, e os óculos o dava um idéia de inteligente. Gostou dele. Bem-humorado e culto. E louco, principalmente.

Quando faltava algo de cinco números para Marcos ser atendido, Mariele o acordou. Ele com muita relutância abriu os olhos, que queriam muito continuar naquele princípio da inércia. Olhou o painel, olhou a Mariele, que estava sem o livro, olhou o relógio, percebeu que dormiu durante duas horas e alguns minutos. Supôs que Mariele tinha terminado de ler o livro.

- Gostou?... Eu disse que ele morreria.

- Triste.

- Interessante e revoltante. Por isso que o Gabriel é o melhor.

Mariele não falou nada.

Marcos pegou sua senha, fixou o olhar naquele papel, que naquele momento tinha um valor inestimável, e falou:

- Toma. Pega essa senha e me dá a sua.

- Uai. Por quê?

- Se não fosse você eu não teria dormido, e se tivesse dormido eu teria perdido a minha vez... Nada mais justo que você ficar com ela.

- Mas nada a ver...

Ela parou olhou para Marcos que com muita segurança estendia a senha em sua direção.

- Não posso aceitar. E também por que não tem nada demais eu ficar um pouco mais aqui... Você que precisa ir logo ao caixa, para ir embora e dormir.

Mas Marcos nem se importou com as palavras de Mariele e insistentemente, num profundo silêncio, continuou na mesma posição:

- Faço questão... Nada me deixaria mais feliz.

Ela olhou novamente para o papel. Levantou-se. Pegou o papel, deixou o seu com Marcos, e se dirigiu ao guicê.

Quando voltou, Marcos estava dormindo. Ela sentou do lado dele. Ficou contemplando aquele menino, que naquele momento parecia mais um homem do que qualquer outra coisa.

Acordou-o na hora do seu novo número. Ele se levantou meio bêbado de sono. Olhou para Mariele, sorriu placidamente para a moça, que mais uma vez o acordou:

- Muito obrigado.

- Trate de dormir. Sorriu a moça ao falar.

- Quando eu voltar você estará aqui?

Ela ia falar alguma coisa, mas:

- Olha, é o seu número. Vai lá.

Marcos se virou, e se dirigiu ao guicê.

Quando voltou, Mariele já não estava lá. Ficou um pouco decepcionado. Pensou como era engraçada a vida. Cheia de curvas essa estrada, que é o viver. “Viver é perigoso”, pensou em Riobaldo, personagem de Guimarães Rosa.

- Viver é perigoso.

Ao sair do banco e respirar o ar do espaço aberto, reparou nas pessoas que passavam sem rumo e de cabeça baixa, numa pressa de morte.

- Viver é perigoso.

Sentiu-se mais dono de si e mais corajoso.

 

Aderruan de Marco

06.03.08