A viagem de Dona Glória

Assistia televisão quando lembrou que ainda tinham roupas no varal. Já era fim de tarde, havia apenas trapos de sol, melhor recolher as blusas que secavam. Dona Glória levantou-se devagar – desde novembro as costas doíam muito – e foi até o quintal. Enquanto puxava as meias secas, viu que a janela da cozinha estava aberta. Precipitou-se para fechá-la, e foi aí.

De vez de alcançar a veneziana, dona Glória alcançou a si mesma. É que, sem querer, uma folha seca de árvore prendeu-se na sola de seu chinelo esquerdo. Aquele ruído de folha sendo arrastada transportou-a para uma lembrança longínqua, onde a dor nas costas não existia, nem a diabetes, nem o prateado nos cabelos, nem o leque de rugas ao redor dos olhos.

Voltou cinqüenta anos no tempo. Ainda era a mesma pessoa pensativa, quieta, dócil. Olhou para o próprio corpo e viu o vestido roxo de veludo. Luvas roxas. A barriga reta, sem os escombros das quatro gravidezes. Os seios espertos, a pele firme. Reconheceu ao seu redor a Sociedade Harmonia Lyra, os amigos tão jovens, misturados com a fumaça de cigarro. Uma orquestra se apresentava; no violoncelo, o seu querido Ademar tocava. Tão novo, tão vivo.

Então, quando foi cumprimentar seus pais que entravam no salão, escorregou numa folha seca de árvore, que deve ter entrado com o vento. Caiu no meio do salão, derramou o vinho, sujou todo o vestido. Neste momento, dona Glória transportou-se de volta para 2008, ao seu corpo pesado e difícil, cheio de cicatrizes e lembranças e marcas. Ela não quis reviver o vexame daquele dia no salão. Sentiu pena de si mesma...

...ao mesmo tempo que sentiu prazer em passear pelo tempo e reviver uma época que descansa no caixão. Esmagou a sensação de vexame do mesmo jeito que destruiu a folha seca, e continuou a sua vida, esperando reviver os tempos de sua infância, da infância dos filhos e da juventude antiga. Fechou a janela da cozinha, recolheu as roupas e procurou o verão pela noite que deitava.

Vanessa Bencz
Enviado por Vanessa Bencz em 08/05/2008
Código do texto: T981008