Trevo

Ela passava o dia deitada de costas no trevo de entrada da cidade, com a cabeça no vão entre o acostamento e o meio-fio.

Os olhos, ao invés de perseguirem cada veículo que cruzava em direções opostas apenas lhe davam a impressão de estar sempre distante...

Motivos. Talvez. Não fazia a menor questão de comentar com alguém qualquer coisa que passasse diante de si. Apenas contemplava, meio que fora de foco, a sensação transcendental proporcionada pelo constante movimento contrastado com sua quietude.

Apesar de pouco ligar para as vidas alheias de quem quer que fosse, ela imaginava-se dentro da vida de cada ser que pusesse seus olhos por alguns segundos em sua direção. Amava-os, odiava-os; podia sentir o que bem entendesse. Porém, quando chegava a noite, ela tinha que voltar para casa e velar o sono das pessoas que sempre amou, pois isso era a única coisa que ainda a mantinha nessa rotina.

Era estranho ver as pessoas dos carros que passavam. Algumas tinham suas mentes muito distantes, já outras, pareciam perceber as coisas simples e belas que sempre a rodearam e era como se as mesmas precisassem falar algo para ela. Mas ninguém parava, ninguém dizia nada, ninguém lhe dava um adeus!

Ninguém sabia o quanto essas coisas valiam. Mesmo que essas pessoas tivessem vontade de o fazer elas não tinham confiança em si mesmas para encarar algo tão comum e não menos importante como tal.

Até agora ela nunca havia ido ao trevo à noite, pois não aceitava a idéia de viver um pouco mais para si mesma sem deixar de se preocupar a toda hora com quem ela amava. Afinal, as pessoas de quem ela gostava ainda estavam presas dentro de idéias formadas, problemas, críticas, caos...imagine se ela não estivesse por perto?!

Num desses dias em que ela ficava deitada no trevo, percebeu que alguém se aproximara do meio-fio e sentara-se ao seu lado. Ela levantou-se assustada, mas logo voltou a se sentar.

Viu que era um rapaz. Ele estava chorando. Observou então que ele carregava um livro em suas mãos “O Mundo de Sofia”. Ela lembrou-se que, certa vez, havia lido a mesma obra, mas como não encontrou alguém que quisesse, do mesmo modo que ela, mergulhar nas profundezas do oceano literário, acabou guardando para si tudo o que aprendera nos momentos em que se dedicou a “devorar palavras”!

Ela sentiu uma certa melancolia e resolveu ficar na sua, pois não era agora que, finalmente, poderia entregar-se a alguém a qual mal conhecia e que, à primeira vista, despertava a flor de seu íntimo. Fica no ar a seguinte pergunta: Por que não?!

As coisas se tornam difíceis, complicadas quando a gente carrega consigo todo um método de viver que não deveria pertencer ao nosso tempo.

Ela era jovem, ele também; mas por muito tempo ela parecia ser sempre a mesma, como se tivesse se desprendido de qualquer expressão que não fosse a do primeiro dia em que se deitou na beira do trevo.

Bom. Não se sabe porque ele havia sentado ao seu lado. A única evidência de suas lágrimas era uma fotografia de uma garota marcando as páginas já lidas antes. Será?!

Mais um ser sofrendo por amor!!

Ah! Quando não havia movimento na estrada, ela costumava sentar-se em meio às flores do canteiro e sussurrar trechos de uma canção que ouvira um pássaro cantar algum dia. Era algo parecido com “estrada do sol” de um tal de Jobim...

Por incrível que pareça, no dia seguinte, ao voltar para o trevo, encontrou o rapaz dormindo junto às flores. Ele não tinha partido como ela pensara.

Todas as pessoas a quem se apegava partiam quando ela menos esperava.

Sentindo-se mais próxima, resolveu deitar-se ao lado dele no canteiro. De repente, pára um ônibus, de onde descem várias pessoas.

Ele acorda, e no meio da confusão de passageiros entrando e saindo se dispersa.

Ela também se levanta, mas já não o vê mais ali. Põe-se a chorar! Será que havia perdido mais um amor? Mas que amor é esse que não tinha até agora trocado nenhuma palavra, nenhum gesto direto? – Era um amor que só pode ser sentido, na qual um coração basta para amar por duas almas!

Enfim, não se pode chorar por muito tempo, assim pensava. Analisando a fatídica vida que tivera começou a rir e ironizar seu próprio sofrimento para espantar o vazio. É estranho “espantar um vazio”, mas é compreensível para sua situação.

Isso a deixou bem mais leve. Se bem que ela se sentia leve há um tempo, mas não levara isso em conta.

Então ele não teria passado a noite no trevo por sua causa. Não, não, não; ela preferia acreditar na fantasia que criara quando o conheceu, pois lhe fazia mais feliz!

E assim passam-se alguns meses... ela faz seu percurso de casa até o trevo pela manhã e deita-se no meio-fio, nada mudou. – Ei! Espere! Esse não é o ônibus que o levou de mim aquele dia? (percepção)!

O veículo retornara, e para sua alegria ele desceu com um modesto sorriso esboçado em sua face.

Ela levantou-se. Ele parecia olhar fixamente para as flores que estavam aos pés dela, e assim, pôs-se a atravessar a auto-estrada sem sequer tomar o cuidado de olhar para ver se não vinham outros carros.

Nisso, um caminhão de combustível vinha em sua direção.

Ela, desesperadamente, correu até o rapaz, e, como um sopro sobre seu corpo, o empurrou de volta ao acostamento.

Ele se salvou, mas ela ficou imóvel e sentiu o caminhão passando entre seu corpo; pôde ver o líquido de sua carga atravessando seus olhos como se ela não existisse. Teve uma pequena vertigem.

Depois disso, confusa; ela caminhou até as flores e tentou arrancá-las, não se sabe qual era sua intenção, mas não conseguiu. Ela não era mais humana faz um tempo, e ainda não sabia.

Ao ter salvo a vida de quem ela tentava aprender a amar do seu jeito descobrira que já havia partido do mundo dos vivos há vinte anos, e, que por esse tempo todo mantinha a rotina de ir todos os dias ao trevo onde sofrera um acidente fatal. Agora ela havia se iluminado!

Não foi difícil entender o porquê das pessoas não ligarem a mínima para ela, pois ninguém a enxergava. Todos olhavam apenas com os olhos. Ela precisava ser vista com o coração!

O rapaz vivera por mais oito anos, tivera outros amores; mas, cansado de não achar respostas, e sem entender o que o salvara do acidente voltou até o trevo.

Ao descer do ônibus tirou de dentro do seu casaco a foto e um pequeno livro de poesias. Recitou uma pequena frase que dizia:

- “A felicidade está em cada momento em que a gente se descobre desapercebido de quaisquer atos que não provenham de uma beleza simples e comum”!

Rasgou a fotografia. Tirou do bolso inúmeras cápsulas de tranqüilizantes e, deitando-se em meio as flores tomou-as uma por uma até desfalecer completamente.

De repente, vira-se de pé; era uma sensação estranha, mas sentia-se mais leve. Observou que havia uma garota triste deitada sobre o meio-fio. Sua melancolia a fazia mais bela!

Ela o olhou com um sorriso e não podia acreditar que ele a percebera enfim.

Os dois agora estavam juntos ali e apenas ele não sabia ainda de sua condição de morto. Mesmo assim trocaram gestos de carinho. Sabiam que, no fundo, já se conheciam. Era uma sensação única e agora eterna!

Por fim, como em qualquer raro romance ele abaixou-se para apanhar flores à sua nova amada, porém suas mãos atravessaram as pétalas. Sua iluminação veio mais cedo. Ele estava a amando, só isso!

Com a tentativa de colher as flores descobrira que não fazia mais parte do mundo material, pôs-se a chorar sem saber o que sentir.

A noite já estava chegando, e ela nunca havia passado uma noite fora de casa, mas isso não lhe atormentava mais. Todos estariam seguros consigo mesmo.

Ela, na condição de alma como ele o abraçou. Os dois deitaram-se no chão e tornaram-se uma única luz que esvaiu em meio a escuridão do trevo.

Dizem que até hoje há uma estrela que pode ser vista continuamente de dia e de noite quando se está sozinho esperando o ônibus num trevo ou pensando em alguém que se quer muito bem...

Marco Túlio Schmitt Coutinho
Enviado por Marco Túlio Schmitt Coutinho em 16/04/2006
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