Simples Atos

Sinopse

Simples Atos conta a historia de quatro fatos que marcaram a vida de um medico. Ele relembra estes fatos, no dia em que completa 43 anos ao lado da família e amigos. Faz uma narrativa dos últimos dias na faculdade de medicina até sua chegada ao hospital Sarah Kubistschek em Brasília, onde faz sua residência em pediatria. Esta historia é recheada de emoções, aventuras e aprendizado quando ele decide ir de carona e conhece pessoas que cruzam sua vida, deixando marcas para sempre.

Parte I – Coisas Pequenas

Em meados dos anos 80, estava chegando ao fim minha faculdade de medicina. Meu nome é Júlio Gonçalves, sou alto, de cabelos castanhos e lisos. Minha pele é morena ou de cor parda. Sou magro e deve ser por isso que meus amigos me chamam de “pardal”. Mas até hoje não sei o motivo. Num dia do mês de novembro, cheguei à faculdade debaixo de uma garoa e um frio meio fora de época. Só com um capuz que cobria a cabeça acabei me molhando todo. Detestava ter que levar guarda-chuva. Aliás, isso é uma coisa que não suporto até hoje. Entrei no corredor que dá acesso às salas de aula da faculdade. Era um piso liso, algum tipo de alcatex. Estava sujo na entrada e várias marcas de pés manchavam o chão. Havia uma senhora com um esfregão na mão, tentando limpar o piso. Era tudo em vão, pois ela esfregava de um lado e pessoas vinham e sujavam do outro. Pude ver estampada na sua cara, a decepção com o trabalho perdido e o cansaço de seu velho corpo gasto pelo tempo. Cheguei perto, olhei para ela e disse:

- Por favor, senhora.

- Deixe-me limpar meus pés no pano.

E assim fiz e fui para sala. Antes de entrar olhei para trás e vi outras pessoas fazendo o mesmo. Claro, havia aqueles que não davam a mínima importância ao esforço do trabalho alheio. Estava começando a aula, o professor esperava todos chegarem. Sentado em sua cadeira podia ver como sua imagem era imponente. Ele vestia um jaleco branco por cima de uma camisa de linho branca e uma gravata vinho com listras preta e branca.A calça era preta como seu sapato ,tipo aquele 752 da vulcabrás, que brilhava e refletia sua própria imagem. Ele se orgulhava de suas roupas, dizia sempre assim:

- “Um homem é o que ele veste”

Uma figura. Com alguns poucos fios, tentando disfarçar sua calvície. Uma barba que cultivava de bem longe, porém era sempre bem aparada. Dizia que a barba ele deixou crescer, porque quando começou a dar aulas, tinha cara de novo. Como forma de impor respeito aos alunos, optou por pêlos no rosto. Usava óculos de armação preta de lentes bem grossas, que mais pareciam fundo de garrafa. A verdade é que com aqueles óculos, ele podia ver alguém colando na última carteira e sem sombra de dúvidas, delatava o aluno infrator. Seu nome derivava do nome do seu pai, que era igual ao do seu avô, que era igual ao do seu tataravô e assim por diante. Chama-se Adamastor Pinto, e tinha orgulho do nome. Sua disciplina era de anatomia, outro orgulho de sua vida. Tinha especial atenção ao falar de sua família, especialmente sua esposa Clara e os três filhos, Adamastor, Isabelle e Luiz Miguel. Este último parecia nome de cantor brega ou de ator mexicano de novelas enlatadas, ele deve ter se inspirado muito.A sala encheu e ele se levantou da cadeira de professor. Começou a falar da matéria e todos ficaram em silêncio total. Ele tinha fama e era bem rigoroso. Era dia de prova final de anatomia. Esperou até bater o sinal e distribuiu as provas. Enquanto isso eu ficava pensando, olhando para o nada. Minha namorada e amigos me chamavam:

- Ô pardal...

- Acorda rapaz.

- Amor, tudo bem com você?

- Está sim.

A última prova para me formar. Ficamos lembrando eu, minha namorada Júlia e meus amigos Pedro e Juninho, dos anos que passamos juntos na faculdade e em nossa cidade. Não faltaram coisas engraçadas. Vários tipos de tombos e trocadilhos nos momentos mais impróprios. Lembramos do horror dos trotes que sofremos e nos regozijamos com os trotes que demos nos calouros. As caretas e crises de risos, sobressaíam à angústia da prova final. Estava tenso, mas ciente da minha capacidade intelectual. O professor disse:

- Boa sorte à todos.

Virei a prova e comecei a ler a questão um. Que moleza, logo pensei. O professor, deu um questionário dentro da área no qual eu queria me especializar, pediatria. Havia estudado muito e além de tudo, sempre me destaquei por ser um bom aluno. Era um total de nove questões. Oito valiam um ponto cada e a última dois pontos, num total de dez pontos, que era o valor total da prova. Fui respondendo uma por uma, estava mais fácil do que pensei, até chegar à última. A última questão perguntava:

- "Qual o primeiro nome da mulher que faz a limpeza da escola?”

Sinceramente, isso me parecia uma piada ou pegadinha ,que valia dois pontos. Eu já tinha visto a tal mulher várias vezes, inclusive antes de entrar na sala de aula. Foi a mesma com quem me deparei limpando o chão do corredor. Foi nela e no seu semblante, que eu pude ver, o cansaço e a exaustão do trabalho perdido. Ela era alta e magra, cabelos escuros que provavelmente eram pintados, aparentava ter quarenta anos, usava vestido comprido, típico de mulheres evangélicas e por cima, um jaleco azul claro com a logomarca da faculdade. Na cabeça um lenço prendia os cabelos longos. Tinha na minha frente a visualização daquela mulher, mas como eu ia saber o primeiro nome dela? Quando a vi e troquei algumas palavras com ela, sequer olhei com curiosidade para seu crachá ,que além de sua especialização, tinha seu nome escrito.

Eu entreguei minha prova deixando essa questão em branco, não adiantava ficar esperando que o nome daquela senhora caísse do céu. Já ia eu saindo antes do tempo estipulado, quando ouvi a voz de Marcelo, meu amigo de turma, que foi logo perguntando ao professor:

- Com licença professor Adamastor.

- A última pergunta do teste vai valer ponto na nota?

- Mas é claro que sim, respondeu o professor.

Na carreira que vocês escolheram, irão encontrar muitas pessoas. Todas elas têm seu grau de importância, elas merecem sua atenção mesmo que seja, com um simples sorriso ou um simples oi. Na verdade, você pode e deve ser importante, mas melhor que isto, é ter o respeito ao próximo, é olhar o valor que você dá aos humildes. Eu nunca mais esqueci desta lição e também, acabei aprendendo que o primeiro nome da mulher da limpeza era Maria do Socorro.

Um mês e meio depois me formei. Veio a colação de grau, a festa de formatura, risos e muito choro. Consegui um estágio em um hospital importante na capital do país. Pus meu diploma debaixo do braço e com uma carta de recomendação, fui em direção ao meu destino. Coloquei algumas roupas na mochila, pois resolvi começar vida nova e também com tudo novo. Despedi dos meus pais e amigos, saí olhando para trás. Ao invés de carro ou ônibus como condução, fui de carona.Sob protestos de minha mãe, saí caminhando de casa. Fui até a estrada para me arriscar e logo consegui carona em uma carreta. O motorista da carreta perguntou:

- Pra onde vai guri?

Parte II - Caminhos

- Estou indo pra Brasília.

- Então sobe.

- Pra onde o senhor vai?

- Vou até Montes Claros.

- Deixo você no caminho.

Subi a bordo de uma carreta Scania de última geração. Parecia uma nave espacial de tantos botões. No seu comando estava o capitão Bittar, digo o motorista Marcus Bittar. Um camioneiro típico dos pampas e com descendência européia. Ele era pouco queimado pelo sol, assim com vemos nos alemães, com muitas marcas avermelhadas pelos braços e peito. Ele usava na cabeça um chapéu meio aveludado, que o protegia do sol e da chuva igual àquele usado pelo Bino, personagem de Stênio Garcia no seriado Carga Pesada, que também disfarçava sua calvície. Um bigode grande e carregado. Estava de camiseta branca e uma toalha de rosto pendurada no pescoço. Era bastante devoto de Nossa Senhora Aparecida, fácil percepção pelas imagens da santa coladas por toda a cabine da carreta. Um adesivo enorme no meio do pára-brisa dianteiro, outro na janela da porta ao seu lado, um pequeno terço pendurado no retrovisor central e uma imagem que ficava no quebra-sol acima de sua cabeça, na qual, ele sempre olhava e se benzia com o sinal da cruz. No painel perto do velocímetro a foto da esposa e dos três filhos, servia de lembrete para que ele não corresse e assim não arriscasse a vida. Depois que me ajeitei no banco e puxei o cinto de segurança, coloquei minha mochila no chão perto dos meus pés, Marcus então perguntou:

- O que tu vais fazer em Brasília guri?

- Vou fazer uma residência.

- Residência?

- É um estágio num hospital ,até adquirirmos prática.

- Então tu vais ser médico?

- Foi pra isso que me formei em medicina.

- Porque tu não disseste logo.

- Tenho uma dor aqui que não pára nunca.

- A famosa dor aqui.

- Hahaha, essa mesmo.

Marcus era um brincalhão e seu jeito meio ríspido faz com que tenhamos outra opinião a seu respeito. Olhando para ele me lembro do desenho do Asterix, barrigudo e com aquele bigodão. Só faltava ter cabelos compridos em tranças iguais ao povo nórdico. Falava e gesticulava sem parar, ponto forte em pessoas que vagam solitárias como camioneiros. Imagine ficar com os olhos e a atenção na estrada o tempo todo. Estar sempre com os ouvidos aguçados, em qualquer mínimo barulho que seja.Uma fração de segundo, de desatenção podia significar sua morte. É sem dúvida uma profissão de risco como qualquer outra. Sempre interrompia sua conversa com frase que dizia:

- “Sai da frente barbeiro”.

- “Quer nos matar seu filho da puta”.

Não ligava para o que ele falava e nem mudava minha opinião sobre ele. Sempre soube que em momentos de raiva falamos o que não queremos e magoamos a pessoa que mais gostamos. Depois sempre vêm as palavras mágicas “desculpe” e “me perdoa”, como se essa fosse a solução de todos nossos problemas. Como uma borracha mágica que apaga nossas imperfeições. Meu pai dizia: “a palavra é como um tapa na cara, por mais que espancamos a pessoa que nos bateu, nunca vamos tirar o valor de um único tapa. Por isso desculpas são apenas palavras”. Meu pai nunca teve grau de instrução, mas me ensinou coisa que ele aprendeu com a vida e que nenhuma faculdade nos ensina. Meus pensamentos foram interrompidos subitamente por um cutucão no braço, seguido de uma pergunta:

- Tá com fome guri?

- Claro amigo.

- Dez quilômetros pra frente tem um restaurante da melhor comida de minas.

- Paro sempre aqui disse Marcus.

Andamos mais dez quilômetros e chegamos a um posto de gasolina às margens da BR 040, km 305. O posto Roda Viva ficava no município de Três Marias no estado de Minas Gerais. Logo na entrada do restaurante tinha uma placa que dizia: “O paraíso do camioneiro, coma até cansar e pague pouco”. A cidade que se orgulha pelo turismo, atrativo esse que se deve ao lago de Três Marias. Pescadores de todo Brasil se acomodam em pequenas pousadas e enchem a cidade. Eles vêm sozinhos, em excursões ou trazem toda a família. Hotéis e pousadas estavam cheios, horários de almoço onde todos buscavam as lanchonetes e restaurantes. Entramos no restaurante típico mineiro, com fogão de lenha bem no centro do salão. Marcus esfregou uma mão na outra e foi logo se servindo. Optei por ir ao banheiro primeiro. Quando voltei me servi e fui pra mesa me sentar com Marcus. Veio então uma garçonete que colocou sobre a mesa um copo de água. Ela aparentava ter uns quarenta anos, usava um avental azul e branco e tinha os cabelos presos por um lenço. Com a voz ríspida e corrida disse:

- Bom dia, meu nome é Marta.

- O que vão beber?

- Uma cerveja, disse Marcus.

- E pra você?

- Um suco de laranja.

Alguns minutos depois ela chegou trazendo o suco e a cerveja. Olhava a satisfação de ver Marcus saboreando uma canjiquinha com costelinha. Uma chupada no osso entre um gole e outro de cerveja. Ao redor pessoas de crenças, costumes e maneiras diferentes. Camioneiros levando e trazendo cargas, motoristas que trazem e levam vidas, que dão vida. Enquanto esperava meu novo amigo deliciar-se com sua comida, fiquei ali observando as pessoas, em suas vidas cotidianas e corriqueiras. Homens sozinhos, em duplas ou em bandos rindo e falando de não sei o que. Indo pra lá e vindos de cá ou vice-versa. Casais com crianças e até casais que não são casais se sentam juntos, pois não haviam mesas vazias. O restaurante estava completamente lotado. O fundo musical ficava por conta de uma antiga melodia na velha vitrola no fundo do salão, mas o que sobressaía eram os gritos, risos, choros de crianças e o arrastar das cadeiras e mesas. Uma orquestra de barulhos contundentes.

Vivia numa época em que um sorvete custava muito menos do que hoje. Um menino de dez anos entrou no restaurante e sentou numa mesa bem lá no fundo. Outra garçonete de nome Ana colocou um copo de água na frente dele e com um bloco de notas ficou olhando pra ele. Ela estava apavorada, mascava um chiclete e tinha um cigarro preso à orelha, o restaurante cheio e não haviam mais mesas. Então o menino franzino olhou para ela por cima de seus óculos e perguntou:

- Quanto custa um sundae?

- Cinqüenta centavos, respondeu a garçonete.

O menino puxou as moedas do bolso e começou a contá-las. Olhando para a moça que batia os pés no chão impaciente, e outra vez perguntou:

- Quanto custa um sorvete simples?

A essa altura, muitas pessoas estavam esperando por uma mesa. A garçonete estava perdendo a paciência e com a voz áspera, de maneira brusca, respondeu:

- Trinta e cinco centavos.

O menino, mais uma vez, contou as moedas e então disse:

- Eu vou querer então o sorvete simples.

A garçonete trouxe o sorvete simples, a conta, colocou na mesa e saiu. O menino acabou de tomar o sorvete, pagou a conta no caixa e saiu. Quando a moça voltou, ela começou a chorar à medida em que ia limpando a mesa. Do lado do prato, havia quinze centavos em moedas, ou seja, o menino não pediu o sundae porque ele queria que sobrasse a gorjeta da garçonete. Aquela moça que aparentava ter seus vinte anos aprendeu o que muitos ignoram, nunca devemos fechar os olhos para as pequenas coisas do dia a dia, porque uma grande oportunidade pode passar e esta oportunidade pode mudar sua vida.

- Vamos embora guri? Perguntou Marcus.

Parte III – Cores

Saí do restaurante olhando a moça chorando e na mente a lição que o garoto nos deu. Antes de sair dei adeus a Marta. Enquanto caminhava com Marcus até a carreta, olhei para o letreiro do posto, Roda Viva... seria melhor se fosse Rodas de Vidas. Subi à bordo da nave vermelha do capitão Bittar, fomos saindo bem devagar do pátio e pegando a estrada. No retrovisor podia ver o garoto sentado num banco da praça, olhando para a estrada. Não compreendi qual era o significado daquele fato, imagino que aquela jovem moça de vestido azul deve ter ficado perplexa como eu. Ela aprendeu de uma maneira e eu de outra, mas o que vale é levar essa sabedoria no coração e na mente. Dar valor a um simples sorriso, um olhar e nunca trazer magoas no coração para onde quer que vamos. Ser felizes com nossas vitórias e levantar, sacudir a poeira com nossos erros, pois eles não são os primeiros e também não serão os últimos.

Viajamos por horas e depois de tanto silencio, Marcus disse:

- Guri tá na hora de dizer adeus.

- O trevo pra Montes Claros é logo depois dessa reta.

- Você tem que seguir a BR 040 até Brasília.

- Foi um prazer viajar com um rapaz tão legal.

- Tenho certeza que vai ser um excelente médico.

- Poxa vida o prazer é todo meu Marcus.

- Fica com DEUS meu amigo, eu disse.

Ele parou o Scania, desci a escada dizendo adeus e agradecendo. Bati a porta e ele arrancou fazendo subir poeira amarela do acostamento. Andei até ficar num ponto estratégico, para pegar carona e estiquei o polegar. Aí vem o primeiro, oba vou viajar de carro. Olha eu aqui moço, me leva aí.Tudo bem foi o primeiro e tem muitos ainda. Lá vem o segundo nada, mas o terceiro eu vou, nada. Putz, tá difícil. É o décimo carro que passa aqui e nem me olha. Vem mais um carro preto e para, corri até ele e o motorista arrancou rindo da minha cara. Pensei... será que ele gozou fazendo isso ou eu fui só mais um idiota que ele sacaneou hoje? Aposto que ele saiu dizendo, “mais um, mais um...”. Uma camioneta está vindo, estiquei o dedão e ela parou. Era um veículo fora de condição de trafegar nas estradas. Com a lataria toda amassada nas cores verde e branca, os acessórios amarrados por cordas e suja até à alma. Uma bomba ambulante, um verdadeiro perigo. Corri até chegar nela e o motorista falou:

- Estou indo para uma fazenda antes de Cristália.

- Ela fica no caminho pra Brasília? Eu perguntei.

- Deve ficar dez quilômetros antes.

- Pra mim está ótimo.

- Mas você vai ter que viajar lá atrás.

- Tudo bem.

Sentei-me na carroceria em meio a artigos veterinários, defensivos agrícolas e celas de cavalos. Um frio trazido pela velocidade do carro, me fez pegar na mochila minha jaqueta de nylon. Olhava para o céu e estava encoberto pelas nuvens, com um tom meio acinzentado. Pensei na hora, vai chover. Logo em seguida escutei um barulho vindo do motor da camioneta , já cansado pelo uso. O motorista a encostou do lado da pista e foi logo abrindo o capô frontal. Desci para ver o que tinha acontecido. Meio desolado e ao mesmo tempo já sabendo que isso ia acontecer, ele disse:

- Sinto muito filho, você vai ter que arrumar outra carona.

- O motor pifou.

- O guincho deve demorar.

- Tudo bem e obrigado pela carona, disse.

- Eu vou andando até arrumar outra.

- Fica com DEUS amigo.

Continuei minha viagem agora caminhando. Esperava chegar à noite do mesmo dia, em Cristália, divisa de minas com Goiás, que devia estar a uns vinte quilômetros de onde eu havia parado. Mas como vive todo carona, sem rumo e sem tempo certo, fiquei na estrada sozinho. A noite chegou rapidamente escurecendo o caminho. Resolvi procurar um local para passar a noite e também descansar um pouco. Encontrei um banco de parada de ônibus ,que tinha alguma proteção contra o sereno daquela noite fria. Esvaziei a mochila e vi que mesmo contra minha vontade, minha mãe havia colocado mais uma blusa e um pacote de biscoito enrolado nela. Pensei no quanto ela se preocupava comigo e no quanto eu a amava. Vesti a blusa ,pus a jaqueta por cima e comecei a comer o biscoito. Fiquei imaginando minha família comendo um delicioso requentado das sobra do almoço. Com essas lembranças acabei dormindo fazendo da minha mochila vermelha um travesseiro.

De madrugada acordei com frio e as roupas um pouco molhadas, pois havia começado a chover. Ao levantar para ajeitar-me, notei que uma senhora negra, com mais ou menos sessenta e poucos anos, com um vestido de festa e cabelo preso, estava ao lado da estrada enfrentando uma chuva insistente. O carro dela, um Fiat 147 branco, tinha enguiçado no meio daquela noite e ela precisava desesperadamente de uma carona. Completamente molhada, ela começou a acenar para os carros que passavam. Depois de algum tempo, um carro de cor vinho parou e um jovem branco desceu. Sem ter medo da violência e insegurança da nossa realidade, ofereceu para ajudá-la. O rapaz a levou para um lugar protegido e procurou ajuda mecânica.

Na manhã seguinte de nuvens cinzas, eu levantei meio tonto de sono e andei pouco menos de cinco quilômetros até chegar em um posto de gasolina. Lavei o rosto e fui à lanchonete, onde encontrei aquela senhora negra tomando café. Não hesitei e logo me apresentei a ela. Confessei que havia presenciado sua angústia da noite passada. Foi nesse momento que ela me convidou a sentar e me contou o acontecido.

- Ele parecia estar realmente com muita pressa, ela me disse.

- Apesar disso, consegui anotar o seu endereço e vou agradecê-lo depois.

- Vou mandar-lhe uma surpresa, me confidenciou.

- Um livro que fala sobre anjos, ele foi meu anjo da guarda na noite de ontem.

- E uma cesta de flores brancas com um bilhete dizendo:

“Obrigada por me ajudar na estrada naquela noite. A chuva não só tinha molhado minhas roupas, como também meu espírito. Aí, você apareceu. Por sua causa, eu consegui saber notícias dos meus três filhos que estavam no leito de morte. Meus sinceros agradecimentos, Maria Tomé”.

Eu aprendi como pequenos gestos podem ser a diferença que falta para termos um mundo melhor. Um mundo mais colorido e harmônico. Podemos ser esta diferença. Sentir em nossas veias não só o sangue que nos alimenta, mas também sentir o amor ao próximo. Tomei meu café com ela, pedi licença e voltei para a estrada rumo a capital. Depois de uns dez minutos parou um opala prata e o motorista me disse com uma voz agradável:

- Garoto tá indo pra Brasília?

- Estou sim.

- Desculpe-me senhor, como sabe?

- A senhora lá na lanchonete me disse.

- Entra logo.

Quando olhei para trás, vi aquela senhora negra acenando da porta do bar do posto. Com um gesto ,agradeci a ela e entrei no carro. Segui minha viagem e com meu destino cada vez mais perto. Meu anfitrião era o pastor Gílson Alves e estava indo sem escalas pra Brasília.

Parte IV – Compreensão

- Vai fazer o que em Brasília? Perguntou Gilson.

- Tô indo fazer minha residência.

- Vai ser médico, parabéns! Obrigado. Eu já fui médico no exército, mas hoje sou pastor.

- Um emissário da palavra do nosso Senhor.

- Qual sua religião filho?

Não me sinto à vontade em falar sobre religião, acho que é uma coisa pessoal. É um sentido que damos pra nossa vida, assim como todos os acontecimentos dela. Há uma busca pela diferença entre os seres humanos. E onde está essa diferença? Onde devemos buscar esse diferencial? Será que vamos encontrar respostas pra tudo? Eu vivenciei tantas coisas em dois dias de viagem, fiz amigos, aprendi tantas coisas e agora estava do lado de um pastor evangélico da igreja de DEUS. Enquanto viajava na companhia de Gilson, ele me mostrava através de palavras como encontrou a sua diferença. Uma paz muito grande como ele dizia. Sua vida esvaziava com a busca pela felicidade de fetiche. Dizia sempre:

- “Tenho amor, dinheiro e faço o que eu quero, nada me falta”.

- Aí é o engano de tudo, não temos nada, completou ele.

Quando achamos que nos satisfazemos com tudo, vemos mais e mais o vazio que nos apresenta. Eu tinha muito dinheiro, uma linda esposa e três filhos que eram a maior razão da minha felicidade. Um belo dia de domingo eu estava de folga no exército e resolvemos passear de carro. Paramos à beira da estrada para tomar água de côco numa barraca perto de Cabo Frio, estado do Rio de Janeiro. Estávamos bem à vontade e todos felizes. Numa fração de segundos um carro desgovernado matou toda minha família e eu escapei por estar no banheiro. Talvez fosse meu maior castigo. Ao escutar aquele barulho saí do banheiro e vi os corpos da minha família jogados pelo chão. Berrei e chorei desesperado ao ver tudo destruído numa fração de segundo. Entrei em depressão, fui alcoólatra, me droguei e vivia como mendigo na rua. Carregava a culpa de ter dinheiro, ser poderoso e ao mesmo tempo não ser nada. Andando pela rua como andarilho, entrei numa igreja evangélica e nunca mais saí. Se hoje eu me ergui como pessoa, eu devo ao amor que DEUS depositou em mim. Garoto sua felicidade real está nos simples atos da vida. No amor ao próximo, na significância das pequenas coisas, na amizade verdadeira e em ser fiel a si mesmo.

Palavras de alguém que passou por tormentos e teve força para buscar a diferença entre a mágoa e a felicidade. Olhava para aquele homem de terno preto, cabelo bem penteado partido de lado. Usava óculos redondo que combinava com o formato de seu rosto. Sua barba estava bem feita, o que delatava seu cuidado com o visual. Seu opala ano 79, ao contrário das outras caronas, não haviam imagens ou objetos que fizessem lembrar de santos. Havia uma frase no painel que dizia: “DEUS É FIEL” e ao alcance de sua mão uma bíblia. A simplicidade se mostrava a todo o momento pra mim, nem precisava arregalar os olhos. Depois de escutar o pastor falando sobre sua vida, voltei meu olhar para a estrada com retas compridas, que parecia uma grande miragem. Fiquei por um instante parado no tempo e quando dei por mim, vi um monte de casas e alguns edifícios que circundavam a estrada. Eram quatro pistas, duas que iam e duas que vinham, divididas por um canteiro central. Uma grande placa da rodovia dizia:

“Bem vindo a Valparaíso”

- Valparaíso? Perguntei.

- É uma cidade que fica antes de Brasília.

- Então estamos chegando?

- Sim.

Valparaíso é uma cidade à beira da Br 040 e que fica bem perto da capital do país, mas pertencia ao estado de Goiás. Logo entramos no Distrito Federal e mais um pouco pude ver a beleza e grandeza de Brasília. No céu azul, vi um avião fazendo rasante para pousar e lembrei que Brasília foi construída em forma de um avião. Gilson me deixou em um ponto de ônibus, pois teria que ir à cidade satélite de Taguatinga. Deu-me seu cartão com o seu telefone e ainda me disse:

- Lembre-se de tudo que te falei.

- Confia em DEUS.

- Obrigado pela a carona.

- Quando quiser falar comigo é só ligar.

- Pode deixar.

- Adeus garoto.

- Adeus

Peguei um coletivo até o centro, bem pertinho da Explanada dos Ministérios. Andei um pouco e encontrei um hotel para tomar banho, fazer a barba e descansar. Estava anoitecendo quando fui para a janela e fiquei apreciando a cena ofuscante da iluminação noturna, refletores e faróis dos carros iluminavam a noite no serrado. O som das buzinas se misturava ao som de alarmes e apitos dos guardas de trânsito. Fui dormir em seguida, estava cansado. Logo pela manhã bem cedo, pus minha melhor roupa, calça jeans e camiseta... nem quis tomar café de tanta ansiedade. Queria chegar logo ao hospital Sarah Kubitschek, onde faria minha residência em pediatria. Fui muito bem recebido e as instalações eram o que eu imaginava.

Passados alguns meses, eu comecei a trabalhar como voluntário na enfermaria do hospital, e conheci uma menininha chamada Maria, que sofria de uma terrível e rara doença. A única chance de recuperação para ela parecia ser através de uma transfusão de sangue do irmão mais velho, Francisco, de apenas cinco anos. Ele havia sobrevivido milagrosamente à mesma doença. Seu organismo desenvolveu anticorpos necessários para combatê-la. O médico explicou toda a situação para o menino e em seguida perguntou:

- Francisco você aceita dar seu sangue para sua irmã?

Eu vi ele hesitar um pouco, mas depois de uma profunda respiração ele disse:

- Tá certo, eu topo.

- Já que é para salvá-la.

À medida que a transfusão foi progredindo, ele ficou tenso deitado na cama ,ao lado da cama da irmã. Depois sorria, assim como nós também, ao ver as bochechas da irmã voltando a ter cor. De repente , o sorriso dele desapareceu e ele empalideceu. Ele olhou para o médico que estava ao seu lado e então perguntou com a voz trêmula:

- Eu vou morrer logo, logo?

Por ser tão pequeno e novo, o menino tinha interpretado mal as palavras do médico, pois ele pensou que teria que dar todo o seu sangue para salvar a irmã! Na infância, somos capazes de grandes gestos e com o passar da idade, passamos a ser cada vez mais mesquinhos e arrumamos desculpas para tentar justificar os nossos atos e omissões. Falta em nós, ter alguma compreensão, atitude e respeito. Você saberia me dizer:

- Onde esta a sua diferença?

Parte V – Conseqüências

Na minha vida, esses fatos marcaram. Talvez seja pela profundidade emocional deles ou pela insignificância de nossos atos mesquinhos, arrogantes e pretensiosos. Achamos que quando praticamos uma ou duas boas ações, podemos fugir de nós mesmos. Na faculdade o professor Adamastor me disse também:

- Olhe para os lados não só quando for atravessar a rua.

Depois disso tudo, pensei na verdadeira essência daquela aula de anatomia. Marcus o camioneiro que parecia com o asterix também me disse coisas importantes antes de ir embora:

- Guri, nunca se esqueça daquilo que você viu na vida.

- Pois é lá que existe DEUS.

Realmente meu amigo camioneiro é estava certo e aprendi a não me esquecer. Aquela senhora, Maria Tomé, também me disse:

- Coisas assim é que fazem a vida valer a pena.

- Sermos anjos de quem necessita.

As conseqüências de nossos atos vão fazer a diferença em doar e receber a vida. Agora tenho quarenta e três anos e estou bem diferente de quando aconteceram esses fatos marcantes. Hoje sou casado, com uma mulher maravilhosa, tenho três filhos, o mais velho já é adolescente, e o meu trabalho é o melhor, porque faço o que gosto. Vivo em contato com crianças, jovens, adultos e idosos de todas as raças e classes sociais. Eu sempre cultivei o respeito, o carinho e a humildade. Aprendi com esses simples atos a viver mais intensamente e sempre ver o lado bom das coisas. Quando Gilson me deixou naquele ponto de ônibus, ele me disse também uma coisa que jamais contei a ninguém. No dia não vi sentido, mas agora sei o que ele quis dizer. Ele me disse assim:

- Viver é uma dádiva de DEUS.

- Agradeça por sua vida todos os dias . E ame tua mulher e os três filhos...

Saber sem nenhuma pretensão o nome daquele ou daquela pessoa que vem até você para pedir, agradecer e até mesmo para dar apenas um oi. Deixar uma pequena gorjeta a cada alimentação ou drink num bar, mas não com a intenção de apenas deixar por deixar e sim na certeza de que você lembrou de alguém. Ajudar as pessoas sem pedir nada em troca, não interessando se é criança, jovem ou idosa e nunca discriminar uma pessoa pela cor, religião e preferência sexual. Pelos caminhos da vida, quem pode estar na beira da estrada pedindo ajuda pode ser eu ou você. Quem vai saber? Salvar a vida de alguém, não é necessariamente dar a sua em troca. Dar valor à vida de um irmão, esse mesmo que você nem conhece, é o bastante para continuarmos a fazer grandes gestos e nunca nos preocuparmos se somos omissos. Somos felizes, quando alguém está feliz. Temos a certeza do amor se alguém nos abraça e sorri. Pequenas ou grandes coisas, isso não importa, mas sim a realização de cada uma delas.

- Vem amor.

- Já vou querida.

Bom, agora tenho que ir. Fizeram um churrasco, para comemorar meu aniversário e eu não posso faltar. Até mais...

Mick Knoxx
Enviado por Mick Knoxx em 25/01/2006
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