Sangue e Neve

Nota: Este conto não é totalmente fiel à História. O autor permitiu-se modificar alguns fatos, principalmente no que diz respeito às datas, ao avanço alemão, ao comando russo e ao soldado Vassili.

Rússia ocidental, 1942 – cidade de Stalingrado

– Este frio ainda vai matar a todos nós! – disse Corvonov, ao mesmo tempo em que esfregava as mãos enluvadas, o ar saindo-lhe condensado da boca seca.

– Isso se os malditos fascistas não o fizerem primeiro. – completou Sergoff, soturno. Suas palavras soaram abafadas por conta do pano que mantinha cobrindo-lhe toda a cabeça, com exceção dos olhos e parte do nariz, a fim de conservar calor.

Ambos se encolhiam tremendo, um de costas para o outro, dentro de uma sala sem iluminação e semi-destruída, cheia de escombros, mas, felizmente, ainda com cobertura.

No entanto, flocos de neve dançavam pelas aberturas nas paredes feitas por cartuchos de ambos os lados beligerantes e pela janela aberta (não havia mais vidro). Ventava cruelmente lá fora naquele começo de tarde.

Eles eram soldados do Exército Vermelho, membros da 13ª Divisão de Rifle de Guarda do 62º Exército, baseados em Stalingrado, uma cidade no sudeste da U.R.S.S. às margens do rio Volga e alvo do 6º Exército alemão, cabendo aos soviéticos a defesa desesperada das ruínas onde até mesmo os cães evitavam.

Corvonov ajeitou o gorro sobre a cabeça, aproximou-lhe o rifle com luneta e enfiou as mãos nos bolsos do capote enquanto Sergoff apoiava-se em sua submetralhadora, com o capacete descansando-lhe do lado (ele realmente odiava utilizá-lo por muito tempo, sempre reclamando que sua cabeça ia explodir de dentro pra fora, muito embora aquele pedaço de aço já o tivesse salvado algumas vezes).

– Camaradas!

Como que despertados pela voz e quase instintivamente, os dois apontaram suas armas na direção da entrada. Tiros e explosões eram ouvidos ao longe, num concerto de morte comum na cidade. O som da guerra não cessava nunca.

– Pelo amor de Deus! Camaradas! – e a figura desesperada surgiu na porta, tropeçando em um dos pedaços de concreto. Ela caiu desgraçadamente, sua arma escapando-lhe da mão. Estava todo coberto de neve e sujo de sangue, fedendo como um mendigo. Todos eles fediam.

– Céus! Krushnnien! – espantou-se Sergoff, levantando-se com certa dificuldade para ajudá-lo.

O soldado juntou forças para falar, entre pesadas respirações, enquanto Corvonov olhava-o apreensivo, sabendo que aqueles eram os momentos finais dele, e correu em direção à parede da entrada, deitando-se a fim de observar o exterior por um buraco.

–... Os alemães estão retomando este setor, casa por casa!

– Mas nós temos quase uma companhia inteira espalhada por esta região! – surpreendeu-se Sergoff. – O que aconteceu com nossos homens? E os malditos chucrutes, não estão tão famintos quanto nós?

– A Luftwaffe deu sorte e conseguiu enviá-los alguns suprimentos. Agora eles vêm pra cá! Temos que fugir! Os fascistas estão sedentos por vingança!

– Não, “nenhum passo pra trás”. – repetiu consigo friamente Corvonov, enquanto preparava seu rifle.

– Stalin não está aqui, camarada. Vamos pelo menos reagrupar com o resto da tropa para deliberamos a próxima operação. – respondeu Sergoff, largando cuidadosamente o corpo de Krushnnien, já morto.

Corvonov apenas lançou-lhe um olhar de soslaio. Se não bastasse o frio e a fome, estava com raiva pelo fato do companheiro falar em comida que não tinham, além de estranhar o fato de sua Divisão ter deixado passar despercebidos os suprimentos inimigos.

– Pegue-lhe as roupas – apontou para o cadáver – e vista-as, se estiver com muito frio. Não esqueça da munição. Apanhe suas coisas e me siga. Não há tempo para encontramos o pessoal. De resto, também temos alguns franco-atiradores lá fora. Vamos!

Sergoff balançou negativamente a cabeça, suspirando, e alcançou seu capacete, colocando-o com cuidado. Depois de pegar um cachecol extra e mais um colete, além de alguns carregadores para os bolsos vazios do cinto de couro gasto, tossiu e levantou-se para acompanhá-lo.

Sentia uma canseira que insistentemente se recusava a abandoná-lo e quase não se importava mais com as eternas dores de cabeça, de barriga e das pernas.

– Venha atrás de mim. – ordenou Corvonov, esgueirando-se na aresta da parede e perscrutando com atenção a rua.

O tempo castigava-o brutalmente; seu nariz quase não funcionava mais e os ferimentos mal curados de estilhaços de granada por vezes incomodavam-no. Mais de uma vez infeccionara-se por causa deles, mas seu maior medo era ter que amputar qualquer um de seus membros por gangrenarem de frio. Preferia morrer congelado a isso. Por conta disso, enraivecia-se por ter que deitar na neve.

Corvonov era apenas um fazendeiro ordeiro, humilde e inculto que nunca pegara numa arma, quando a guerra invadiu sua casa na forma de bombardeiros que lhe retiraram toda a família, o amor e os sonhos.

Uma lágrima furtiva escorreu-lhe pelo rosto sofrido. Uma mão pousou-lhe no ombro.

– Estou com você. Deixe-me assumir a frente. – sorriu o companheiro, um sorriso amarelo e torto incrustado num rosto envelhecido e escuro de suor e fumaça. – Não tenho os olhos tão treinados quanto você, mas posso dar conta do recado.

De fato, os olhos de Sergoff estavam acostumados a lerem livros e não avistarem inimigos. Ele era o orgulho da família, um desses raros seres que transcendiam o meio em que viviam. Siberiano de nascimento, filho de operários de minas, trabalhou muito e venceu preconceitos para entrar na Universidade de Moscou. Nutria a intenção de ser escritor.

No entanto, quando houve o chamado à guerra, não pôde escapar à convocação. Como conscrito, participou da defesa da cidade, sendo posteriormente enviado à Stalingrado. Foi lá que conheceu o amigo, coisa rara em tais tempos difíceis, ainda mais quando se podia perdê-los num piscar de olhos ou num movimento de gatilho.

Corvonov gesticulou para que assim se fizesse.

Ondas de fumaça subiam ao céu ameaçador, severo e cinzento cujas nuvens escondiam um Sol morto, quando Sergoff lançou-se, cauteloso, para fora e sua mente trabalhou rápido, de olhos entreabertos, para mapear um perímetro. Nem se dava conta de que fazia isso a todo momento.

– Algum fascista? – perguntou, desconfiado e apertando com certa ansiedade a coronha de sua arma.

– Não. – sussurrou. – Vamos.

– Espere. De onde Krushnnien veio?

– Não sei. O vento já fez a neve apagar suas pegadas.

– Maldição! Mais cedo do que eu esperava... – parou por um momento, pensativo. Retornou: – Alguma marca de sangue?

– Só pode estar brincando! Há sangue por toda parte!

Repentinamente, ouviu-se um assobio, seguido de uma forte explosão que pôs abaixo restos de construções algumas dezenas de metros deles, que também escutaram gritos, rapidamente silenciados.

Não havia tempo para mais conversa. Correram desajeitadamente, tão rápido quanto suas pernas fracas, o terreno irregular e o forte vento que agitava suas roupas permitiam, à medida que mais explosões se faziam ouvir, lançando longe pedras, metal e neve.

Conseguiram se abrigar toscamente atrás dos restos de um blindado inimigo.

– Morteiros! – gritou Corvonov, tentando ser ouvido pelo amigo.

– Veja, são os nossos homens! – cutucou, apontando para o lado oposto ao perigo. Ele contou quase 10, antes que estes também se protegessem como podiam.

Um deles veio ter com eles e Sergoff notou-lhe a insígnia de cabo na gola do casaco surrado. Ele tinha uma gaze amarelada e manchada de sangue em um dos olhos e o rosto maltratado de todo combatente, além de um casquete enterrado na cabeça e olhava freneticamente para os lados.

Encostado na viatura de combate e resmungando para si da temperatura do metal, Corvonov quase o deu por louco, mas preferiu guardar-lhe a opinião. No final das contas, todos eles eram insanos.

– Cabo Pyotr. – apresentou-se rapidamente e, sem esperar qualquer reposta, continuou: – Fomos vítimas de um ataque-surpresa de obuses! Tivemos muitas baixas e fomos forçados a ceder nossa posição.

– São morteiros, senhor! – explicou Corvonov. – Agiu mal em fugir, cabo! Não sabe as ordens de Stalin de que não devemos recuar? O senhor merecia um tiro!

– Cale a boca, soldado! Você não estava lá! – exasperou-se, apontando-lhe sua arma.

– Parem, camaradas! – interpôs-se Sergoff entre eles. – Pyotr, também somos alvos aqui, assim como você. Também caímos nessa armadilha!

– O quê? Há morteiros dos dois lados? – perguntou-se, um tanto quanto chocado, esquecendo-se de imediato da escaramuça com Corvonov, arrastando-se pelos restos do veículo para somente deparar-se com os estrondos destruidores na direção contrária de onde havia vindo. O barulho era ensurdecedor e deixava-o desnorteado.

Pyotr não podia se permitir divagar, embora soubesse que estavam isolados de qualquer ajuda nessa emboscada. Então veio a pergunta fatídica de um dos soldados:

– Que faremos, senhor?

Não hesitou em responder imediatamente:

– Vamos tomar-lhe as posições! Ao meu comando! Preparados? Carga! – e correu em direção de onde a dupla partiu, seguido pela tropa.

Sergoff e Corvonov se entreolharam, talvez para se despedirem um do outro, e os acompanharam em meio ao fogo e agonia de corações e almas congeladas.

A estratégia do cabo era simples: um ataque frontal aos autores dos disparos que, certamente, não estavam longe dali. Quanto a isso, utilizavam táticas básicas de avanço: lances curtos de buraco em buraco, de abrigo em abrigo, de ruína em ruína, sempre sob fogo inimigo.

À medida que avançavam perigosamente, mais soviéticos se juntavam a eles, surgidos das estruturas de metal retorcido e entulho.

Um soldado ao lado de Corvonov teve a cabeça explodida por um tiro de fuzil. Outro, o corpo estraçalhado por um projétil de morteiro. Os mais sortudos morriam sem perceber ou sentir tanta dor. Outros, nem tanto, como um combatente varado por um atirador de escol que lhe espalhou tripas sangrentas e ele morreu agonizando.

– Vamos congelar até a morte!

– Isto é um massacre!

– É suicídio!

Eram estas as frases que geralmente se ouvia dos soviéticos na ofensiva.

Ao cabo de alguns minutos, a luta pendia a favor dos germânicos. Os russos estavam ficando sem munição e com pesadas baixas causadas, em sua maioria, por metralhadoras pesadas cujos cartuchos estraçalhavam vários soldados quando os atingiam. Para os fascistas, não havia diferença.

Corvonov esfregou as mãos e pegou seu rifle pela bandoleira. Um tiro acertou-lhe bem perto e ele nem se preocupou em desviar-se. Quase não tinha mais forças para se mover mas, mesmo assim e com o som caótico da batalha, conseguiu precisar de onde havia vindo o disparo. Deixou-se escorregar pela neve, deitando-se e, maquinalmente, preparou sua arma. Com a frieza de um caçador, ajeitou com esmero o grau de aumento de sua luneta, mirou-o e apertou o gatilho. O atirador inimigo caiu da janela dos restos do prédio. Ele suspirou aliviado.

Sergoff sorriu-lhe um sorriso assassino.

– Vamos, camaradas! Avante! Estamos chegando perto! – gritou Pyotr. Levou a mão ao ouvido a fim de saber, através dos estrondos, a direção do inimigo. – É ali! – afirmou, apontando energicamente. Todos já esboçavam os primeiros sinais de progressão, quando Corvonov interrompeu-os:

– Esperem! Eu posso vê-los! Eu posso vê-los!

De fato, através da lente de sua arma, ele conseguiu distinguir, ao longe, um rastro de fumaça atrás do prédio onde havia atingido um inimigo há pouco, na direção diversa indicada por Pyotr.

– Avante, soldados! Pela União Soviética! Pela nossa terra!

– Sigam-no!

Eles não se davam conta, mas estavam na ponta de lança do ataque. No dia 11 de outubro de 1942, os alemães pressionavam pelo oeste e aquele combate era apenas um engodo no objetivo de atrair as tropas soviéticas a se exporem. Mesmo os nazistas artilheiros não sabiam que já estavam condenados.

Os russos alcançaram o prédio à frente dos morteiros. Teriam que tomá-lo.

Um soldado jogou uma granada de mão e esperou-a explodir antes de entrar descarregando uma rajada mesmo sem saber quem se encontrava lá dentro. Ele foi seguido por mais alguns e encontraram forte reação do inimigo, o qual fizera barricadas com mesas, restos de mobília e entulho, numa peleja brutal em que até mesmo pás eram usadas.

Quando Sergoff entrou de olhos arregalados de frenesi, deparou-se com cenas horríveis. Alguns combatentes dos dois lados ainda agonizavam no chão, uns tremendo de convulsão, outros gemendo dolorosamente. Franziu o sobrolho, na tentativa de manter o que lhe restava da sanidade e seguir em frente. Ainda havia outros andares e podia ouvir os gritos, o barulho dos tiros e do combate fechado.

Um disparo perdido acertou-o na coxa e ele caiu de joelhos, rosnando de dor. Não teve tempo de gritar: seu coração acelerou-se quando um soldado inimigo apontou-lhe uma submetralhadora, praguejando rudemente. Não havia como reagir.

Fechou os olhos.

Corvonov era um atirador de elite, mas de um tipo diferente. Ele não havia sido treinado por nenhum outro de seu exército e sim pegado sua arma de um cadáver, passando a utilizá-la com grande habilidade. Enquanto o Exército Vermelho geralmente utilizava equipes de dois atiradores, ele agia sozinho, movendo-se como uma sombra, um fantasma entre os escombros, e não recebia ordens do comando para agir em um local previamente determinado, camuflando-se à espera de alvos. Na verdade, este mesmo comando não tinha conhecimento de suas ações; caso contrário, sua polícia secreta pegar-lhe-ia para adicioná-lo a uma tropa especial desses homens.

Naquele momento, ele podia simplesmente ficar deitado e aguardar que alguma cabeça imprudente aparecesse em uma das janelas do prédio, mas preferiu levantar-se e se juntar à onda de choque.

Invadiu a entrada a tempo de se deparar com o amigo e o alemão apontando-lhe a arma, na iminência de tirar-lhe a vida. Num movimento decidido, varou a cabeça do nazista.

Sergoff suspirou aliviado, deixando-se cair no chão.

Mal conseguindo pronunciar palavra, sussurrou:

– Você salvou minha vida, camarada...

– Agradeça depois. – e andou até ele, erguendo-o.

– Espere, estou machucado.

Corvonov abaixou-o com cuidado e agachou-se para vê-lo o ferimento apontado com o olhar por ele. Sorriu.

– É um homem de sorte. O tiro pegou-o de raspão. É só esfregar um pouco de gelo que ficará tudo bem.

Sergoff apoiou-se nele para se levantar.

– Cuide-se: da próxima vez, posso não estar por aí para te salvar.

– Pode deixar. – e mancou, saindo do prédio para obedecer ao conselho do amigo, enquanto este já subia cautelosamente a escada.

Mais alguns minutos sangrentos se passaram antes que a construção fosse tomada e Corvonov gritou de satisfação quando avistou os morteiros por uma das aberturas. Abateu-os mesmo sem o auxílio da mira telescópica. O barulho terminou e os ânimos se amainaram.

– Bom trabalho, soldado. – disse Pyotr, tocando-lhe no ombro. Lançou um olhar curioso na paisagem desolada e suspirou. Ele estava exausto e começava novamente a tremer, uma vez que a adrenalina do combate fazia-o esquecer do tempo.

– Muito bem, pessoal! Quero um posto de socorro! Peguem as armas, assumam posições de defesa e montem turnos de guarda em cima daqueles morteiros, mas não fiquem próximos a eles e sim de tocaia. Não se esqueçam dos atiradores!

– E quanto aos morteiros do outro lado, senhor? – perguntou Corvonov. – Eles podem se deslocar até nos terem como alvos novamente.

– Negativo, soldado. Este prédio é valioso demais para que o destruam, mas, já que se ofereceu, comandará uma patrulha para eliminá-los.

Corvonov, Sergoff e mais três soldados não tiveram dificuldades em se esgueirarem entre ruas hostis até os morteiros, os quais tomaram-lhes com ligeira dificuldade e ao custo de duas baixas. Conseguiram retornar com as peças e uns poucos projéteis.

A noite caiu triste e a atmosfera era sempre pesada. Os soldados dormiam encolhidos onde podiam durante três, talvez quatro horas por noite. Há tempos não havia mais luz elétrica, somente iluminada por balas traçantes de ambos os lados.

Alguns soldados mataram parcialmente a fome com a ração dos alemães, bebendo água dos cantis deles e, em casos extremos, do próprio gelo derretido lentamente em fogueiras pequenas e escondidas para não atrair fogo inimigo.

Corvonov abriu os olhos enrugados e cansados e fitou os morteiros. Não via ninguém lá fora. Ele sabia que os camaradas responsáveis pela vigília das peças escondiam-se em porões, restos de paredes e casamatas, prontos a responder qualquer ataque (os alemães creditavam-nos a fama de invisíveis). E ele certamente viria.

O atirador também pensou na sorte que tiveram. Nem imaginava caso os alemães dirigissem aquelas armas para o prédio onde estavam.

“Somos tão poucos. Não sei se resistiremos a um ataque deles.”, ponderou consigo. “Talvez devêssemos destruí-las e avançar um pouco na terra-de-ninguém. Não, pare com isso. Vamos esperar um pouco os reforços. Já mandamos batedores atrás de nossas linhas e em breve retornarão com as boas novas, espero. Talvez tragam até mesmo um rádio.”

– Está tudo bem, camarada? – perguntou o cabo, rondando os homens para mantê-los alertas.

– Quase, senhor. – e confidenciou-lhe seus temores, ouvidos com atenção por ele. Ao final, perguntou:

– Que horas são?

O soldado limpou o visor de seu relógio, mas não conseguia vê-lo nas trevas.

– Acho que umas duas da madrugada.

– Duas horas... – repetiu soturnamente. – Os reforços não chegarão a tempo do ataque que, creio, será de manhã. O que você acha?

– Se a ofensiva será, de fato, com o romper da aurora, devemos nos manter preparados. De qualquer maneira, você já tem um plano?

– Sim. Se os alemães chegarem perto, destruiremos os morteiros e resistiremos como pudermos. Afinal, esta região está sendo coberta por divisões de infantaria deles. Os Panzers ficaram responsáveis pelas áreas norte e sul da cidade, então acho que a sorte pode virar a nosso favor.

– Pode ser. No que diz respeito aos snipers, eles geralmente agem com o raiar do dia, mas ultimamente o Sol quase nunca surge nos céus, sempre encoberto pelas malditas nuvens de morte. Pelo jeito, não teremos proble...

Antes que pudesse terminar a frase, gritos e disparos foram ouvidos lá fora, cortando o aparente silêncio e quietude noturnas.

– Droga, emboscada! Mais cedo que o planejado! – reclamou Pyotr. Respondeu aos disparos pela janela e gritou:

– Destruam os morteiros!

A guarnição inteira foi acordada repentina e forçadamente com o som do combate e mesmo os que tinham sono mais leve (porque nunca conseguiam descansar realmente) tomaram grande susto, alcançando atordoados suas armas.

Sergoff cochilava apoiado em uma metralhadora pesada sobre uma janela quando a luta começou. Instintivamente pôs-se a afundar o dedo no gatilho, movimentando-a selvagemente e abatendo tantos quantos se colocassem em seu campo de visão. O barulho da arma ensurdecia-o, enquanto os cartuchos voavam iluminando a escuridão.

Corvonov matava sem parar, mas os alemães não paravam de avançar.

– Eles são muitos!

Através de ondas de ataque, o inimigo buscava gradativamente desgastá-los e, por bem ou por mal, retirá-los de lá.

Foi com surpresa que o soldado russo conseguiu distinguir um nazista correndo até a construção com explosivos à mão. Matou-o sem misericórdia e o corpo dele misturou-se aos vários em meio à neve e lama, sobre uma poça de sangue frio.

Sua respiração tornava-se descompassada, além das batidas do coração. O medo começava a dominá-lo e sua mira por vezes ameaçava falhar-lhe. Virou-se brevemente para o lado e, de soslaio, viu Sergoff receber um disparo que lançou-lhe longe o capacete e ele caiu inconsciente. Por um segundo, seu coração parou de bater.

Sem se importar com o perigo à sua volta, levantou-se e correu em direção do amigo, entre disparos que atravessavam as paredes como se fosse papel.

Pensava no pior quando alcançou-o, encostando-o no colo. Hesitou por um instante antes de colocar sua mão na cabeça dele, para conferir a situação. Apalpando-a, sentiu a viscosidade do sangue, mas nada mais grave. Suspirou aliviado e sentiu-se mais leve. Graças ao capacete, o tiro desviara-se, acertando-o de raspão.

Realmente, era muita sorte.

Abraçou-o fortemente. No entanto, não havia muito tempo para afetividades. Balançou-o para que acordasse rapidamente e ele o fez, mas não sem antes passar as mãos freneticamente pela cabeça para conferir se ainda estava lá. Sem dizer palavra (porque Corvonov gesticulou para que não fizesse), alcançou uma submetralhadora MP 40 alemã próxima e, após conferir o carregador, auxiliado pelo camarada, levantou-se.

Esgueirou-se até uma abertura da parede, observando o combate. Àquela altura, os soviéticos dos níveis inferiores, mais especificamente os que protegiam as peças de artilharia destruídas, já haviam perecido e os fascistas fortificavam-se, ganhando terreno e avançando cada vez mais.

Consciente da situação, Sergoff gritou:

– Devemos recuar!

– Não! – retornou o cabo, mancando e com um braço ferido pendendo-lhe ao lado. Não tinha mais a gaze no olho cego e desfigurado e o outro brilhava de forma estranha. – NÃO os deixem passar!

Sergoff notou a determinação de Pyotr e acenou positivamente a cabeça doída e coberta de sangue.

– Panzers! Saiam das janelas! Saiam! – berrou desesperadamente um soldado.

Em momentos, houve uma forte explosão, derrubando, em uma reação em cadeia, todo o velho andar que se encontravam, levantando uma nuvem de poeira e caos.

– O maldito tanque realmente pôs tudo abaixo, não é mesmo? – gemeu Corvonov, entre os escombros e coberto de sangue e pó.

– A guerra ainda não acabou. – respondeu Sergoff, erguendo-se com dificuldade e auxiliando o amigo a fazê-lo.

Tropeçando nos pedaços de concreto, os dois recuaram até uma trincheira a algumas dezenas de metros longe do centro do combate, sendo recepcionados por atentos soldados que apenas esperavam uma ordem para agir enquanto respondiam a eventuais avanços inimigos.

– Fogo de cobertura! – ordenou um deles ao avistar Pyotr correndo na direção do buraco.

Armas de fogo diversas assomaram-se cuspindo balas e protegendo o graduado, que escorregou para dentro de onde estavam.

– Eles têm tanques, droga! – reclamou, e não pôde deixar de notar alguns soviéticos franzindo o cenho ou abaixando a cabeça, resignados. – Esta é nossa última linha de defesa, camaradas! Precisamos de cargas explosivas para dar um fim nesses blindados!

– Temos algumas aqui, senhor! – apontou um soldado de aspecto franzino, encolhido em si e tossindo fortemente.

– Ótimo! Agora preciso de voluntários para sair desta vala e me ajudar a exterminá-los!

– Você tem a mim, senhor. – ofereceu-se Corvonov, sorrindo-lhe. – De qualquer maneira, se ficarmos aqui, morreremos mesmo.

– Eu também estou com vocês. – disse Sergoff.

– Muito bem, vamos os três então. Quanto menos de nós melhor será, pois maiores serão nossas chances de sucesso.

Após pegarem os explosivos, enfiando-os nos sacos improvisados e bem presos ao corpo para que não caíssem e se municiarem levemente, pularam do buraco e correram desenfiadamente até uma ruína próxima, alcançando-a esbaforidos.

– Hora da caça. – afirmou Corvonov pigarreando e tentando fungar o nariz.

– Coloque-os nas rodas de apoio do carro de combate. – explicou Pyotr, apontando para as cargas explosivas.

– Pode deixar. – respondeu Sergoff, passando a língua sobre os lábios. – Vamos dar o inferno a eles!

Furtivamente, moveram-se com rapidez e cuidado para não tropeçar nos entulhos do caminho, cobrindo-se nos restos de um muro que ficava atrás do prédio derrubado e com o manto das trevas. Podiam ouvir o rangido do metal e o roncar do Panzer, acompanhados pelos gritos da infantaria alemã. Eles não admitiriam, mas estavam com tanto medo que até prendiam a respiração, mexendo-se inquietos pelo obstáculo que se encontravam.

O cabo gesticulou para que agissem imediatamente.

Sergoff arrastou-se como um rato pelas sombras e grudou o explosivo no local indicado por ele. Apressou-se em se afastar o mais rápido possível para junto dos camaradas. Dentro de alguns segundos, os nazistas se surpreenderam com a explosão do tanque, lançando metal e homens para o espaço.

– Muito bom! Agora vamos voltar pra trincheira! – comentou Pyotr, entusiasmado, a Corvonov, que não tirava os olhos de Sergoff.

– Cubra-o, cabo! – gritou, já arremessando uma granada a fim de deter o inimigo que tentava alcançá-lo.

Pyotr lançou algumas rajadas até Sergoff chegar, encostando-se na coberta e levantando a cabeça ao alto, talvez na esperança de ajuda divina.

– Temos que sair deste obstáculo! Eles vão nos pegar! – disse desesperadamente Corvonov.

– Precisamos de uma isca! – disse Pyotr. – Eu ficarei. – e trocou o carregador de sua arma, preparando-se para o pior. Escutava os nazistas se aproximarem cada vez mais e a tensão aumentava.

– Não. Eu fico. – afirmou decididamente Sergoff.

– Não tente ser um herói, camarada! – irritou-se Corvonov, levantando-o pelo colarinho da farda. – O cabo deu uma ordem!

– Pro inferno com as ordens! Deixem-me! Eu já estou ferido mesmo.

Foi então que Corvonov viu as pernas do soldado cobertas de sangue. Ele recebera alguns tiros quando da carreira até eles. Desta vez, não havia como ajudá-lo.

– Eu vou carregá-lo! – gritou Corvonov, com lágrimas congeladas nos olhos.

– Vá, maldição! – praguejou, desvencilhando-se dos braços do amigo.

– Não!

Neste momento, sentiu um puxão pela manga. Era Pyotr quem o arrastava involuntariamente.

– Ele já está condenado. Vamos.

Corvonov trocou um derradeiro olhar com o amigo, cujas últimas palavras foram:

– Escreva um livro por mim.

Mesmo que não soubesse ler e escrever, o soldado apenas acenou positivamente e acompanhou o cabo no retorno à trincheira.

Sergoff respirou fundo e resistiu furiosamente o quanto pôde, até ser varado por uma rajada e explodido por uma granada.

Os combatentes da trincheira conseguiram resistir até o final da madrugada, quando o mensageiro chegou com os reforços.

Quando a rendição veio, depararam-se com sombras de homens extremamente exaustos. Alguns mal conseguiam se levantar para saldar os camaradas.

Assim que o tenente Ivan, o homem sobre o comando do novo destacamento que tinha por missão manter a linha que haviam conquistado a duras penas, tomou conhecimento da ação especial de Pyotr e Corvonov, imediatamente emitiu ordens para levá-los ao comando da defesa, com recomendações de medalhas. O oficial de porte marcial e quepe encardido e amassado sobre a cabeça de cabelos e olhos castanhos e barba rala argumentou que o cabo também estava muito ferido.

Dispensou-os prestando-lhes uma continência respeitosa e eles acompanharam os mensageiros que faziam um fluxo constante entre os postos de comando e qualquer lugar em que tropas soviéticas se faziam presente, até o supremo comando de operações, numa base às margens do rio Volga.

À imagem do curso d´água, Corvonov lembrou-se de seu desembarque na cidade, em setembro de 1942, sob pesado fogo inimigo e até mesmo de caças, enquanto um sargento lia uma carta com mentiras e os homens morriam à sua volta. Viu muitos tombarem desde então.

Corvonov observou alguns barcos chegando lentamente. Soldados de todas as partes da União Soviética haviam rumado até Stalingrado desde o começo da ofensiva, a fim de defendê-la contra as forças nazistas. O movimento de tropas nunca cessava.

Para os dois, a precária base era a visão do paraíso, um contraste grandíssimo com o que haviam vivenciado no campo de batalha até o momento: soldados aqueciam as mãos em fogueiras feitas em tambores; outros faziam as barbas em locais improvisados para tal. Havia ainda um posto de socorro, lugar triste que poucos gostavam de entrar ou olhar, mas cujos gritos, lamentos e gemidos não deixavam esquecê-lo. Ao ar livre, caixotes de munição e suprimentos. Havia até mesmo um dentista vestido com seu avental ensangüentado e munido de um alicate, arrancando um dente de um soldado e alheio aos gritos dele.

Corvonov divisou ao longe um aglomerado sob uma cabana rústica fortemente vigiada por metralhadoras pesadas sobre sacos de areia.

– É ali que vocês devem ir. – explicou o mensageiro, apontando-a com a baioneta presa ao fuzil. – Alguém quer vê-los. – e continuou a andar sem se despedir ou virar para trás.

– Que será de nós agora? – perguntou-se Pyotr. – Preciso de cuidados para meu braço. Nem sei se voltarei a utilizá-lo...

– Não fale isso, cabo. Pensamento positivo, pensamento positivo... – disse e sorriu-lhe tortamente, dando-lhe alguns tapinhas nas costas.

Puseram-se a andar até o local. Uma sentinela com olhar desconfiado barrou-os, mas após as explicações foram liberados.

Entraram um tanto apreensivos. O ruído de interferência de rádios e vozes agressivas tomava conta da sala, cuja mesa grande abrigava mapas da cidade totalmente riscados por todos os lados. Circundando-a, homens de sobretudo e estrelas nos ombros. Um deles veio conversar com eles:

– Então, são vocês os soldados.

– Cabo Pyotr e soldado Corvonov. – apresentaram-se marcialmente com continência.

– Veio até mim a notícia do aparecimento de Panzers numa área em que não suspeitávamos que estivessem e de como vocês os destruíram. Acompanhem-me.

O oficial caminhou até a mesa, apontando os mapas.

– Vejam: o último enfrentamento que tiveram contra os fascistas ocorreu em 11 de outubro. Até então, as colunas alemãs haviam chegado aos subúrbios da cidade. Como estavam sem rádio, somente tomamos notícia disso dia 12, através da tropa do tenente Ivan, alcançada pelo seu mensageiro.

– É isto mesmo, senhor.

– Silêncio, soldado!

Corvonov engoliu em seco.

– O tenente recomendou-lhes para serem agraciados com medalhas, mas, enquanto vocês retornavam até aqui num passeio turístico, o próprio inimigo avançou e hoje, dia 14 de outubro, eles controlam quase a cidade inteira! – gritou, batendo na mesa e despertando atenção de alguns oficiais que rapidamente voltaram-se ao que estavam fazendo.

– Eu não sabia, senhor!

– Claro que não! O eficiente mensageiro viajou muito rápido, não é mesmo? – ironizou. – E ainda querem condecorações!

– Enquanto temos esta conversa, os alemães estão a apenas alguns quilômetros daqui! Talvez agora mesmo possamos ser mortos por qualquer franco atirador! Assim sendo, não vou dar-lhes condecoração nenhuma!

Durante toda a bronca a dupla manteve-se imóvel, sem nem mesmo piscar. Porém, sentiram um certo pesar pois, certamente, a esta altura o tenente já não se encontrava mais neste mundo.

– Sargento Pyotr... – disse com desprezo, olhando indiferente a insígnia de cabo dele e coçando a barba grisalha. – Está dispensado.

– Sim, senhor. – disse subserviente, dando meia volta para partir, escondendo até mesmo sua dúvida sobre o motivo da promoção.

O general retirou bruscamente a luva de couro que vestia, sacou uma pistola e varou a cabeça do praça, que caiu hirto.

Corvonov prendeu a respiração de raiva. Podia matá-lo a coronhadas, mas não se mexeu. E, acima de tudo, odiava-o por saber que aquilo tudo se devia a apenas um capricho dele.

– Seu amigo foi executado por traição, cabo Corvonov.

– Então mate-me a mim também, senhor! – afirmou, desafiando-o.

– Eu sou o general Chuikov. Não me diga o que fazer, cabo. – respondeu friamente, cofiando o bigode. – Está dispensado. Junte-se a um grupo e continue na guerra. Ainda preciso de atiradores de elite. Procure algo pra fazer e caia fora.

Só agora o cabo deu-se conta de que segurava seu rifle com luneta.

Prestou-lhe uma continência torta e saiu pisando forte, pensando em como aquele general era louco.

– Tirem este lixo daqui! – reclamou, apontando para o cadáver de Pyotr.

Para Corvonov, não restava mais lágrimas a prantear a morte do amigo. Prometeu a si que não choraria por mais ninguém. Esperou ainda que soldados arrastassem o cadáver de Pyotr para pegar-lhe a jaqueta com a insígnia, vestindo-a insensivelmente.

Deixou sua arma descansar às costas presa por uma bandoleira ao corpo e, de mãos nos bolsos, pôs-se a caminhar tranqüilamente pela base.

Tentaria arranjar alguma ração e descansar um pouco as pernas, talvez conseguisse até um ou dois carregadores para seu rifle. Teria que fazê-lo o mais breve possível, pois a qualquer momento podia ser-lhe ordenado que se juntasse a algum grupo de combate.

O lugar mais fácil em que poderia conseguir o que queria estava nas caixas de suprimentos perto do rio.

Aproximou-se dos caixotes, empilhados cuidadosamente e cobertos de neve. A fim de não furtar, apresentou-se a um suboficial responsável por eles e lhe foi ordenado que ajudasse na distribuição de fuzis e munição aos recrutas que estavam para chegar se quisesse conseguir algo.

Corvonov juntou-se a outros praças que aguardavam os barcos com tropas, numa leva de algumas dezenas de barcos com umas centenas de combatentes.

A primeira coisa que faziam era enfileirá-los e, assim, distribuir o material. No entanto, a falta quase crônica dele fazia com que muitos recebessem apenas um carregador e nenhuma arma (a idéia era pegar dos camaradas quando estes morressem).

Muitos ali nunca haviam pegado numa arma de fogo e, ao primeiro contato com as peças duras de madeira e ferro, tremiam apreensivos. Incentivados pelos gritos rudes dos sargentos, logo foram divididos em grupos e enviados ao campo de batalha.

Corvonov não se surpreendeu ao receber o comando de um destes grupos, mas não sem antes enfiar um carregador no bolso. Pelo jeito, não conseguiria comida, tampouco descansar, pois levara o dia e parte da tarde ajudando a intendência.

Reuniu seus homens (e uma mulher, como pôde notar momentos depois) em uma preleção improvisada, pedindo-lhes para que fizessem um círculo em volta dele e explicou sem cerimônia, após coçar a barba rala:

– Eu sou o cabo Corvonov, 13ª de Rifle. Bem-vindos a Stalingrado. Alguém tem alguma coisa a dizer antes de partirmos?

– Senhor, eu não recebi uma arma.

O cabo lançou um olhar indiferente ao recruta de aparência jovem e perguntou:

– Qual o seu nome, garoto?

– Vassili Grigorievitch Zaitsev, senhor. Meu avô caçava lobos nos montes Urais e me ensinou a atirar desde os cinco anos. Eu era pastor de ovelhas lá.

– Vassili Zaitsev... – repetiu um dos soldados, um homem com alguns quilos a mais (haviam-lhe dado um número pequeno de casaco, que lhe ficara curto) de nome Kletush. Soltou uma risada sarcástica: – Temos um coelhinho aqui, senhor! – afirmou, fazendo alusão ao nome Zaitsev que, em russo, significa lebre.

– Seu nome de guerra será Vassili, garoto. – disse o cabo. No fundo, não se importava nem um pouco com os comentários do soldado.

– Assim seja, meu comandante. – respondeu satisfeito.

– Cabo, e a arma dele? – perguntou ainda outro soldado, uma mulher que tremia de frio. Esta nova leva recebera apenas uma farda de combate básica e era quase certo que muitos deles morreriam de frio antes de encontrar as tropas nazistas. Seu nome era Ana, uma loira de belo rosto vermelho e olhos azuis.

– Se quiser, dê-lhe seu fuzil. – disse friamente e, sem esperar qualquer outro comentário, continuou: – Muito bem, camaradas. Mantenham-se alertas e afiados e tentem não morrer de frio. Sempre revistem os cadáveres – disse esta parte olhando de soslaio para Vassili – e sigam minhas ordens. E lembrem-se: “nossa causa é justa. A vitória será nossa.”

Sem demora, foram levados a ferrovia e embarcaram tão rápida e ordenadamente quanto podiam em vagões de ferro e madeira, totalmente escuros e superlotados, não muito diferentes dos que transportavam os condenados aos campos de concentração. Enquanto o trem rangia de frio, sacudindo sobre os trilhos enferrujados até o caminho da morte, Corvonov mantinha-se sentado, fechado em si sombriamente, nutrindo pensamentos amargos. Na verdade, o cheiro era horrível lá dentro. O vagão cheirava a medo.

– Esta não é uma blitzkrieg, uma guerra-relâmpago, mas sim uma rattenkrieg, uma guerra dos ratos! – afirmou jocosamente um veterano.

Corvonov ouviu a piada e não deixou de rir. Afinal, aquela era realmente uma guerra suja de ratos. Ele já havia enfrentado todo tipo de emboscadas: em cada quarteirão por que já passara, minas, armas antitanque sobre escombros, franco-atiradores em janelas de prédios, sem contar que o combate era, na maioria das vezes, rápido, mortal e muitas vezes travado com facas e pás entre pequenos grupos de inimigos, numa luta suja e feroz.

Aproveitou ainda a melhora repentina de humor para aprender o nome de seus comandados.

Naquela noite eles desembarcaram precariamente enquanto o vagão à frente explodia, queimando todos em seu interior. Corvonov quase não se importava mais com os gritos de agonia. Quase, porque eles enchiam seus pesadelos toda vez que fechava os olhos. Toda vez. “Na guerra, não há homens sem ferimentos.”

Os soviéticos foram também alvejados por metralhadoras pesadas, sofrendo baixas terríveis. Corvonov levou alguns tiros de raspão e tudo o que pôde fazer foi cair, juntamente com o resto de seu grupo de combate, enquanto os outros morriam com a recepção agressiva, inclusive o oficial e alguns graduados responsáveis por liderar aquela fração de tropa.

Corvonov sentia o corpo arder, mesmo com a adrenalina subindo-lhe o sangue e o anestesiando. Seus olhos se arregalaram e a margem em volta deles encovava-se ante a perspectiva do terror da morte iminente. Ele não tinha medo de morrer, mas sim da maneira pela qual ela aconteceria.

Arrastou-se até uma vala próxima atrás de um compartimento de trem capotado e afundado na neve, seguido por sobreviventes que ainda tinham forças para se deslocarem. Os projéteis cortavam o ar.

– Vamos retribuir os cumprimentos, camaradas! – afirmou ensandecidamente um soldado e Corvonov instintivamente voltou o olhar para os ombros dele, reconhecendo as barretas de sargento costuradas e desbotadas. O graduado agarrou-o forte e energicamente e ordenou com perseverança:

– Cabo, pegue alguns homens, siga pela trincheira e acabe com os malditos nazistas! Assim que os pressionarem, avançarei com outro grupo!

Corvonov guardou-se os resmungos ao fitar onde devia ficar. Mal dava para manter-se deitado, quanto mais se proteger ali.

– Ana, Kletush, Vassili, sigam-me!

– Kletush morreu, senhor! – respondeu Ana, com o cabelo totalmente desgrenhado, deitada na neve e se encolhendo instintivamente de medo a cada disparo. Largara a arma e o casquete lhe escapara há tempos. Respirava descontroladamente.

– Gordo desgraçado! Mais essa agora... – reclamou consigo. – Qualquer um então, droga! – berrou, quase perdendo o controle.

Uma explosão repentina de granada lançou alguns estilhaços na direção deles, ferindo alguns, inclusive o cabo. As farpas de metal afundaram na pele, atravessando facilmente os farrapos de farda. Corvonov curvava-se da dor excruciante, esforçando-se em segurar os próprios gritos. Sentia-se o mais desgraçado dos homens.

– Vamos, cabo! Não tenho a noite toda! – disse o sargento, com um sorriso sinistro no rosto de traços fortes. Ele era careca e robusto. Enfim, um combatente vibrador, termo utilizado aos homens que, grosso modo, gostavam do militarismo, constituindo em bons soldados em época de guerra.

Corvonov quis matá-lo ali mesmo, mas tudo que pôde fazer foi apenas juntar forças e rolar até a “escavação” do terreno, acompanhado por seus homens.

Pouco a pouco, conseguiam sobrepujar o inimigo. À medida que a fração do cabo respondia ao ataque alemão lançando fogo de apoio ao sargento, este avançava com um esquadrão, a fim de tomar as posições nazistas.

Eles já estavam perto do prédio central da estação, combatendo aguerridamente em meio às linhas de trem, cujos vagões serviam-lhes de proteção e palco para armadilhas de toda sorte.

Na época da batalha de Stalingrado, o Exército Vermelho era um dos mais atrasados. Seu enfoque estava pura e simplesmente na maioria numérica e utilizavam táticas básicas um tanto quanto obsoletas, como ataques em cargas e avanços de choques. Seus conscritos, se é que podiam ser chamados assim, recebiam um treinamento muito variado, dependendo do local onde fossem recrutados. Assim, enquanto alguns realmente adestravam-se para o combate em quartéis, outros o faziam no próprio campo de batalha, o treinamento máximo.

Os soviéticos que sobreviviam acabavam por adquirir experiência empiricamente no combate.

No entanto, havia algo de interessante na estratégia soviética. Geralmente fazia-se um rodízio entre tropas experientes e inexperientes na frente de combate, para que estas se acostumassem com a guerra e no intuito de confundir o inimigo.

Tática impossível de se utilizar em Stalingrado. Para aqueles que desembarcavam na cidade, não havia retorno.

Ali, os conceitos se modificavam. Se um grupo de combate padrão de infantaria russa consistia em uns nove homens, sendo um ou dois com metralhadoras e um pelotão incluía quatro grupos de infantaria, talvez dois snipers seguindo-lhes aquartelamento, naquela época tudo mudava. As tropas e funções se misturavam na guerra urbana e lançava-se mão de todas as armas possíveis. Não era raro uma companhia transformar-se em apenas alguns corajosos homens.

Não era de se estranhar também que muitos entrassem em estado de choque, traumatizados, catatônicos. Com eles, não foi diferente.

Na ofensiva da ferrovia, enquanto Corvonov, atordoado de dor, observava camaradas caírem perante o inimigo, alguns até mesmo cometendo suicídio (sempre que presenciava os incontáveis horrores da guerra, fazia um esforço imenso a fim de esquecê-los e, no fim, tornava-se um homem mais frio, como se colocasse uma máscara insensível no rosto. Uma máscara de espinhos.), percebia que aquela era uma luta singular, daquelas que representavam viradas no contexto de uma batalha.

Quase sem perceber, correu devidamente coberto até a entrada do prédio central da estação, enquanto outros camaradas combatiam lá dentro. Levantou a arma por puro reflexo, arregalou os olhos e entrou.

Ao ouvir o estampido de um tiro que lhe passou muito próximo, jogou-se no chão de entulho, pouco se importando com os próprios ferimentos. Ao notar que o disparo havia vindo de um dos diversos buracos na parede, não pensou duas vezes: a coronhadas selvagens, abriu mais um rombo, enfiou seu rifle e pôs-se a apertar freneticamente o gatilho, (ele sabia que o inimigo estava do outro lado), rejubilando-se com os gritos de morte alemães.

Naquele momento, estava possuído por um forte instinto de violência. A peleja era tão brutal que somente um milagre podia salvá-lo.

Ao custo de muito sangue e sofrimento, ganhavam posições e, entre um tiro e outro, Corvonov pegou-se pensando por que os fascistas simplesmente não se rendiam? Afinal, era quase certo que muitos deles nunca mais veriam sua pátria, tal a distância que os separava. Além disso, sabia que era uma luta pessoal entre Hitler e Stalin, este não medindo esforços humanos. Ele enviaria quantas tropas fossem necessárias, de uma maneira ou de outra, até a vitória final.

De qualquer jeito, ao cabo só cabia a preocupação pela sobrevivência pura e simples, a síntese da guerra.

Só terminou o frenesi assassino quando o cartucho acabou. Encostou-se na parede decadente de tijolos para trocá-lo, retirando-o do bolso e o batendo na cabeça antes de enfiá-lo na arma. Passou a língua sobre a boca antes de continuar. Através do buraco que abriu, observou rapidamente os cadáveres para se certificar de que realmente estavam mortos.

Quem observasse aquele combatente sob o caos, o rosto endurecido pelo sofrimento que ora se contorcia em espasmos de ódio e fúria, não imaginava que o guerreiro Corvonov, atirador habilíssimo, havia sido forjado nas estepes da região centro-oeste, onde plantava batatas com seu braço forte.

Apesar de toda a dureza da guerra, recusava-se a se entregar à morte quase certa. A ironia era que o único lugar que realmente tinha para retornar era o túmulo, a terra nua e crua. E não, não haveria flores; nem se lembrava da última vez que vira uma.

– Vamos, camaradas! Atacar! – vociferou com violência para incentivar os soldados. – Nós não vamos perder esta posição!

Realmente, os soviéticos não podiam se dar ao luxo de perdê-la, pois ela representava um ponto-chave para eles. De lá, havia toda a linha ferroviária que, não obstante todos os perigos do percurso, permitia um escoamento rápido das tropas, alargando a frente de operações na defesa contra o inimigo. O ataque alemão àquele lugar era algo perigosíssimo, levando-os mais uma vez a um passo da derrota total.

Para piorar a situação, Stalin havia lhes ordenado uma absoluta proibição de recuar. Qualquer um que o fizesse era executado sumariamente como traidor. “Não há nada além do Volga”, este era o lema dos que lá estavam.

Corvonov ouviu os camaradas tomarem o andar superior antes de se preparar para partir entre hesitante e interiormente contente. Subiu atento os degraus que o separavam do posto de observação e, ao chegar em cima, correu para uma das janelas a fim de cobrir os soviéticos que vinham reforçar-lhes a posição conquistada.

Encontrou o sargento que lhe havia dado a ordem de se entrincheirar coordenando os movimentos de defesa e intimamente desejou-o que estivesse morto.

O graduado olhou-lhe rapidamente.

– Ainda está vivo. Bom. Bom pra você. – e ajeitou o casquete na cabeça. Tornou a berrar: – Vamos, pessoal! A guerra ainda não acabou! Fiquem atentos até algum oficial chegar!

Enquanto ele falava, disparos passavam-lhe perto, mas ele não se abaixava. Os homens notaram-lhe a coragem, a qual os inspirou.

– Camarada Oficial chegando!

Um homem surgiu na sala. Tinha bigode espesso, estava coberto por um pesado casaco que lhe caía aos joelhos, a cabeça sob um quepe e uma pistola na mão. Assim que subiu o último degrau, agachou-se a fim de evitar os tiros inimigos. Vendo que o sargento não o acompanhava, gesticulou para que o fizesse. Ele obedeceu, não sem antes fitá-lo com uma ponta de desprezo.

– Sou o tenente Vlachko. – apresentou-se, estendendo-lhe a mão.

– Sargento Yuri. – respondeu-lhe apenas com continência. – Não há tempo para apresentações. Estamos no meio do combate, senhor.

– Por acaso sou cego, sargento? – rosnou. – Vamos, situação do local.

– Tomamos esta construção e estamos detendo o ataque. O inimigo está em vias de recuar, mas resistindo bravamente. Temos pesadas baixas e precisamos de munição.

– Utilizem as armas deles. Não haverá abastecimentos de qualquer tipo. Matem com qualquer coisa que estiverem à mão.

Alguns soldados não conseguiram segurar um triste suspiro.

– Nós já estamos utilizando o armamento inimigo, senhor!

Foi então que o tenente notou-os segurando submetralhadoras, metralhadoras, rifles e fuzis alemães.

– Temos algum rádio? – gritou o tenente para baixo.

A resposta veio sofrida:

– Negativo! A linha foi cortada!

“Pra variar...”, pensou Corvonov, debruçado com seu rifle sobre uma janela.

– Muito bem, vamos ver o que fazer...

– Ataque inimigo! – ouviu-se de fora.

– Decida-se rápido, senhor! – pressionou o sargento, correndo para observar o exterior. Uma nova leva de nazistas avançava contra o posto, a fim de novamente enfraquecê-los.

– Ahn... Coloque grupos em pontos-chave pra defesa!

– O que acha que andei fazendo desde que tomei esta droga? Maldição, você merecia morrer, filho da mãe! – protestou, chutando nervoso um pedaço de entulho.

Tomado de um repentino acesso de fúria pelo orgulho ferido, ergueu sua pistola para matá-lo, mas, no último instante, foi impedido por Corvonov, que deu-lhe um encontrão, derrubando o oficial que bateu violentamente a cabeça, deixando-o inconsciente.

Os soviéticos dividiam sua atenção entre a cena que se passara e o perigo iminente.

– Não há nada pra se ver! Continuem vigiando! – berrou Yuri, após se recompor. Andou até o tenente, conferindo se ainda estava vivo. Levantou-lhe levemente a cabeça e depois largou-a no chão.

– Maldito aristocrata, eu mijo em cima de você. Poderia matá-lo antes que pensasse em sacar qualquer coisa pra cima de mim! – desabafou e cuspiu na cara dele.

Estendeu uma mão para o cabo: – Vamos, levante-se. Isso... Qual o seu nome?

– Corvonov, senhor.

– Corvonov... Muito bem, Corvonov. Termine o que começou. Mate-o.

– O quê? Só pode estar brincando.

O rosto sério do sargento dissipou qualquer dúvida que tivesse. Yuri agachou-se, pegou a pistola do tenente e ofereceu-a a ele.

Corvonov afastou-a decididamente, balançando a cabeça.

– Não, senhor! Está louco? Agora mesmo algum desses soldados pode ser da polícia secreta!

– Apenas faça-o, cabo!

– Não!

Yuri puxou o cão da arma e a apontou para Corvonov.

– Eu não vou repetir a ordem.

– Os alemães estão avançando! – ouviu-se desesperadamente.

A tal altura o combate intensificara-se e os nazistas estavam determinados a não parar de atacar.

– Qual o seu problema? – perguntou Corvonov.

– Se não matá-lo, eu o matarei! – respondeu, com um brilho insano nos olhos.

– Se você matá-lo, sou eu quem vai acabar com você!

O impasse entre eles foi quebrado com um repentino tremor de terra que foi gradativamente aumentando de intensidade. Num primeiro momento, os soviéticos não sabiam o que era, mas, olhando pra cima, logo descobriram.

– Bombardeiros!

Mesmo com a noite escura, os que se arriscaram a olharem pelas janelas e pelos buracos do teto conseguiram avistar as sombras de morte sobre suas cabeças, coalhando os céus, tal a quantidade assustadora. Por um momento, um silêncio tenso reinou, num prenúncio macabro.

Corvonov engoliu em seco:

– Vamos morrer.

– Protejam-se! – gritou o sargento, agarrando o cabo rudemente pelo braço e o jogando no chão.

Apesar de tudo, Corvonov admirou a obstinação do militar em resistir. Ou talvez fosse apenas o instinto de sobrevivência.

De qualquer maneira, aprendera que um soldado devia agir de cabeça fria e coração quente. Só esperava sobreviver para praticá-lo o conceito.

Mas seu coração não estava quente e sim congelado. Mais do que isso: angustiado. Naquele momento, Corvonov realmente sentia medo. Encolheu-se miseravelmente perto de uma mesa e, pela primeira vez em muito tempo, começou a rezar.

Não demorou muito para que as primeiras bombas fossem despejadas, aumentando a confusão e causando pânico no campo de batalha. As labaredas gigantescas incineravam tudo que tocavam, lambendo as trevas.

Os tremores sacudiam os homens nas trincheiras e abrigos, fazendo-os tropeçar e cair uns nos outros como num convés de navio durante a tempestade. As explosões elevavam o calor a um nível infernal.

Num primeiro momento, os soviéticos chegaram a duvidar de que lado pertencia a onda destruidora, uma vez que ela arrasava os dois exércitos. Mas logo ficou claro que pertencia aos nazistas, visto que continuou avançando para o leste.

Os homens sob o comando de Yuri não precisaram esperar ordens para abandonar a construção. Corvonov suava horrores enquanto esperava todos descerem, passando a mão sobre o rosto para limpá-lo e, quando finalmente o último deixou o prédio (e ninguém fez menção de ajudar o tenente), lançou-se para fora.

Mas, no último instante, uma bomba caiu, transformando o lugar em apenas um amontoado retorcido de entulho sob chamas purpúreas e fumaça, soterrando o cabo, sua tumba selada em meio a um estrondo ensurdecedor.

– Capitão) Adam! Capitão!

Um homem de compleição física avantajada, vestido com uma jaqueta de campo escurecida de sujeira e um capacete, olhou através de seus óculos de lentes redondas, rachadas e quase sempre embaçadas para o soldado que o chamara. Correu até ele de submetralhadora à mão.

– Parece que há mais alguém vivo, senhor.

– Deus, três dias depois do bombardeio? Diga-me onde, soldado.

– Ali, senhor. – e apontou para os escombros do que antes era o prédio central da estação. – Ouvimos sons debaixo dele.

– Então vamos conferir. – disse, retirando sua pá de campanha do cinto. – Ajudem-me com aquilo ali!

Corvonov tivera sorte mais uma vez. Quando da queda, seu rifle ficara preso entre duas pedras, impedindo que uma terceira maior lhe caísse. Entre ficar apenas com o rosto e algumas partes do corpo queimadas e morrer, preferia a primeira opção.

Quando a fraca luz do dia penetrou por um buraco tímido de uma pedra retirada pelo capitão, renovando um pouco o ar viciado e fedorento de fezes, o cabo mal tinha forças para lançar um olhar de reconhecimento ao seu salvador que se dedicava com ardor a retirá-lo de lá.

Mesmo assim, conseguiu vê-lo de relance, esforçando-se com a pá e machucando as mãos. Viu em apenas um dos ombros as estrelas de seu posto (a outra platina estava totalmente esfarrapada) e, assim que havia uma abertura maior, a mão amiga alcançou-o.

Sob olhos de manchas arroxeadas e olheiras fundas de velhice precoce, rebeldes cabelos ruivos e barba por fazer (e mal feita), havia um quê de compaixão e bondade naquele oficial que Corvonov não sabia dizer.

Os soldados o retiraram com cuidado da cova e o deitaram no chão, prestando-lhe socorro como podiam, jogando-lhe a preciosa água de seus cantis a fim de aliviar um pouco as queimaduras no rosto. Eles não deixaram de se surpreender com a resistência do rifle do cabo; se demorassem mais um pouco, a arma se quebraria e o graduado morreria esmagado de forma horrível.

Adam agachou-se, retirando os óculos para limpar as lentes e, entre suspiros de cansaço, disse para o cabo:

– Parece que você renasceu, camarada.

– Corvonov, senhor. Meu nome é Corvonov. Devo-lhe a vida. – agradeceu, esforçando-se para levantar-se a fim cumprimentá-lo.

– Não! Fique deitado, soldado. É uma ordem. – colocou os óculos.

– Capitão, por quanto tempo fiquei nesse buraco, o que aconteceu nesse tempo todo?

O rosto do oficial assumiu um tom sério.

– Os alemães lançaram-nos um bombardeio pesado há três dias. Você viu, você estava lá. Eles acabaram com nossa base do Volga e estamos espalhados por todos os lados em busca de sobreviventes nas ruínas. Estamos sem comando. Grupos esparsos de soldados vagam a esmo pela cidade, combatendo como podem. Somos um desses grupos.

Corvonov não sabia o que falar. Apenas olhou o céu cinzento de fumaça. Mesmo após tanto tempo, seu corpo ainda doía.

– Senhor, ainda estou em condições de luta. Só preciso de uma arma.

– Mesmo se não estivesse, cabo, eu lhe daria uma. Aliás, por falar nisso, seu rifle te salvou, não é mesmo?

Corvonov riu prazerosamente e depois curvou-se num acesso repentino de tosse.

– Eu não tenho uma arma com mira telescópica, mas conheço alguém que tem. Vocês podem dividi-a. – dirigiu-se a um soldado próximo. – Traga-me aquele garoto prodígio, o Zaitsev.

Ao ouvir esse nome, Corvonov segurou-se. Tinha a impressão de que já o ouvira antes.

Momentos depois, um jovem apresentava-se ao capitão. Era Vassili!

O cabo não segurou sua alegria quando viu o garoto vivo, embora intimamente também agradecesse o fato dele ter um rifle com luneta.

– Então vocês se conhecem. – surpreendeu-se o capitão.

– Este garoto era do meu grupo de combate, senhor. Teve seu batismo de fogo aqui mesmo.

– Há três dias ele era apenas um recruta, hoje tem o respeito de seus camaradas de tropa. – disse o capitão.

– Desculpe, senhor, eu andei meio isolado do mundo durante esse tempo. – brincou o cabo.

– Corvonov, eu já tenho 20 mortos na minha contagem!

– Então você se tornou um atirador de elite... Bom, bom pra você, garoto. – soergueu-se, antes que pudessem ajudá-lo. – Capitão, para mim será uma honra e um prazer acompanhá-lo.

– Sei que farão uma boa dupla. – respondeu, tocando-lhe no ombro. – Agora preciso ir, há coisas pra se fazer. – pegou o capacete que estava do lado e o colocou sem prendê-lo. Levantou-se e saiu sem olhar para trás.

Corvonov olhou para Vassili, que já envelhecera um pouco, seu rosto escondendo uma sombra de tristeza diante da inocência e ingenuidade perdidas.

– Parece que andou aumentando sua contagem, garoto. Mas ainda não é o suficiente, ainda não...

Ivan Piro
Enviado por Ivan Piro em 09/05/2006
Código do texto: T153177