Compromisso com Cecília

A chuva, intermitente, não impedia que ele caminhasse em direção ao seu compromisso. Apesar do guarda-chuva aberto, ele estava com as roupas ensopadas. Chovia demais.

Tudo isto, no entanto, não o incomodava. Podería ser motivo de aborrecimento em outras circunstâncias. Hoje não.

Hoje ele caminhava decidido, disposto a terminar de vez com aquele problema que o perseguia há tempos.

Vinha adiando este compromisso, como se as coisas, de repente, pudessem se arranjar por si só, sem sua interferência. Custou a admitir que atender a este compromisso seria a única maneira de ter paz.

O dia, apesar da chuva insistente, havia sido ótimo. Há muito que não tinha um dia tão agradável, um dia tão bom. Passou o dia todo só, como vinha acontecendo há um bom tempo, desde que ela decidira deixá-lo e ir embora. Isto também não o aborreceu ao longo do dia.

Talvez porque ele havia aproveitado cada minuto do dia na redescoberta do prazer que coisas simples podem nos proporcionar, embora teimemos em não dar valor para estas coisas. São coisas que fazemos automaticamente, sem sentir como nos reconfortam.

Caminhava, agora, já no princípio da noite, disposto a tomar a atitude que, entendia, era a única a ser tomada, embora exigisse muita coragem e determinação. Caminhava pela rua molhada em direção ao seu apartamento, local que decidira ser o mais adequado para a definitiva solução do seu problema.

Lembrava que o dia começara com um demorado banho, com abundância de água na temperatura certa extremamente agradável. Há quanto tempo não tomava um banho assim? Sua rotina diária era tão corrida, tão cheia de atividades e responsabilidades sempre impediam que ele se demorasse um pouco mais num simples banho.

Uma coisa tão simples como um banho gerando um prazer tão intenso. Parece que só hoje ele se dera conta disso.

O prazer continuou durante o café da manhã, tomado sem pressa, sem culpas por atrasos, irresponsavelmente saboroso. Hoje ele decidira não ir à empresa. Sabia que todos lá ficariam sem entender sua ausência e, certamente, estariam procurando por ele em minutos. Decidiu, então, desligar seu celular e tirar o telefone do apartamento da tomada.

Seu compromisso à noite era muito importante, sério demais para que ele não considerasse que seu dia, certamente, seria o mais importante da sua vida e que ele não deveria gastá-lo no escritório. Tirara o dia para si, para fazer exclusivamente o que lhe desse prazer.

Depois do café, foi à ampla janela do apartamento. Ali, do 17º andar do seu prédio, tinha uma vista privilegiada do bairro onde morava desde menino. Podia ver ao longe, apesar da chuva forte que caia desde a madrugada.

Claro que na sua época de infância, quando corria por aquele bairro todo, este prédio não existia. Nem este, nem quase todos os outros do bairro. Outrora bem simples, o bairro hoje era bastante diferente, sofisticado até. Passara por uma profunda transformação ao longo daqueles anos, semelhante à transformação que a vida dele passara.

Quando menino, lembrava-se, também levava uma vida simples, cheia das dificuldades pelas quais sua família passava. Como o bairro, ele também se transformara numa pessoa sofisticada, de razoável poder aquisitivo. Lembrava-se da alegria que fora comprar aquele apartamento tão logo a conhecera.

Afastou-se rapidamente da janela, como uma forma de afastá-la de seus pensamentos. Esta noite este problema estaria solucionado, pensou rapidamente.

Escolheu, separou e vestiu sua roupa mais simples, ao contrário do que fazia diariamente, quando se vestia para o trabalho. Fazia isto sempre de maneira a vestir-se pra impressionar. Usava roupas finas e caras, elogiadas por todos. Era um homem elegante, sem dúvidas,

Vestir-se de modo simples, naquela manhã, também lhe trouxera prazer. Vestira-se para si e não para impressionar seus clientes e funcionários. Não pode evitar um sorriso ao pensar nisso.

Não queria ficar em casa. Era hora de sair, de respirar, de tomar chuva, livre, sem horários, sem celular, sem agenda, sem almoço de negócios. Seu único compromisso do dia, aquele do começo da noite. Com certeza o compromisso mais importante da sua vida.

Desceu, pegou seu carro, outro sinal de seu progresso econômico. Carro de alto desempenho, de alto luxo, símbolo de status. Sempre lhe servira, no entanto, de mero transporte. Nunca tivera, na verdade, qualquer tipo de prazer com ele.

Hoje sería diferente. Ele não sería um mero meio de transporte para ele. Hoje ele o conduziria sem destino certo, procurando os lugares onde, no passado, ele sabia ter sido mais feliz.

Que tal ir à rua onde passara sua infância? Pensou. Ótima idéia. Não passava por lá há muito tempo e, quando passava, não dava qualquer importância ao local. Hoje, não. Hoje iria parar seu carro, iría caminhar por aquelas calçadas e lembrar dos velhos amigos, apesar da chuva. Seus amigos. O que terá a vida feito com cada um deles?

Passou em frente ao velho colégio, que parecia manter ainda a pintura daquela época, abandonado à sua própria sorte. Passou pela praça antiga, onde jogara muito futebol, quando isto ainda era possível. Emocionou-se.

Gastou neste passeio nostálgico bem mais de uma hora. E quer saber? Valera a pena. Mesmo molhado pela chuva relembrou e reviveu, de certa maneira, seu tempo de criança.

Correu para seu carro, fechou o guarda-chuva e dirigiu pelas ruas do bairro, prestando atenção a tudo, saboreando o passeio. Alguns dos prédios do seu tempo de criança, altivos, ainda estavam lá.

Curioso! Há quanto tempo não prestava atenção a estas coisas. Questão de prioridades. Até ontem, seus negócios estavam acima de quaisquer coisas. A seriedade do compromisso da noite fizera com que seus sentimentos mudassem, fizeram com que seu coração se abrisse e ele reconhecesse a importância daquele bairro em sua vida.

A atitude que tomaria à noite já estava decidida. Por mais que chovesse. Agora, era tempo de aproveitar o dia. Sozinho, sem ela, o que já virara uma incômoda rotina. Hora do almoço. Que tal um excelente restaurante? Que tal um almoço descontraído, sem pressa? E foi assim. Único objetivo do almoço: saborear a comida, sentir prazer em provar um prato delicioso, um vinho extraordinário.

Nada de discutir grandes negócios, de concentrar suas atenções em números, em cifras, em lucros potenciais. Apenas comer, beber e fechar o almoço com um simples cafezinho. Há quanto tempo perdera a sensibilidade de se encantar com um cafezinho?

Chegou a ficar tentado a dar uma passadinha na empresa. Imaginou como estariam todos, surpresos com sua ausência e com seu silêncio. Conseguiu, no entanto, manter-se firme ao plano original e reservar toda a formalidade do dia para seu compromisso da noite.

Uma sessão de cinema, à tarde, era um prazer que não se dava a séculos. Na verdade, desde o tempo de colégio quando, às vezes, enforcava uma aula para ver um ou outro filme interessante. Sorriu ao lembrar disto e percebeu agora, tanto tempo depois, que aquelas escapadinhas para o cinema foram tão importantes quanto as aulas que assistiu.

Pena que a sala que frequentava quando estudante já não existia mais. O prédio ainda estava lá, mas, agora, abrigava um daqueles templos de uma daquelas milagrosas igrejas. Acabou indo ao shopping. Sala moderna, de tamanho adequado, confortável, com ar condicionado. O filme? Pouco importou. Queria mesmo era fazer algo que não fazia há muito tempo.

O dia chegava ao fim. O horário do compromisso, embora não rigorosamente marcado se aproximava. Ao lembrar disto sentiu ainda mais claramente a importância deste dia. Saiu do cinema, consultou seu relógioe viu que ainda chovia. Caprichosamente chovia. Decidiu ir para casa a pé. Queria se preparar bem para o compromisso. Não que isto fosse tão importante, mas ele queria se apresentar bem.

Ao chegar em casa a luz do dia se findava. Tirou sua roupa molhada, escolheu, agora sim seu terno de melhor corte. Camisa e gravata combinando. Queria realmente impressionar. Tomou um banho mais reconfortante e mais demorado que o daquela manhã. Pensou muito no dia que havia passado. Estava calmo, descansado, feliz até.

Barbeou-se novamente. Vestiu-se calmamente, com toda cerimônia que seu compromisso exigia. Cuidou de cada detalhe. Do nó da gravata ao par de meias que se adequava ao conjunto da roupa. Impecável. Ele sabia como se vestir elegantemente. Tinha um corpo esbelto, bem cuidado, que colaborava para isto.

Apagou todas as luzes do apartamento. A luz que vinha de fora era esparsa. Estava no 17º andar, distante da iluminação da rua. Serviu-se de uma dose do seu mais caro scotch. Aproximou-se da janela para ver a chuva, insistente, caindo lá em baixo. Os carros molhados, o trânsito lento, quase parando.

Abriu a janela. Sentiu a umidade, pingos de chuva que invadiam sua sala. Chegara a hora do compromisso que adiara por tantas vezes. Lembrava de cada detalhe do ótimo dia que passara. Um dia como há muito não passava. Cheio de coisas boas. Simples e boas.

De que adiantava tanta felicidade sem ela? Só ele sabia que não podia, não tinha direito de se sentir feliz sem ela.

A chuva persistia. Ele pode sentir seus grosso pingos quando se aproximou mais da janela. As gotas molhavam seu terno quando ele se atirou no espaço. Finalmente cumpria com o compromisso que assumira consigo mesmo.

O corpo, estatelado no chão, na calçada, teimava em querer mostrar um homem elegantemente vestido. A chuva lavava seu sangue e encharcava suas roupas. Pouco importava. Ele não se aborrecia mais com a chuva.

Não queria ser feliz sem Cecília.

ACRangel