Irrealizado

Não tenho certeza de quando foi que me apaixonei por Mariana.

Conhecíamos-nos desde sempre, ela era um pouco mais velha que eu e, desde crianças, todo fim-de-ano, vinha ficar em nossa casa no interior.

Nossos pais eram sócios e isto nos obrigava a convivermos, principalmente em se tratando deste tipo de festividades.

Quando meninote, lembro-me de haver uma certa animosidade entre nós, ou, pelo menos, entre eu e ela. Mamãe queria que eu desse atenção a Mariana, mas, para mim, era um fardo ter de brincar de bonecas ou de casinha com ela, trocar fraldas de bebês de plástico, ou fingir estar adorando bolos de barro — e eu lhes garanto, ao contrário de muitas crianças, eu jamais os comi de fato!

Ela, por sua vez, também não parecia estar interessada em brincar de carrinhos, ou daquelas brincadeiras estúpidas que nós meninos adoramos e, como ela possuía um temperamento bem mais forte que o meu, restava a mim sempre a ceder aos caprichos dela.

Assim, a cada Natal e Réveillon, o meu martírio se renovava.

Eu tinha uns doze anos quando comecei a namorar “seriamente”, quer dizer, selinhos, andar de mãos dadas e trocar presentes nos dias dos namorados. Lúcia era a menina mais linda da minha classe e o término do ano letivo foi doloroso. Ela viajava para a praia e eu para a maldita casa no interior.

Carreguei comigo uma cartinha de Lúcia e vários suspiros contidos no peito. Nem a promessa de mamãe de que, naquele Natal, eu finalmente ganharia o videogame que eu tanto implorara durante os passados onze meses me animou. A saudade de Lúcia me consumia.

— O Beto está jururu assim porque está apaixonado! — papai comentou durante a ceia, e eu fui a piada do grupo até retornarmos da viagem.

Para minha surpresa, Lúcia já estava namorando com outro, deixando-me curtindo uma bela dor-de-cotovelo e meu primeiro coração partido. Esta profunda decepção amorosa coincidiu com a descoberta do sexo, ao aprender com colegas, escondidos no banheiro da escola, palavras, conceitos e atos que me fascinavam e me envergonhavam, tais como: punheta, gozar, buceta, Playboy.

Foi naquele momento que passei a viver uma vida dupla, guardando revistas de mulheres peladas em compartimentos secretos nos armários, passando longas horas no banheiro ou enrolado sob o edredon, quando até dançarinas do programa do Gugu me serviam de estímulo.

Oprimia-me uma culpa, talvez um resquício da educação católica, que condenava sexo pré-marital, masturbação e tudo aquilo que estivesse relacionado à sexualidade. Aos domingos, na missa, eu pedia perdão à Deus por todos estes segredos e pecadilhos que eu havia acumulado durante a semana, e creio que ele deve ter me absolvido.

E a grande aspiração, o grande projeto de vida, meu e dos meus amigos era “comer alguma menina”. Neste aspecto, porém, só encontrávamos decepção. As garotas da nossa idade só se interessavam por rapazes mais velhos, as mais novas, por sua vez, ainda eram crianças. Queríamos mulheres como as que víamos em revistas ou na TV, não menininhas.

No meu aniversário de treze anos, recebi em casa vários amigos, colegas de escola e, como não poderia faltar, Mariana também veio.

Ela havia crescido, deu-me um beijo no rosto e me entregou um presente. Estava bonita, com um vestido branco e reparei que ela estava usando sutiã. Aquilo foi uma revelação para mim, Mariana já era uma mulher.

Daquele ponto em diante, a imagem dela não saía da minha cabeça, o sorriso, os cabelos encaracolados, o beijo no meu rosto.

Eu não sabia à época, e também não sei hoje, se aquilo era mera atração física dum adolescente desesperado, ou se havia me apaixonado por Mariana. Resgatei alguns álbuns de fotos do baú e neles encontrei fotos dela, de todas aquelas festas nas quais estivemos juntos. Ela havia mudado bastante, desde o tempo em que eu brincava de bonecas com ela.

Tomei a resolução de que, no nosso próximo encontro, eu a conquistaria.

Mas confesso que nunca fui do tipo mais eloqüente quando se trata de galantear uma mulher e, a partir do instante em que decidi me aproximar dela, foi quando me se senti mais afastado.

Ao nos reunirmos para as festas de fim-de-ano, emudeci completamente, dominado por uma vergonha incontrolável; temia falar alguma besteira, dar alguma bola-fora. E como ninguém mais nos forçava a brincar juntos, nossa convivência se resumia às refeições e à sessão de TV à noite, quando assistíamos à novela das oito.

A grande oportunidade que encontrei foi, ao vê-la deitada numa rede na varanda lendo uma revista, me sentar perto dela e folhear um gibi. De onde eu estava, podia visualizar os pés descalços, voltados para mim, as pernas, a revista aberta, e parte das sobrancelhas que surgiam por sobre ela.

Vez ou outra, ela se movia, e eu recebia pequenos vislumbres de outras partes, das coxas, ou do tórax, ou da boca.

Insuflado por um inesperado ímpeto de coragem, levantei-me e comecei a balançar a rede:

— Quer que eu te balance? — indaguei tardiamente.

Mariana, quase com desdém, respondeu, pondo a revista no chão:

— Pode ser...

E fui recompensado com a visão que eu almejava, Mariana de corpo inteiro, em seu vestido curtíssimo donde escapava a calcinha rosa, o olhar lânguido embalado pelo balouçar da rede.

— E como está a namorada? — ela me perguntou.

— Que namorada? — retruquei.

— Aquela que te deixou triste, da vez passada.

Surpreendeu-me a memória dela, e como a imagem de Lúcia já havia quase se esvaído dos meus pensamentos, fui breve.

— Não estamos mais juntos. Ele me trocou por outro.

— É sempre assim... — ela riu — sempre gostamos de quem não gosta da gente.

E ela tinha razão; ali estava eu, literalmente aos pés dela, e não possuía qualquer expectativa de ser correspondido em meu afeto.

— Você quer ir até o riacho? — perguntei, costumávamos sempre ir lá para nadar, em outras épocas.

— Não estou com meu biquíni.

— A gente poder ir só para dar uma volta.

Mariana aceitou.

Percorremos a trilha até o ribeirão, Mariana catava flores no caminho, e eu cutucava os besouros com um graveto. Constrangia-nos um estranho silêncio, eu queria dizer tanta coisa, mas ao mesmo tempo, tinha vergonha.

A água do riacho estava gelada, Mariana mergulhou as pernas até os joelhos e eu fiz o mesmo. Ela sorriu para mim, senti um frio na barriga e meu coração disparou. Pensei que aquele era um dos momentos mais felizes da minha vida.

Mariana fez um gesto para que eu me aproximasse dela, algo me dizia que ela queria me beijar. Caminhei devagarzinho até ela e, quando estava a um palmo de distância, ela pôs as mãos sobre meus ombros e, num movimento inusitado, derrubou-me de cara na água gélida. Saiu correndo do rio, rindo como uma diabinha.

Esta brincadeira serviu para nos tornar mais íntimos nos dias seguintes. Passávamos a tarde inteira juntos, conversando, às vezes assuntos sérios — dentre todos os assuntos sérios que podem atormentar adolescentes, futura carreira, casamento, a existência de Deus —, mas quase sempre debatíamos frivolidades, brincadeiras tolas, piadas, e eu adorava ouvi-la rindo!

Como nunca antes, a semana no interior voou; assistimos lado a lado a queima de fogos do réveillon patrocinada por um tio festeiro, e foi quando constatei que só tínhamos apenas mais três dias juntos. A minha resolução de conquistar Mariana — entenda-se, transar com ela — dependia do que ocorreria nestes próximos dias.

Mas a ansiedade me impediu de avançar, continuamos agindo como bons amigos, mesmo que eu não perdesse uma única oportunidade para espiar dentro dos decotes dela, para roçar meus dedos acidentalmente em suas coxas, ou para ouvir algum segredo que ela quisesse me contar, quase encostando seus lábios em meu ouvido.

O último dia se aproximava e os convidados queriam dirigir até um haras próximo, criadouro de corredores premiados. Mariana se recusou a ir, alegou estar cansada demais por ter assistido a um filme tarde da noite. Eu também ficaria, acrescentei, para fazer companhia a ela.

E era verdade que Mariana estava cansada, pois ela se deitou no sofá da sala e adormeceu profundamente. Fiquei observando-a respirar com lentidão, e decidi que aquela era a hora.

Ajoelhei-me ao lado dela e subi sua camiseta, descobrindo os seios pequenos. Eu tremia. Beijei-os com delicadeza, receando despertá-la. Concentrei-me, então, na calça jean que ela vestia. Tentei desabotoá-la, mas de modo algum consegui libertar o botão. Inconscientemente incomodada, Mariana se virou, prendendo minha mão sob seu corpo, dedos apegados ao botão da calça.

Refleti que, em breve, ela haveria de se virar novamente, assim, eu poderia continuar o procedimento. Aproveitei este aprisionamento, para roçar meus lábios pelas costas desnudas de Mariana, mas nada de ela se virar.

Tentei erguê-la, virá-la, mas, neste esforço, a menina gemeu, reclamando. Preferi me aquietar. Uma meia hora se passou e Mariana continuava dormindo, eu quase não sentia mais minha mão.

Um novo movimento, e Mariana se virou. Eu estava livre! Desta vez, consegui desabotoar sua calça e a abaixei até a altura dos joelhos. Eu estava muito excitado, finalmente eu deixaria de ser virgem. Acomodei-me sobre ela e também abaixei a calcinha dela. Possivelmente, uma das visões mais inesquecíveis da minha vida, recordando-me bem, acho que quase chorei naquela hora.

Desabotoei minha calça e desci o zíper.

A porta da sala se abriu e, meu pai, minha mãe, os pais de Mariana e mais uns sete convidados chegaram. Haviam esquecido alguma coisa em casa e preferiram retornar. Eu, naquela posição, praticamente estuprando a Mariana adormecida, não tinha nada para alegar em minha defesa.

Meu pai me puxou pelos cabelos e me deu uns belos tabefes. A gritaria e choro fizeram com que Mariana despertasse sobressaltada. Seminua, ela se cobriu com as mãos e correu para o banheiro, aos prantos.

Passaram-me um sermão interminável, primeiro sobre como minha alma arderia no inferno — havia um ex-seminarista entre os convidados deste ano —, depois, sobre princípios morais, de que deve haver consentimento entre o homem e uma mulher, de que eu ainda era novo, que sexo era algo sagrado e que deveria ser feito com amor.

Proibiram-me de ver Mariana novamente, disseram-me que ela estava traumatizada. Eu havia arruinado todas as minhas chances. Minha segunda grande decepção amorosa na vida.

No entanto, à noite, ouvi passos nos escuro do meu quarto.

Alguém se aproximou da minha cama, uma mão tateou minha cara e recebi um beijo na boca.

— Eu também te amo — ouvi o sussurro de Mariana, que desapareceu com a mesma sutileza com que chegara.

Até pensei em chamá-la de volta, o “espera” engasgado em minha garganta, mas o vexame daquela tarde me bastava. Dormi contente, feliz, realizado.

Mariana foi embora com os pais de manhãzinha, mesmo antes de eu acordar. Não a vi mais, pois, pouco tempo depois, nossos pais desfizeram a sociedade; inclusive, tornaram-se rivais, foi o que ouvi.

Tive muitos amores depois dela, fatalmente perdi a virgindade com outra mulher, mas, às vezes, quando estou sozinho à noite, vêm-me à mente duas imagens: a primeira delas, de Mariana, adormecida no sofá, seios e sexo à mostra, a segunda, muito mais singela, muito mais inesquecível, dum breu total e de um “eu também te amo” sussurrado em meu ouvido.