Eram oceano, mar,uma coisa só

Eu venho pra te confundir.

Fora essa a resposta que imaginou que ele diria quando, às quatro da madrugada, abria a porta do seu apartamento para aquele conhecido estranho. Encontrou-o com os olhos vermelhos. De drogas, de merdas, da vida ou dela mesma. Nna verdade não quis saber o por quê. O roupão dela, bela, Sophia, ainda estava meio aberto, era de algodão, como uma toalha velha e azul da cor de tempo, cor de passado. Tinha um de seda guardado no maleiro do guarda-roupa dos fundos, para alguma ocasião especial. Na verdade nunca chegou a usá-lo, senão, na manhã de sua noite de núpcias, 13 anos atrás, com aquele homem que agora lhe batia a porta. Estranhamente ele lembrou disso quando ela abriu a porta, quanto a ela, pensou no mesmo. Ficaram em silêncio.

Ele não disse nada, continuou ali parado, não por quê não sabia o que, ou como dizer, mas porque seus semblantes já diziam que já sabiam de toda aquela conversa, o que deviam dizer devorava um e outro, devagar, dilacerando aos poucos o que quer que tentassem esconder, vagamente, com displicência, mas ainda assim coma maior evidência do mundo.

- Não sei nada de mim sem você.

- Procuro minha outra metade. Sei que é você!

- Te amo.

- Te amo também.

(Nada foi dito, senão, pelo silêncio)

Não disseram nada de fato. Ficaram ali parados, imaginaram toda a cena, como magica mal feita, escorreu até um sorriso dos dois. Daquele amarelo, seco, magro, mas ainda assim ambicioso, faminto de ser daquele de orelha a orelha, ansioso em devorar todo torpor do semblante de ambos. Sobretudo, nessa hora, sequer se olhavam. O olhar dele procurava lá dentro, onde havia uma escuridão interrompida, como uma menina, por dois ou três abajures que faziam claridade singela e perturbadora. Os olhos dela, negros, delicados como as latitudes miravam entre as orelhas dele e o vão da porta, buscando o pedaço da coragem que faltava naquela hora. Ela desviou um pouco o olhar, desceu e depois subiu, devagar, errante. Parou na cintura dele, um pedaço da camisa branca dentro da calça e outro pra fora, assim, bem de leve. Lembrou que nos bares era sempre assim quando iam ao banheiro. Achou até graça. Ele continuou olhando ao fundo, a luz não ficava mais forte. Estava com um dos braços, firme, a segurar na parede.

Ela então achou o cinto de couro, roído, antigo como estranhamente tudo aquilo agora parecia ser. Custou quase trinta reais, nem tão caro, nem tão barato.

- Fui eu que te dei?

- O que?

- O cinto, oras.

- É, foi sim.

- Fui eu quem disse que amava você primeiro.

- Não, não foi.

- Fui sim. Te vi, sorri, sonhei na hora, depois tropecei.

- É. Foi a primeira vista então.

- Não, foi antes.

- Foi?

- Foi. Foi quando quis saber quanto durava a coisa pra sempre.

Não se olharam diretamente por nenhum instante. Talvez por medo do incerto, talvez pelo pavor da certeza. Tinham tentado tanto, descobriram que o tempo da ausência agita as águas do mar da incerteza, critica o amor, assusta ele, que tem medo do fundo, de chegar onde existe o fim. Tinham vontade de abraçar o vento. Ele, principalmente, tinha vontade de levar pra ela um presente inédito, mas se perdia entre suas próprias convicções. Ela só queria o óbvio, uma vez. Não o tão óbvio que chega a ser derradeiro, mas o óbvio que um dia morou nos olhos dele, mas que ele sempre insistiu em esconder. E os olhos dele nem eram tão belos, eram comuns castanhos que se confundiam com preto, olhos da maioria, olhos que tinham de tudo, de todos, que não aprenderam a mentir com o coração dele.

- Eu queria ser tanta coisa.

- Mas não precisa.

- Eu queria saber de tanta coisa.

- Também não precisa.

- Eu queria ser você uma vez.

(Silêncio)

- Sabe por que?

- Não.

- Pra saber como você me olha. Se sente o que sinto quando me olho.

- Não entendi?

- Não¿

- Não.

- Você é o Atlântico, e eu Pacífico.

- Mas você não é pacífico.

- É, não sou. Vamos trocar então.

- Não, vamos ser só mar, só oceano.

- São dois oceanos diferentes, o Pacífico e o Atlântico, são de cores de diferentes, balançam embarcações de jeitos distintos.

- Têm tantas vidas dentro deles, tantas e tão diferentes...

- ...Que sendo quase a mesma coisa, acabam sendo um e outro, aqui e ali.

- Mas ainda têm um lugar certo, onde se encontram.

- É. Têm. Uma latitude qualquer.

Talvez fosse nos detalhes que se perdiam, querendo saber um da latitude do outro, o lugar certo, o ponto de encontro das águas. A brevidade de tudo aquilo era tão evidente, mas era prolixa no fim. Foram dez anos o eterno daqueles dois juntos. Se olharam pela primeira vez na noite, tinha passado pouco tempo, desde que era quase quatro da manhã, já era quatro em quinze em ponto. Ele pegou no laço, também de algodão cor de azul velho, que vigiava e amarrava a cintura dela. Mexeu nele um pouco. Ela ficou parada, suou frio, ficou olhando para as mãos dele. Percebeu que ele usava a aliança que era dela no mindinho da mão direita. A luz lá dentro se acendeu, agora iluminando tudo.

- Tenho que ir.

- Eu também.

- Vai com Deus.

- Vou com você.

- Amém.

- Amém.

Eram quase quarenta degraus, que ele desceu contando, um por um. Reparou que a parede não era branca, era cor gelo. Deu um sorriso, lembrou que uma vez ela explicou pra ele a diferença entre as duas cores. Sorriu. Já ela ficou com a porta aberta, ficou olhando para a escada, quis descer correndo, pensou em pular da janela chegar mais rápido, pra ver ele chegando pra ela mais uma vez. Pra ela poder esperar por ele mais uma vez também. Ele ficou pensando no vestido que ela usou no batizado do filho do irmão dela. Era mesmo cor de gelo. Depois de tanto tempo aprendeu com ela de novo, aprendeu o que já sabia. Sorriu novamente. Ela fechou a porta devagar, mas antes olhou para onde estava mão dele, na parede. Passou os dedos por lá, achou que ia se arrepiar, mas nada aconteceu. Quando trancou a porta a barulho da chave fez o coração dela disparar.

- Quem era?

- Ninguém.

- Ninguém, ou alguém que não é ninguém¿

- Hoje vou dormir na sala.

- Boa noite.

- Boa noite. Dorme com Deus.

- Amém.

(Ela dormiu sorrindo. Ele voltou pra casa caminhando e sorrindo também.)