De equinos e paixões.

De eqüinos e paixões

Naquele tempo não havia telefone celular nem computador pessoal.

O Itanhangá estava com a sua constante quota da alta sociedade. Carioca era a maioria. Alguns argentinos, pois eles eram os melhores do mundo em pólo eqüestre.

No verde campo, oito cavaleiros disputavam já o terceiro chukka.

Torcedores se davam ombros em toda extensão da cerca, vibrando com as colisões entre os Petizos de Pólo e os Puros Sangue Inglês. Os cavaleiros com seus tacos, parecendo lanças, lembravam os combatentes medievais sem as pesadas armaduras. Mas o vigor era o mesmo.

No caramanchão que servia de caffè au air, a bela jovem de languidos olhos verdes tentava não perder de vista seu cavalheiro que fora seu cavaleiro horas antes naquela manhã.

O cavalheiro da jovem tinha vinte e dois anos, cinco a mais que ela. Naquele torneio era considerado o melhor devido ao seu handcap seis. O irmão de sua amada era seu companheiro de time e dois primos dele completavam a equipe que já tinha notoriedade no mundo do pólo.

Na noite anterior, ele e ela se consideraram apaixonados. Tentaram controlar as próprias luxurias, mas em vão. Ele, alto e bronzeado. Ela, de perfeitos ombros retos e desproporcionais seios.

A consumação se deu na manhã seguinte quando a caravana chegou ao Itanhanga. Por algum motivo, ela notou que ele ainda na aparecera na raia e, num gesto de audácia, se dirigiu ao vestuário.

Vestido apenas com o justo culote branco e as botas de montaria, ele tinha nas mãos a camisa quando ela apareceu ao lado do armário. Segundos foram suficientes para endossarem todas as juras e promessas que todos os apaixonados, de todas as épocas, já fizeram.

Pingos do cabelo molhado dele lhe acariciavam o rosto. Seus braços não conseguiam enlaçar por completo o amplo torso. Mas, suas alvas coxas abraçavam os quadris como uma jibóia furiosa. A doce dor do hímem desselado, cedera ao sublime prazer libidinoso da posse que ambos faziam de si mesmos.

Ela aspirava o suave perfume de sabonete que ele exalava.

A bola espirrara do meio do aglomerado eqüino. Um cavaleiro do time adversário fora mais rápido e avança prestes a dar continuidade de tacadas. A tensão é expressa por gritos e urras da platéia.

Ela se levanta e seus seios, levemente doloridos, arfam. Seu cavalheiro, aprisionado por duas ancas eqüinas, usa sua musculosa coxa como cunha na anca de um dos cavalos, ao mesmo tempo em que puxa o arreio para um dos lados, fazendo a esplêndida massa de músculos do peito e do pescoço de seu magnífico cavalo ir de encontro ao outro cavalo a seu lado.

As pernas dela ainda tremem. Ainda sente o amor dele se espalhar por entre as coxas. Cavalo e cavaleiro como uma massa potente única avançam, deixando os dois cavalos atrás dando voltas para se equilibrarem. Ele carrega o taco embaixo da axila como um Sir Lancelot. As narinas do eqüino se dilatam, aspirando o máximo de oxigênio para responder a toda potencia que o montador está demandando.

Ela olha fascinada a sincronização dos diversos pares de músculos do peito do cavalo, lustrados pelo suor. O cheiro do embate chega até ela. Um fulgor se espalha pelo seu corpo. Não mais de uma virgem. Agora uma mulher sedenta por força, em toda sua expressão.

Ela suspira fortemente, se imaginando montada junto com ele, sentindo toda a vibração musculosa do corpo do eqüino sob as partes internas das coxas até suas nádegas.

Lancelot alcança o rival. Dá pra se ouvir o urro dos homens.

Mãos das mulheres alcançam o pescoço, a boca, enquanto seus olhos se arregalam ansiosos.

Os músculos externos das coxas de ambos cavaleiros se encostam e permanecem assim alguns segundos, parecendo que tudo em volta está parado.

Eles se empurram e por um breve momento suas forças se anulam. Ela fecha os olhos, tentando disfarçar o êxtase que começou a lhe percorrer o corpo.

Ela só os abre quando escuta o som angustiado da platéia. Seu amado rola pela grama lançado pela montaria que está caída. Seis cavalos encobrem o corpo de seu Ivanhoé.

Uma das pisadas lhe fraturou a bacia, rompendo a uretra, nervos erigentes e as artérias.

Todos pensaram que ela desmaiou devido à queda do namorado. Só ela sabia que tinha alcançado o gozo, ali pela primeira vez. Não no vestiário.

Uns quinze anos depois. O Constellation pousa em Congonhas. Os passageiros ao desembarcarem, têm que andar até o prédio principal. Isabel e o marido ainda estão no topo da escada. A nuca do homem uns dois degraus abaixo lhe lembra alguém. Por alguns segundos ele vira o rosto e ela reconhece o perfil de Léo.

- Aquele não é o Leonardo, que foi teu parceiro na equipe de pólo?

Vitor segue com o olhar o dedo da esposa. Confirmando, ele lhe diz.

- Sim, parece que é o meu primo. Vamos descer as escadas primeiro. Não quero atrapalhar os outros com efusivos encontros familiares.

Isabel e Vitor alcançam Leo ainda na fila de entrada do saguão do Aeroporto. Vitor é o mais entusiasmado por rever o primo, que só sabia dele por breves noticias dadas pelos tios.

Isabel, belíssima em seus trintas, aparentava uma languidez cansada. Não era difícil adivinhar que algo perturbava aquela mulher. Ela observa o másculo rosto de Leo enquanto sorri pra ambos durante a conversa. Ele continua com aquela áurea de deus grego. Um mínimo grisalho. Ela compara os dois homens. Seu marido, tão belo quanto Leo, tinha quase um metro e noventa, engordara um pouco e parecia mais enorme ainda devido a esbelteza de Leo.

- Agradeço muito, mas não posso. Ainda hoje sigo pra Barretos pra entregar essa encomenda do embaixador a seus familiares.

- Oh, mas você não pára! Da última vez soube que você estava na Mauritânia!

- Mauritânia? Onde é isso? – exclama Isabel sem demonstrar muito interesse.

- Na costa atlântica da África. Logo abaixo de Marrocos. A Mendes Junior está construindo uma estrada por lá. E como não temos consulado na Mauritânia, nosso embaixador em Portugal é quem os representa. A bomba estoura em mim, pois tenho que ir de um lado pro outro!

- Bem... Nós estamos indo para Ribeirão Preto. Parentes fazendeiros...vão casar...

- Oh sim! Venha conosco até lá - Isabel diz de repente.

- Agradeço. Muito obrigado mesmo, mas tenho um prazo a cumprir. E também aceitei esta função devido aos rodeios. Sabia que a cidade está se tornando famosa devido a eles?

- Ah sim. Cavalos! – A esposa de Vitor exclama sem se dirigir a qualquer dos dois.

- Rodeio? Como os dos americanos? Com cowboys e tudo?

- Sim, Vitor. Com cowboys e tudo!

O taxi deixa Leo na entrada principal da Estação da Luz, a imponente construção vitoriana, construída pelos ingleses por volta de 1901. Já sentado no vagão restaurante, ele opta pelo O Cruzeiro, deixando os jornais de lado. Ele está matutando qual causa da insistência de seu primo Vitor em fazê-lo prometer que o esperaria em Barretos, mesmo que as festas acabassem.

`Ainda bem, que não prometi isto. Espero que ele não queira ir pra Santos também´- pensa Leo.

Anibal era um fenômeno. Desde do Buldoging à Sela Americana, ele tinha conseguido mais pontos que todos os campeões anteriores. Sua elegância de gestos em se manter acima dos oito segundos em cima daquela explosão que salta como uma mola de músculos, chega a ser lírica como uma escultura de Remington.

No dia da prova Cuttiano, eles apareceram. Isabel com sua beleza natural e descomprometida com a vaidade, ainda magnetizava os homens e deixava as mulheres enciumadas. Ou talvez, apaixonadas.

Antes da prova, almoçaram juntos. Vitor disfarçou levemente o mal-estar quando Isabel disse que ia dar uma volta.

- É sempre assim. Parece que eu casei com um manequim de vitrine. Consegui convencê-la a casar comigo, mas nesses três anos só tenho frigidez e rumores de que ela me trai. Como pode? Ela ser fria comigo e me pôr chifres?

Vitor empurra o chapéu panamá para trás revelando já um pouco de calvície ao mesmo tempo que esparrama as costas no encosto da cadeira, faz sinal pra um dos garçons.

Quando Isabel retorna, eles já beberam mais da metade da garrafa de Black & White e Leo sabia por inteiro toda a vida pregressa dos últimos quinze anos da bela mulher a sua frente.

Isabel está sentada entre os dois. Vitor e Leo conhecem de cavalos e equitação. O espetáculo os deixa comprenetados como dois guris vendo as matinês de Roy Rogers.

Mas Leo demonstra uma áurea de alguém apaixonado, como se sonhasse em estar no lugar do peão sendo impulsionado para ar como uma marionete.

Pela primeira vez desde que se encontraram, os olhos de Isabel tem agora um semblante diferente, de curiosidade. Ela se volta e fita Leo, depois retorna o olhar pro centro do picadeiro onde Aníbal lança seu chapéu pra platéia depois de ficar doze segundos em cima dum azalão.

À noitinha, os três saem a esmo pelo promissor centro de Barretos e num dos bares que entram, Leo reconhece Aníbal com mais quatro amigos numa mesa. Enquanto Isabel e o marido vão sentar-se, ele se dirige à mesa dos peões e cumprimenta efusivamente o jovem quase campeão. Depois vai sentar-se com o casal de amigos.

- Aquele não é o cavaleiro que ganhou as provas de hoje?

- Não é cavaleiro, Isabel! É peão.

- E até os dezessete anos nunca tinha usado calçados. – completa Leo.

- Ele é bem jovem, não é? E bonito!

O rosto sorridente de Vitor se fecha. O breve silencio trouxe o mal-estar para os dois homens. Isabel parecia não perceber e seu olhar estava longe dali. Neste instante Aníbal se aproxima da mesa deles.

- Vim agradecê ao sinhô pelo seo apoiu! – e estende a mão a Leo. Depois a Vitor.

Este o olha e diz com escárnio.

- Não sei onde esteve tua mão, ó caipira! Mas você até que foi mais ou menos na competição!

Os olhos de Aníbal se abrem em espanto. Leo tenta contornar a situação e apresenta Isabel ao aturdido peão.

- Encantada. Sente-se conosco.

- Eu... eu não posso. Nóis vai pro bar do Triguero.

Para alívio de Leo, os amigos de Aníbal o chamam e ele se vai com um olhar de criança assustada. O sorriso de Isabel se alarga nos cantos da boca e suas narinas dão uma leve tremida.

- Você! Você é uma puta! Rampeira! – Vitor, com os dentes cerrados, exclama com certa discrição.

- Me leva pro hotel, Leo! Agora, por favor

-Sim! Tira essa vagabunda da minha frente!

- Calma, calma primo! Acho que a bebida está fazendo cabriolas na tua cabeça! Vamos esquecer o incidente e tomar mais uma rodada!

- Se os dois meninhos vão ficar se consolando, eu vou embora sozinha!

Isabel se levanta e segue a passos decididos pra fora do bar.

- Fica aqui Vitor! Vou acompanhá-la ao hotel e volto pra continuarmos nossa `bebedeira´!

Leo dá dois passos além da calçada e olha de um lado pro outro e não vê Isabel.

- Hei, cowboy!! Estou aqui!

Leo se volta e a imagem em penumbra de Isabel lhe acelera o coração. Tomado por todo seu vigor, ele toma Isabel em seu braços e a beija como se fosse um amante de longa data. Isabel se abandona completamente a umidade da boca faminta de seu primeiro amante.

- Me completa, meu amor, me completa! Me leva pro bar do Trigueiro!

Isabel conseguiu seu gozo depois que o suor escorreu do jovem corpo de Aníbal e o cheiro de perfume do sabonete barato já tinha se evaporado. Desde daquela tarde no Itanhanga ela espera pelo Leo suado que lhe traria toda a força viril de dois animais para dentro dela.

- Onde ela está? Pra onde você a levou, Leo?

Os dois primos estão na suíte de Vitor e Isabel. Leo tenta ignorar a pergunta de Vitor se servindo de uma dose das garrafas em cima de uma mesinha.

Vitor leva alguns segundos pra perceber onde sua esposa estaria. E dois minutos para pegar o primo por um dos ombros fazendo-o voltar-se e socá-lo no rosto.

Leo absorveu o soco sem reagir, caindo no tapete. Vitor segurava os dedos da mão agressora com a outra.

- Droga! Ainda isso. Acho que quebrei a mão! Tudo culpa sua, castrado filha da puta!

Leo, ainda caído no chão, apenas tenta massagear o queixo, notando que seu lábio inferior está sangrando.

- Escuta, primo. Ela está bem. Está em segurança. A partir de hoje tudo vai mudar. Vai mudar pra melhor. Você só tem que esquecer o que aconteceu aqui esta noite entre todos nós e voltar a ter confiança na fidelidade de Isabel. Ela encontrou-se a si mesma esta noite. Vamos brindar a isso!

- Não! Não! Nunca mais poderei me olhar no espelho! Voces dois tramaram contra mim! Eu vou matá-la! E quanto a você... brinde a sua castração, eunuco de merda!

Leo deixou a porta bater atrás das costas do primo e então algumas lágrimas escorrerem de seus olhos. Depois se recompôs e saiu em alcanço de Vitor.

Não se sabe como, Vitor encontrou o hotelzinho de baixa categoria onde sua esposa urrava em êxtase. Depois foi um abafa-abafa só, dinheiro sendo passado pra mão dos policiais e do dono do hotel, levar Aníbal pra levar pontos na sobrancelha e Vitor embarcando no último trem pra Ribeirão Preto. Parentes estariam esperando por ele.

- O que você vai fazer agora? Volta pro Rio ou vai encontrar-se com ele em Ribeirão?

Isabel se mostra mais sorridente. Não aparenta que tenha vivido e descoberto um grande amor. Simplesmente exala serenidade.

- Ele só tem vinte anos e quer casar comigo...

- Bom... agora você deve seguir com seu casamento. Você sabe que ele te adora.

- Todos me adoraram. Todos! Mas nenhum deles era você! Você não foi o único castrado naquela tarde. Fui mutilada da feminilidade quando a tinha descoberto e esperava por você para entregá-la e tornar-me uma mulher completa. Passei esses anos todos sendo incompleta. Nunca procurei por amantes. Eles que me procuravam, cortejavam, prometiam reinos e eu lhes respondia em seus desmandos e abusos porque nada lhes tinha pra dar. Nada lhes prometi. Também eles nunca me deram a paz.

E – prossegue Isabel – quando vi o quanto você se identificava com Aníbal uma velha chama voltou a arder dentro de mim. Eu acho que você também queria que eu fosse possuída por ele, como seu alter ego. Também pensei assim e foi bom. Mas nada espetacular, apenas me libertei daquela heroína na pele de Messalina.

Isabel se volta e passa os braços em volta do pescoço do primeiro amante.

- Acredite, meu único amor, fomos gêmeos no infortúnio todos esses anos.

- Sim, eu me resignei. Me escondo fazendo contatos em obscuros países da África, demorando o máximo que posso em distantes cidadezinhas e vilarejos. Escondo minha dor e todos pensam que sou um benemérito nas vidas de populações miseráveis. Ganhei até condecorações por isso. Você se curou. Eu não. E você terá toda uma vida com Vitor.

- Nem pensar! Me casei com ele porque me venceu pelo cansaço. Ele vivia dizendo que era dever dele me tomar como esposa devido ao acontecido com você! Vou pra Belo Horizonte. Minha prima Hilda abandonou o noivo no altar e foi viver num hotel de baixo meretrício. Tenho certeza que ela vai gostar de minha visita.

Aníbal foi o campeão de fato. Perdeu para a prova do Touro. A luta da noite anterior tinha lhe exaurido as forças e as dores das escoriações o impediram de concentrar-se na elegância de seus movimentos e por duas vezes tocou o corpo do touro com a mão livre, sendo desclassificado. A platéia ficou desolada e aplaudiu sem nenhum entusiasmo o novo campeão.

Quando Isabel e Leo desciam as escadas ao final da cerimônia, um dos amigos de Aníbal se aproximou deles e disse a Isabel que ele a estava esperando.

- Meu amigo, diga ao Aníbal que a dona Isabel foi embora e que ela escreverá em breve! – se antecipa Leo.

Isabel retira o próprio braço que enlaçava o de Leo e encara languidamente o peão.

- Eu levo a sinhora `té lá!

Não será nenhuma coincidência se encon-

trarem o dedo incorpóreo de Hemingway

e também a inspiração visceral em Lúcia

Híbrida terrena.