A ILHA DESAPARECIDA

Esta é a história duma ilha maravilhosa onde se praticava a pesca do atum...Contava-a o meu avô, um velho pescador que conhecia a fundo a vida do mar... São episódios marcantes que perpassam pela minha mente como um filme em que a saudade se enrola em ondas de espuma que se desfazem de encontro ao peito... Falando do mar, é inevitável falarmos das nas suas gentes, que derramaram suores e lágrimas no seu labor e nas odisseias históricas em que o Algarve tem muito que contar...

..............................................................................................Aproximavam-se os meses de Maio e Junho! Sob o sol da primavera mais brilhante com a aproximação do verão, seguiam pela ria as lanchas à vela, lembrando pombas a esvoaçar e algumas “chatas” em que alguns pescadores, com os seus braços vigorosos, empunhavam os remos com agilidade e destreza, riscando as águas azuis da Ria Formosa. Um espectáculo maravilhoso! À medida que estes pequenos barcos avançavam na sua rota para a ilha, que se avistava mais ao longe... formava-se uma estrada sobre as águas mansas e prateadas, que produziam um efeito surpreendente, ladeado por gaivotas que saudavam os seus velhos amigos. E lá ao fundo, em terra firme, o campanário das igrejas de Tavira e acolá... o Arraial Ferreira Neto, armação de atum, muito bem equipada, ainda em plena actividade... (Mas da pesca do atum, falaremos mais, adiante por ser uma das maravilhosas artes que se praticava no mar). Em frente a um extenso areal de areias douradas, começava por avistar-se algumas cabanas de colmo, onde alguns pescadores guardavam os apetrechos da pesca e outros viviam nelas. E airosamente na Torre de Aires, as deusas acenavam aos barquinhos, onde passavam príncipes do mar encantados pelas sereias.

De vez em quando, o silêncio era cortado por um camarada:

- Eh!...! Olha o tolete que vai saltar! E o “Ti João Meguel” ajustava melhor o remo quase a saltar...

- Olha Manel Zé, rende-me lá, tu qu’isto arrepartido é que tem de ser! Mai ouve cá, então o ano passado foste para a Armação Medo das Cascas e este ano mudaste?

- Pois mudi... porque as condições são melhores e fico mais perto de casa.

- Se calhar deixaste as “cascas” p’ra na fecar descascado! - diz o Zé Grilo mais humorista, sorrindo.

- Tá bem abóbora! - responde-lhe o remador, com ar paciente.

- Abóbora! Abóbora! Querias!...Mai na metes lá o “bedelho”!

E lá seguia o desfile de barquinhos veleiros, chatas e botes pelo mar fora...As primeiras lanchas começavam a chegar à ilha. Uma enorme azáfama do lado da ria, em direcção à costa. Algumas mulheres, iam saltando das embarcações para terra, com a a água pelo joelho, cestos à cabeça, saias arregaçadas. Outras mais demoradas a sair das embarcações, com crianças de colo, tentavam descer com a água pelos artelhos. Aqui e acolá, grupos de pescadores a descarregar a mobília para a temporada, sem se importar com as mulheres. Todavia, há sempre algum mais cuidadoso que alerta:

- Eh! Bia...tem cuidado ao saltar com a “criença”!

Outras mais apressadas já iam descalças pela areia molhada...

- Eh! Raios! Parece que vão “terar” os pai da forca como Sante Antoine! Eh!... Ti Catrina! Leva uma “arda” nem Dom “Meguel” que nem espera p’ra gente!

- Ó Zé João cátela com o chapéu de palha que avoa!

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Era a chegada do pessoal para a armação do atum, naquela ilha tão bela de areias branquinhas que o mar beijava docemente. Do lado da costa, já se ouvia o rumorejar das ondas, em cânticos de mar... Faziam lembrar o canto das cigarras em tardes quentes! A barra, lá mais ao fundo... que separava os extensos areais de ilhas contínuas de beleza excepcional também se fazia ouvir, no seu cantar característico, em dias de Levante!

Pelas areias escaldantes da ilha, viam-se alguns pescadores que consertavam as redes, assobiando algumas modas populares. Perto deles enormes ancoras de ferro, arinques (cabos onde se prendiam as bóias mais pequenas de cortiça), velas de barco, remos, velas, todos os apetrechos próprios da pesca. Mais adiante havia algumas cabanas de colmo, donde alguns pescadores, retiravam o material necessário, pois era nesse lugar que servia de depósito de todos os seus utensílios.

Os grupos de famílias já estavam perto das pequenas casinhas térreas que constituíam o arraial formando, uma rua fronteiriça ao mar, e donde as mulheres de olhos vidrados e ansiosos, seguiam o ritmo da pesca do atum, ansiosas pelo regresso, quando o mar atiravam ondas monstruosos, autênticas montanhas de maresias infinitas. Neste conjunto de pequenas moradias, destacavam-se algumas em se podia ver - Barbearia, Capela, Venda da Ti Joquina - Posto Médico e havia também umas barracas onde se fazia o mercado Quem fosse bom observador, poderia observar que as almadravas ( eram na verdade, a alma-do-lugar como diziam os árabes).

A ti Joquina era muito simpática, era ela que distribuía o correio e dava as novidades.

Dirigia-se várias vezes, junto dos pescadores, onde as mulheres também ajudavam no conserto de velas e redes e, por vezes, a iscar o aparelho para o peixe miúdo. Gostava imenso de conversar com o Ti João Meguel, homem muito corajoso e sabedor das coisas do mar...

- Bom dia Mestre João! - exclamou perto do grupo de homens que trabalhavam nas redes.

- Deus te salve, Joquina! - respondia o Ti João...

Quando um ou outro distraído, não correspondia ao seu cumprimento, ela muito senhora de si, não perdia pela demora:

- Eh! Lá estão d’óvidos môcos! Dêem a salvação! Amanhã, vem o Sr. Padre Antoine abendeçoá-los! Ouviram?

- Mai sará o Padre da Igreja da Senhora das Ondas? - interrogava uma mulher mais curiosa.

- Quem vai amanhã buscar o prior a Tavira, sou eu! - dizia o Zé.

E gerava-se discussão, pois todos queriam ir buscar o padre no seu bote...

- Qual bote nem meio bote, o padre vem de barco à vela... - afirmava o ti João!

- À vela sim, o que prior quer é velas de graça, que as de cera que ele vende na igreja, são mai caras que as de sebo da Holanda da minha venda - resmungava Joaquina com ar brincalhão.

- Não seja má língua Ti Joquina, a cera não é dessa! - aconselhava um mais prudente.

E afastando-se, exclamava: “A parteira cortou-me bem o freio”!Mai olhem lá, na façam muita cera voceias, e desempachem o aparelho... que já me vou...

O dia da “bendição”, era dia de festa na ilha.

Mulheres, homens e crianças, vestiam-se melhor nesse dia. Faziam um altar junto ao mar, muito bem ornamentado de flores e com alvas toalhas brancas, enfeitadas com rendas, feitas habilmente pelas mulheres. No altar colocavam a imagem do Santo Padroeiro e acendiam as velas, evocando preces para que a faina do mar tivesse sucesso e para livrar os pescadores das tragédias e fúrias dos elementos. O padre benzia as redes e com a ajuda das crianças que iam marcando. A parte final a benzer, era a do “copo”. O Padre espargia a água benta, sobre dois pescadores e pelas redes, benzendo-os. Abençoava também o mar e o sal . Depois, seguia-se um almoço para todos. Depois de aquecerem os ânimos, após uma bela caldeirada regada com bom vinho caseiro, havia quem falasse...como por exemplo, fazer comentários aos “cinco mil réis que o padre levava de benzer”... se ele já levava “dois atuns pelos votos religiosos” porque não fazia de graça a benção?

No final todos rezavam em coro, uma Salvé Rainha à moda antiga, com uma toada de características algarvias.

O homem do mar, teve desde sempre o culto religioso e por isso, colaborava com a igreja nas suas diversas formas, razão porque em todos os arraiais existia uma capela.

Mas eis chegado o dia da faina! Ao romper da alva o mar estava calmo. Ia começar o copejo.

Um espectáculo duma beleza emocionante ! Uma autêntica tourada no mar! Podiam ver-se de longe... um agrupamento de pescadores, embarcações, chatas, lanchas, etc. Os movimentos, a rapidez, dos vigorosos braços contrastavam com o silêncio magnífico daquela gente. Havia que tomar as devidas precauções, para não espantar o peixe.

O Mandador - O Ti João, dava conselhos à companha. O moço de canoa, fazia sinal de bandeiras para terra ( sinal de que tudo corria bem). Um dos camaradas ia apanhando cautelosamente os pequenos chalavares com o peixe miúdo. E o mandador alertava baixinho: - Eh! Balézinho! Cuidado, tira de pressa os chalavares que o peixe graúdo não tarda! E começava a tourada... a voracidade do atum era impressionante - uma enorme agitação da água do mar, fazia lembrar um vulcão em efervescência..., remoinhos e mais remoinhos, tumultos de água jorrando em forma de cascata. Uma autêntica revolução do peixe! Rompe-se por fim o silêncio e começa a algazarra! Os pescadores entoam e assobiam velhas canções populares, enquanto vão subindo as redes, vão alando até à superfície do mar... que nos faz lembrar exactamente uma “pega de touros”! Os bicheiros, arpões e fisgas são agora empunhados frente ao atum. Começa a luta da resistência física entre o homem, mar e o peixe. A robustez do atum exige braços possantes e homens de coragem. Quantas vezes surge o inevitável. O atum começa a espadanar e dirige-se para meio do “copo” (centro da rede onde se junta). Neste momento segue-se a luta corpo a corpo - homem - peixe - pondo em risco, muitas vezes, a própria vida.

- Cuidado! Alerta mais forte o mandador.

- Estes são p’rás comedorias e caldeiradas - exclama o ti Zé Grilo, atento aos movimentos mais bruscos.

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Era assim a faina do atum, sujeita como qualquer faina do mar a diversos perigos.

Nem sempre as coisas corriam pelo melhor. Como nem tudo o que é bom dura eternamente, deu-se um dia naquela ilha uma enorme tragédia .

O Ti João era aventureiro e nunca lhe faltava a audácia quando lhe mar oferecia perigos. Foi durante a preparação da faina do atum, que subitamente se deu um dia, uma enorme tempestade e nevoeiro intenso. Durante três dias seguidos, o mau tempo não passava e toda a companha se pôs a salvo da forma que pode. Mas o ti João, ao ver a destruição das suas redes e afundar da lanchinha que

ele amava, não deixou o mar, ninguém conseguiu demovê-lo a ir para terra. Fico aqui! O mar me deu! O mar me tira! Não deixo a minha barquinha! Ninguém conseguiu arrancá-lo do mar...Não havia tempo a pensar!

Sobre ondas alterosas, navegou ao sabor dos ventos e das tempestades. Implorando à Senhora das Ondas que o salvasse. Enormes nuvens negras como corcéis avançavam, salpicos da ondas geladas batiam-lhe no rosto. As ondas batiam ferozmente, o ribombar de trovões e relâmpagos iluminavam a escuridão trágica. As ondas embravecidas, pareciam montanhas, numa agitação jamais vista, na ânsia de tudo devastar... Era o mar em terrível convulsão... Os ventos ferozes, cortavam-lhe os gritos de socorro. jogando-os mais além da ilha e as vagas pareciam atacar, cada vez com maior rapidez. As casas ruiam...as cabanas desfaziam-se... a ilha desaparecia... Porém no coração do pobre pescador uma força interior lhe dava maior coragem . O valente arrais via tudo submergir. As gaivotas voavam em luta contra o vento e o Ti João segui-as como o olhar enevoado, elevando preces aos céus: Valha-me Nossa Senhora! Neste transe doloroso, ele agarrava com mais força o crucifixo e o “breve” que trazia ao peito, lembrando a mulher que o fizera: - Olha que estas orações e o Senhor te salvarão das ondas do mar! Exausto, já quase a desfalecer, de tanto se debater-se com a impetuosidade das ondas, meio desfalecido...seria sonho? Seria realidade? As gaivotas começavam a aparecer, pareciam anjos de asas brancas enviados do céu...a neblina a sumir... que se vai aos poucos dissipando! A claridade é maior... ao olhar a sua lancha, vê o mastro ainda de pé, somente as velas tinham desaparecido rasgadas pelo vento infernal...Num repente, num enorme lençol de luz, envolvia a embarcação e pude ver sobre uma bóia de cortiça, uma criança a boiar, cujo choro se ouvia envolto na voz do vento agora mais suave. Eram os alvores matutinos que surgiam das bandas de Levante! Estarei sonhando? Puxei a bóia onde estava um menino de grandes olhos que chorava muito.

- Quem és tu? - perguntava ainda incrédulo o Ti João.

Sou o Filho do Mar! respondeu-lhe o menino.

- Tu tens pai e mãe?

- Sim! A minha mãe é a Fada Formosa e o meu pai Gigante Atlântico.

- Tu estás doido já não existem Fadas, nem Gigantes! - dizia o pescador

- Existem sim, o teu reinado do atum acabou, amigo pescador, mas fica sabendo, que surgirão outras pescas boas para ti, o mar é rico em peixes! Terás que ir além dos oceanos e dominar o Gigante, que o meu pai é poderoso. A minha mãe, vai dar-te uma grande Ria a que chamarás Formosa e aí se desenvolverão muitas riquezas para o teu labor.

- Tu és criança e queres enganar-me... repetia o pescador.

- Estás a ver, não acreditas em mim... e dizendo isto, a criança voltou a chorar e aproximei-me dela mais pesaroso. Mas ao olhar os seus olhos enormes e brilhantes, pareceu-me ver quatro olhos na criança e sem querer disse: Mas tu és o Menino de Quatro Olhos que enganas os pescadores?

E ao dizer isto, dos olhos do menino, saíam lágrimas douradas. À medida que chorava, de cada vista, brotavam lágrimas que formaram rios de água em caudal... um verdadeiro dilúvio de água! E à medida que despejava sobre o mar as suas lágrimas em torrentes, ia desaparecendo, enquanto a sua voz murmurava:

- Dobraste-me o encanto! Agora dos meus quatro olhos, serão formados quatro águas, que ficarão para sempre. Na tua ilha, nunca mais haverão nem arrais, nem arraiais, porque o meu Pai enfurecido submergiu as almadravas... Por isso, as minhas primeiras lágrimas, beijam a terra; as segundas beijam o rio, as terceiras beijam ilha de Tavira e as quartas lágrimas beijam o Oceano - para sempre Quatro Águas, são o meu encanto!

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O Ti João olhou em seu redor atónito, mas do arraial, nada existia... A tempestade tinha passado... O coração batia mais sereno... Já me safei! O mar parecia um lago prateado...Não me sai da cabeça aquela criança...Mas onde se teria o metido o menino mágico? Seria o Menino dos Olhos Grandes que aparecia aos pescadores quando iam para o mar? Como desapareceu parte da ilha? Isto até parece coisa de bruxaria! Onde estavam aquelas casinhas branquinhas do arraial? A ilha parecia muito mais curta!

Na verdade a força poderosa do mar. tinha submergido parte da ilha! Impossível voltar à velha arte!

E o valente arrais chorava... O mar fora traidor... mas também era o seu amor! Assim é a alma do Homem abalada pela fatalidade...Mas a sua lancha deslizava suavemente nas águas da Ria Formosa rumo à terra, donde encontraria sempre o seu cais de partida e de chegada...

Esta história segredou-me o mar que aprendi a amá-lo!

E tudo isto aconteceu quando o mar destruiu a Ilha.

Zezinha

zezinha
Enviado por zezinha em 14/05/2008
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