UMA OCASIÃO ESPECIAL

Mais de 20 anos se passaram daquele dia em que nos despedimos de mamãe, para até um dia. Semana de silêncio, recolhimento, algumas lágrimas e perguntas, muitas. Fizemos tudo o que era necessário, retribuímos a ela os cuidados de uma vida inteira dedicada aos filhos? Depois da missa de sétimo dia chegou a hora de arrumar seu armário. Doar suas roupas e todas as coisas que ela não pode levar. Uma das minhas irmãs assumiu essa missão.

Eu cá não sou muito chegada a ver defunto, mortinho dentro de caixão. Faz diferença não, se é mãe ou pai. O canto mais seguro do cemitério é o portão da saída. Já tô preparadinha pra num chegar perto de mim, na hora do meu embarque. Não quero nem ver.

Então, como eu ia dizendo, doar as coisas que o finado juntou vida inteirinha, roupas de ficar casa, de ir à missa aos domingos, aquele vestido todo bordado, do casamento do filho caçula, tá novinho ainda.

— Veja só que beleza Joana, quer ficar com esse? O casamento deles já se desfez, faz tempo, mas o vestido taqui, sem nenhuma mancha. Alta costura, não sai de moda. Ah, como ela tava bonita naquele dia; verde água combinando com a pele morena, de índia.

Minha irmã ia esvaziando o armário e distribuindo: esse vestido fica bem na Luzia, essa saia dá direitinho na Gersina, enfermeira que cuidou dela com tanto carinho.

— Maria, você quer essa bolsa, experimenta esse sapato, tá bonzinho, vê se dá no seu pé? Claro, todo mundo queria tudo, até encolher o pé e diminuir o número do manequim. De graça tem sempre alguém esperando.

— Ai que lindo esse conjunto de xícaras para café, são de porcelana chinesa!

— E essa caixa de sabonetes perfumados? Franceses, daqueles bem caros, de Paris mesmo. Taqui o rótulo, meio apagado mas ainda dá pra ler.

— Meias novas, que a Juracy trouxe pra ela quando foi a Nova York. Finas, sem costura. Essas duram um bocado, são daquelas que não puxam o fio.

— Você não quer? Olha, quantas bolsas! Essas duas estão novas, parecem que não foram usadas. A de camurça ainda tá na moda. Dá pra usar, até, num concerto no Teatro Municipal. Tem outra aqui, de pelica marrom, grife da moda. Hoje custa os olhos da cara.

— Ah, essa eu quero para mim.

— Gente, que gracinha, olha só: um conjunto para servir petiscos, tem as faquinhas pras pastas e a bandeja de madeira com os potinhos. Ainda tá na caixa. Foi presente de alguém.

Mamãe sempre recebia presentes. Das amigas, dos filhos, dos netos. Eu aceitei um par de sapatos. Não queria fazer desfeita pra minha irmã e nem demonstrar que eu tinha o maior medo de usar coisas de defunto.

Era muito bonito, de salto alto e fino. Mamãe o calçara no casamento do meu irmão caçula. Foi a única vez. Voltou pra caixa, esperando, quem sabe, outro casamento.

Vestir roupas de morto, nem pensar! São impregnadas de fluidos, pedacinhos de pele e contam a história de seus primeiros donos. Têm até personalidade. Eu não creio em bruxas, mas não tenho certeza.

Anos mais tarde, se foi minha sogra. A morte não é nada criativa. Repete, ao infinito, os mesmos rituais. Quem viu um, viu todos:

— Você quer alguma coisa de lembrança da mamãe? — perguntou-me a cunhada, única filha moça. — É hora de esvaziar armário, doar roupas e trecos que ela juntou vida afora.

— Não, obrigada.

— Leve esses panos de copa, são sacos de farinha de trigo, alvejados, algodão puro. Ótimos pra secar pratos e copos de cristal. Olhe só que bonitinhos. Bordados à mão e uma barra de xadrez colorido. Bonitinhos mesmo. Dá até pena de usar.

Acabei aceitando. Eram seis. Tinham sido um presente. Estavam ainda embalados no celofane e laço de fita, à espera de uma cozinha mais arrumada. Quem sabe depois da reforma na casa ela os estreasse.

Preciso confessar uma coisa: eu também não os usei. Passei-os adiante no primeiro chá de panelas que fui convidada. Vale contar: a noiva adorou!

Lá um dia, fui à missa. O padre, pregando o evangelho, para melhor ilustrá-lo, emendou uma história que de imediato me transportou para a casa da minha mãe e a distribuição de seus bens, acumulados em vida e vários à espera de uma oportunidade para serem usados.

Era o caso passado com uma paroquiana que foi visitá-lo em busca de acolhimento e consolo espiritual. Padecia de saudade da irmã que se fora para o além, de onde ninguém voltou pra contar como é que lá se vive. Vive?

— Imagine padre, que a pobrezinha faleceu de repente. Não estava nem doente e o coração rachou. Ao meio. Deu-lhe um ataque fulminante. O médico da família correu mas não a alcançou com vida.

Entre lágrimas contou que Serafim, o marido, estava inconsolável. Viviam como dois pombinhos, numa casa simples mas confortável. Agora, que eles planejavam aproveitar a vida, acontece esse padecimento.

— Já vai pra mais de oito anos que ele se aposentou. Pobre viúvo. Me lembro até que eles fizeram outra viagem de lua de mel. Minha irmã estava tão feliz! Conheceu cidades do nordeste e ficou encantada com os bordados em ponto de cruz, em ponto cheio e beiradas de renda, tecidas por rendeiras de mãos de fada. Acaba que, não resistiu a tentação, diante daquele artesanato maravilhoso, e satisfez seu desejo de comprar.

Presentes pra mim, pros sobrinhos, pras amigas e até pra ela, que nem precisava de nada. O armário do casal era lotado de roupas bonitas, nunca usadas.

Quando alguém perguntava: Rosa, mas pra que você precisa de tanta roupa? Ela respondia: ah, estou só esperando o Serafim ter mais dinheiro pra gente passear.

O senhor, padre, precisava de ver a combinação de cetim cor de rosa, toda bordada à mão e repartida com rendas de bilro. Coisa mais linda! Ela guardou na gaveta de roupas íntimas esperando uma ocasião especial pra usá-la

Serafim, coitado, foi quem arranjou o funeral. Ao abrir o armário em busca de roupas, para vestir Rosa, deu com a combinação de cetim comprada em Fortaleza.

Vestiu Rosa com ela.

Ana Benevides
Enviado por Ana Benevides em 17/04/2008
Reeditado em 17/04/2008
Código do texto: T950446