TROPA DO ARISTEU

De Carlos Fernandes Franco (meu tio)

Aristeu Vilela, mineiro, que não conheço Vilela de outras paragens.

Gente boa; fabricava manteiga com leite de seu curral e de outros retiros dos campos de Campestre.Mas, não é dele que vou falar. Deus o tenha. É da sua tropa, e para quem se lembrar dela, sete ou oito burros só, criados quem sabe, nos campos das vertentes, transpondo terras do seu Joãozinho Manelico e adentrando as nossas.

Lá pélas cinco horas da tarde, depois de ajudar o pai a debulhar milho para tratar dos porcos e catar dos sabugos o último grão, que não podia jogar fora, pois o milho era para economizar desde o dia em que entrou no paiol. Quantas vezes, indo pro alpendre na estreita calçadinha de pedra assentada a seco em volta da casa, a gente ouvia, de longe, o barulho do sino amarrado no pescoço da mula madrinha da tropa do Aristeu.

Ouvido atento, bastava os olhos afirmarem e a gente saia gritando pelos irmãos a fim de verem a chegada. Grudados no parapeito da varanda lá ficavamos toda criançada apreciando o espetáculo, única sessão da semana.

Na frente, patas brancas até a canela, a mula ruana madrinha compenetrada de seus muares deveres, vinha conduzindo a tropa fielmente enfileirados, cadenciada e distanciadaos de braça e meia cada um dos componentes, descendo a encosta no sulco largo da velha estrada, junto ao pasto das vacas, separado por valo cheio de árvores copadas: amoreira, tarumã, jacarandá, canela, araticum, capixingui, capoeira branca. No meio da descida uma limeira , limeira de lima, lima de lá mesmo, que da Persia a gente só conhecia estórias do Tesouro da Juventude.

Da limeira à entrada do rancho de pouso eram apenas alguns minutos. A mula ruana madrinha de patas brancas até a canela, com minusculo sino encantado retinindo um bimbalhar que a gente nunca esquece e hoje acha mais belo e sonoro que os carrilhões da Igreja de Machado em noite de Natal, a madrinha acelerava o passo, burros atrás, o de pelo de rato e orelha caída no fim, todos apressando a chegada para deixar logo os latões de manteiga pendurados na cangalha de madeira em furquilha, velhos baixeiros, bruacas de couro, barrigueiras, controlático, corda e cambito.

O tropeiro Manuel a dessarear cada animal, um por um, guardar os latões, encostar a cangalha, o mesmo rito, oito vezes repetido, vejo-o de novo: Solto o primeiro burro, deita-se no chão esfrega o lombo suado massageando uma e outra vez, lado esquerdo, e, sem se levantar, tenta a virada para a direita sobre a espinha dorsal, vai virar, será que não vai, consegue, não consegue; com as patas agitando no ar, dá um impulso, dois, três, vai ou não vai, o Severo sempre aposta, se o burro virar diz que apostou na virada, se não virar garante que apostou o contrário, sempre ganha, os irmãos menores não entendem bem, mas falou, aconteceu mesmo, o burro virou e se espojou todo na terra, do lado direito, o lombo magro e pisado; burro preto, embornal branqueando, estrela na testa, suspende o pescoço, ergue a cabeça, abana as orelhas, firma as patas dianteiras, levanta-se todo, sacode o pó duas vezes, rabo tosado; zurra, espanta o galo da Celina, carijó vermelho pescoço pelado; apanha com a boca um ramo nascido nas pedras do muro de arrimo, segue pro açude, pro pasto, pro mundo, viva a liberdade!

Galo carijó...tantas vezes cedido pala menina dona em pagamento de pequenos favores e retomado para outras trocas!

Solto o segundo muar baio, de Lagoa Dourada, tudo a mesma coisa, os mesmos ditos, deita-se no chão, vai ou não vai, se virou tem pai...

A noitinha o espetáculo continuava, ver o caldeirão de ferro pendurado no arame amarrado ao tripé fervendo no fogo saido das pedras e lascas de lenha!

Dia seguinte ia a tropa do Aristeu rumo a Machado, pisando lama e poças de água da chuva.

Hoje igual a ela andam lembranças enfileiradas, misturadas, cadenciadas, distanciadas de letras:

A de araticum

B de burro

C de cangalha

L de Lita mãe querida

N de Natal

P de papai

S de saudade

T de tropeiro

Defranco e Carlos Fernandes Franco
Enviado por Defranco em 28/04/2008
Reeditado em 03/03/2016
Código do texto: T965699
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