Beth ou a Passageira

Beth,ou A PASSAGEIRA

Beth fez um gesto teatral como a dizer que pouco se importa, e não se importou mesmo em deixar Rochas Salgadas para sempre ,sequer abandonar os filhos. O Felipe,ex-marido, que se encarregasse doravante. Mal ou bem eles cresceram e adultos ,a mesma distancia que os separou do seu pai passou a existir entre ela e os dois meninos.

"-È um jeito diferente de viver a vida e pensar ,é uma distancia de afetos, sentimentos ou interesses. Quando vou ver existe um abismo e tenho duas opções : ou me atiro no precipício ou volto atrás. Vou voltar !"Beth quase grita sozinha, tão cansada está de pensar. Não gostava mesmo de reflexões,raciocínios , e isto desde a infância. Gostava de fazer, de ter atitudes ao invés de viver como uma sonhadora tal qual a amiga Nicole que vivia a fazer poemas, escrever,sem ganhar um tostão. Mas porque ela apareceu para perturbar seus pensamentos ? Pode ser pelos sentimentos com ela no convívio desde meninas. Destacava se , lembra Beth onde fosse ou o que quer que fizesse. Nas festas os colegas gostavam dela. Era cheia de vida e alegria. Invejava a . Houve certa época que manteve o Felipe bem afastado , inventou uma intriga, pois tinha medo que a largasse pela Nicole. Hoje não se importava! Os dois foram mal sucedidos. Felipe gostou dela, casou com ela, teve esperanças, sabia...Ela, entretanto ,o viu como alguém que a tirava de um status social mais baixo para outro mais elevado. Hoje não queria mais viver nesta posição que o ex marido a colocou. A verdade é que nunca compreendeu estas pessoas e sequer se esforçou, diga se de passagem. Tinha saudades das coisas chãs da vida, domésticas: a televisão,as novelas, ,o trabalho da casa , comprar o pão todos os dias ,cuidar de crianças e a economia doméstica.

Foi uma simples passageira neste barco onde estavam Nicole, Amanda, Sílvia, Felipe,René e todos os outros conhecidos. Deixava nesta passagem pela vida deles, os dois filhos já crescidos e mais nada. Já que todos eles a vão esquecer facilmente ,ela ,por sua vez, não os queria mais ver. O que quer é voltar para a antiga vida que gosta :lar ,um novo homem com dinheiro e prático ,em meio a esta recessão, mais novas crianças. Gostava dos filhos quando eram pequenos, quando cresciam começava a distancia as diferenças de opinião e a atração pelo intelectual que herdaram do pai .Sentia se inútil e não compartilhava de suas idéias. O melhor mesmo é começar tudo novamente , com outra pessoa , a pessoa certa, o homem do dia a dia, do pão- pão, queijo- queijo.

João não tinha nada, mas” nadinha” de intelectual , sonhador, ou conversador, como o ex marido. Eram opostos. Por isto tudo vai dar certo desta vez. O primeiro marido embora fosse um homem de realidade, dela se afastava pela própria profissão. Um pintor convive com intelectuais quer queira , quer não queira .E Felipe era o mais gozado dos intelectuais que conheceu, porque era intelectual e não queria ser.Perspicaz percebia a antipatia por este tipo de pessoas que ela nutria. Às vezes tinha a impressão que ele não se gostava ou, talvez ,não gostasse dela. Casou com ela mais por se comover com a falsa modéstia de que lançou mão para o conquistar. Nunca esqueceu o que disse:

-Sou uma moça muito modesta para ti!

Funcionou, e funcionou porque esta era a mesma situação da mãe dele com o pai. Conhecia a paixão dele pela mãe. Sabia pouco de psicologia, mas não tão pouco, e era esperta o suficiente para repetir a frase que escutou em adolescente numa conversa dos pais dele. Aprendeu,com a sogra, a se mostrar dócil ,modesta e humilde . O resto foi fácil, pois todos estavam casando na época. Eles foram os próximos. Pessoa difícil , ele? Isto é o que todos pensavam.Facílimo! Ela , Beth ,entretanto , foi quem se revelou impossível. Nunca lutou por ele ou pelo casamento. Nunca trabalhou ou seguiu os estudos como tantas vezes ele pediu e ofereceu. Tratou o como um degrau na vida e ainda o culpou pelo fracasso do casamento.

Beth , recostada na janela , resolve entregar para o mar de Rochas Salgadas os últimos pensamentos antes de se ir para sempre:

-O que deixo aqui são dois filhos adultos ,um aceno para o mar e mais este momento de sinceridade. Estou decidida a não me despedir de ninguém. Faço como ofensa mesmo para que não me procurem . Sou passageira de um novo barco, um novo horizonte, que eu deveria ter encontrado anos atrás, ao invés do que se me deparou,e vou ter a modéstia que não tive no passado .Casei com Felipe , fiz sua infelicidade e mais a de meus dois filhos, além da minha . Vou deixar o lugar ao qual nunca pertenci , vazio , sem saber se alguma vez o preenchi. Creio ,entretanto, que minha ausência não vai ser sentida por ninguém. Sou como uma passageira sem encantos que acena de um navio para um punhado de pessoas do passado frustrado,um engano.Olho para um futuro certo e deixo como lembrança este simples poema que minha amiga Nicole fez com aquele ar sonhador e fora da realidade.Jogo a poesia no mar,nem li,não quero levar nada daqui,os peixes e os vagalhões de ondas que o aproveitem e compreendam:

Ausência

Dia triste de chuva,

e de chá mais bolinhos com tricot...

Dia triste de chuva,

e de lareira acesa mais livros com música...

Dia triste de chuva ,

e de chá com bolinhos mais lareira acesa,

mais música ,mais livros , mais tricot ,

e menos você...

Suzana Heemann

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 29/05/2008
Reeditado em 28/06/2008
Código do texto: T1010108
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