Convite

CONVITE

Ficaria trancado no quarto pelo tempo que fosse necessário para que sua raiva passasse ou, pelo menos, ficasse menor. Dessa vez não havia chorado, apenas enfiou-se entre o travesseiro e os dois leões de pelúcia e abraçou as próprias pernas. Sempre que brigava com os pais esse estranho efeito colateral lhe acometia, uma estranha sensação de debilidade e burrice, uma espécie de tumor que lhe roubava qualquer ânimo que pudesse mantê-lo do lado de fora do quarto, no mundo de verdade. Por isso, como que para alimentar ou para se livrar do recém concebido e já maligno tumor, batia a porta e trancava-se no quarto, talvez, também fizesse isso para atribuir certo ar de dramaticidade ao desentendimento com os pais, afinal, se não é possível ser o assassino, que se torne a vítima de uma vez por todas!

Então, para impedir que ele ficasse internado pelo resto da vida naquele quarto, duas batidas na porta vieram trazê-lo de volta para o mundo de verdade. ”Finalmente”, ele pensou, não agüentava mais ficar enfurnado ali, naquela mentira. Levantou-se e esticou-se até a porta, abriu-a e, para seu espanto, não havia ninguém lá. Esperava encontrar sua mãe com sua típica cara de arrependida ou, quem sabe, com probabilidade um pouco menor, o pai, com um sorriso desconcertado e um tímido aperto de mão. No entanto, não havia ninguém, apesar de não haver uma só alma, aliás, tudo estava tão quieto que parecia não ter alguém em toda a casa, havia algo, um pequeno envelope preto sobre o tapete. Ele pegou-o desconfiadamente, trancou a porta e meteu-se dentro do quarto outra vez. “Quem diabos bateu na porta?” Ponderou por alguns instantes quais eram as possíveis respostas para essa pergunta, então, depois de julgar impossível encontrar alguma que lhe parecesse satisfatória, voltou-se para o envelope. Nele, havia o nome do garoto, “Higo”, escrito com letras grandes e trabalhadas e um lacre de cera vermelha em forma de borboleta, parecia coisa daqueles filmes antigos de reis e rainhas. Sem hesitar, abriu logo o envelope. Encontrou um pequeno papel retangular que, a primeira vista, pareceu-lhe um convite. E realmente o era.

“O senhor é nosso convidado para assistir a uma Dança de Noite, no Castelo do Rio, ainda hoje no topo da noite. A apresentação deste e o uso de uma gravata de qualquer tipo são indispensáveis.”

Que maldição era aquela! Que maldito convite era aquele? De onde viera aquilo? Perguntou-se, mas, na verdade, nenhuma daquelas perguntas importava. Costumam procurar explicações demais! Preferem explicar e entender, a viver. Um erro, um grande erro, talvez, o maior engano de todos. Não é preciso conhecer tudo, compreender tudo, pelo contrário, o mais delicioso é andar sobre o desconhecido, além disso, o mais saboroso e vivo seria caminhar descalço sobre o desconhecido. Apenas caminhar? Já seria um impressionante começo, mesmo que seja um caminhar sem destino, quem sabe, durante o caminho, encontrem um destino perdido no desconhecido, no não explicado e pouco compreendido. Talvez, já haja um destino escondido e até chegarem a ele nunca serão capazes de percebê-lo, afinal, destinos não devem e nem podem ser explicados, foram feitos apenas para serem alcançados, tocados pelos pés descalços e vislumbrados pelos olhos fechados desde o primeiro passo. Higo não fez mais nenhuma pergunta, concentrou-se em imaginar e esperar, não há nada melhor do que isso e era o que ele fazia de melhor. Deixou-se afundar, como se tivesse saltado de um trampolim nas nuvens. Os pensamentos começaram a deslizar pelo seu corpo, feito vento de algodão, não pensamentos analíticos e compulsivos, esses são pesados, de chumbo e pedra, mas alguns daqueles desinteressados e loucos, dos que brincam de faz de conta e alimentam as intermináveis e flutuantes brincadeiras das crianças e que magicamente transformam um imaginar em um salto das nuvens, em um vôo sem asa e sem pára-quedas, mas também sem medo, sem medo algum.

Levantou-se de súbito e procurou por uma gravata no guarda-roupa, sabia que havia uma em algum lugar. Passou toda a tarde preparando os trajes que usaria e brincando de adivinhar o que ou quem encontraria no Castelo do Rio. Lembrava-se muito bem daquele castelo, do cheiro de água perfumada, dos peixes flutuantes e das nuvens cor de rosa que mergulhavam do céu até tocarem a superfície do rio. Fazia muito tempo que não ia até lá, mas, se fechasse os olhos, podia vê-lo como se tivesse visto-o em todos os dias de sua vida. As coisas mágicas são assim, tão especiais que perfuram a nossa memória e habitam em algum lugar além das nossas lembranças, um lugar que é impossível tocar sem magia. O castelo ficava lá, no grande gramado na curva do rio, perto de uma gigantesca árvore sem folhas, mas de infinitas e minúsculas florzinhas brancas. Ele nunca saiu dali, suas raízes prendiam-se no centro do mundo e mantinham sua esguia torre em pé, firme, soprando nuvens róseas para o céu.

Ficou perdido naquelas imagens distantes, em sua imaginação pulsante que já tomara para si todo o mistério daquele convite. Ela mesma não sabia mais o que havia vindo do mundo e o que havia nascido dela, na cabeça do pequeno Higo tudo parecia ser feito da mesma matéria, como se tudo tivesse deixado de ser real e mais nada fosse imaginário, havia outro tipo de coisas, sem realidade ou imaginação. O que eram então? Ele não sabia e essa era a melhor parte. Não sabia e não se preocupava, nem precisa preocupar-se. Do que é feito o escuro dos olhos fechados? Era disso que eram feitas as formas do mundo de mentira, do mundo atrás da porta fechada, aliás, do mundo dentro dela, do lado de dentro, no interior de tudo, de cada um, de cada quarto com a porta fechada.

Em meio a tantos pensamentos e depois de muito procurar, encontrou uma gravata de bolinhas e um paletó de zebra que lhe pareceram bons, eles serviriam. Já havia escurecido há algum tempo e não poderia perder mais tempo, aquilo teria que servir de qualquer jeito. Vestiu a roupa, pôs-se diante do espelho e colocou a gravata ao redor do pescoço e improvisou um nó, havia visto um apenas uma vez, quando seu pai foi ao casamento de um amigo e, naquela oportunidade, aquilo lhe pareceu complicado demais, por isso, já esperava que suas tentativas de fazer um nó bem feito não fossem bem sucedidas.

Então, quando já estava tudo pronto, foi até sua caixinha verde que ficava no cantinho, embaixo de sua cama e de dentro dela tirou uma chave prateada com uma fita lilás amarrada. Higo olhou bem para ela e abriu um sorriso, correu até a porta do quarto, pegou o convite que estava sobre a escrivaninha e enfiou a chave cuidadosamente na fechadura.

Naquele exato momento o tempo interrompeu-se e continuaria assim até quando Higo terminasse de girar a chave, era sempre assim. Depois do último estalo da fechadura, o mundo de dentro desprendeu-se do de fora e mais uma vez boiou até o magnífico país além daqui, mais exatamente, para o porto de chegada, ainda na superfície, mas conectado a qualquer lugar nenhum que alguém pudesse desejar ir. Quando abriu a porta, Higo estava diante de um longo corredor azul e com um sem-número de portas de um lado e do outro. A luz fraca e responsável pela aparência azulada do corredor, vinha de pequenas bolotas de luz que se moviam vagarosamente pelo teto, com suas pernas compridas de aranha, pareciam, ao serem olhados de baixo, ou seja, por qualquer um que estive passando pelo corredor, com cogumelos gordos, brilhantes e ambulantes. Antes de seguir, Higo deu uma ajeitada no paletó e no nó da gravata e fechou a porta atrás de si, trancando-a com a chave prateada. Começou a percorrer o corredor e logo algumas pessoas e alguns seres começaram a sair das portas e juntaram-se a ele, rumo ao outro lado ou a alguma outra porta, o que era mais provável. A maioria das pessoas estava vestida pomposamente: cartolas, casacos, cachecóis, bengalas, laços, veludos, jóias, estolas, gargantilhas, chapéus, coroas, cartolas e fitas. E a grande parte dos outros seres também seguia os mesmos padrões, mas de uma forma que poderia ser definida como um misto de extravagância e imaginação. Higo já estava acostumado com esses exageros e até se divertia com alguns, além disso, até havia aprendido a exagerar um pouco. Onde mais ele usaria um paletó de zebra? Gostava daquele sentimento de liberdade, que dava força a qualquer coisa que pudesse surgir de dentro de alguém, qualquer coisa, bastava que ela viesse do fundo. E o lado de dentro das pessoas, o que está no fundo, é assim, colorido e alegre, despreocupado e próprio, só delas.

Higo atravessou quase todo o corredor e quando chegou à Porta do Rio, havia uma multidão, falante atrás dele, todos conversavam acaloradamente. Ele destrancou a porta com a chave de prata e abriu-a. Ela dava para uma sala minúscula, mas de teto muito alto, talvez, fosse o interior de uma torre bastante comprida ou de uma chaminé quadrada. Diante da porta, havia uma escada de madeira bastante velha e gasta que levava até um pequeno alçapão, sem mais demora, ele começou a subir e quando menos esperava, já estava no meio da grama verde, nas margens do Rio. Ao colocar os olhos no Castelo, sua surpresa não poderia ter sido maior. Ele continuava maravilhoso, como se fosse feito de tijolos de luz, a torre magrela, parecia uma agulha extremamente afiada que teimava em alinhavar o céu e, previsivelmente, havia uma fila tortuosa e volumosa, que ocupava toda a escada de mais de mil degraus e até parte do gramado. Higo estufou o peito e foi para o final da fila. Uma borboletinha de asas violentas voava calmamente recolhendo os convites e recomendando que todos visitassem, para fazerem uma aula experimental ou simplesmente para conhecer, a Casa de Ensaios do Senhor Menizu, mestre do grupo que se apresentaria naquele topo de Noite. A fila não demorou a ser engolida pelas portas do Castelo e o espetáculo também não demorou a começar e demorou muito menos para ele terminar. Ele de forma alguma fora curto, mas é impressionante o quanto as coisas belas e divertidas passam rápido, talvez seja por isso é que são tão felizes e sempre queremos mais e mais.

Houve apresentações indescritíveis que não podiam ser vistas em nenhum outro Castelo. Primeiro uma mulher com asas, outra com cabelos de fogo e uma espadachim. Depois dançaram alguns homens de bengala, que não precisavam dela, e que usavam chapéus, saias e nervosos, batiam suas bengalas. Em algum momento, apareceram algumas dançarinas com vestidos de pavão, que dançavam com o nariz em pé e elegantemente. Havia também uma mulher amarela que parecia não ser bailarina, mas que fingia dançar e era muito engraçada, devia ser filha ou namorada de alguém importante, por isso é que ela estava lá. Enfim, houve danças, lindas danças e aplausos de pé e depois deles? Não há mais nada, mais nada no Castelo, é claro, porque aquilo tudo continua a desdobrar-se dentro de cada um dos convidados, como se, agora, eles também pudessem dançar.

Higo satisfeito e com um incontrolável sorriso, voltou pelo corredor, destrancou a porta do seu quarto e enfiou-se embaixo de seu cobertor, ainda com a chave prateada nas mãos.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 12/07/2008
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