FESTA NO CÉU

Esta é uma história muito antiga que nos meus tempos de menino ouvia do compadre Demétrio ao redor do fogão à lenha aceso num início de noite. Esta e muitas outras eram muito boas, ouvíamos vezes e mais vezes a mesma conversa, repertório limitado. Mas era preferível, porque senão lá vinham as histórias de assombrações, Saci-Pererê, mula-sem-cabeça... Noites sem dormir, suadouro debaixo das cobertas, arrepios e ansiedade tremenda até o galo cantar (hoje meus netos fazem o mesmo, aliás, com uma ínfima diferença: assistem aos mesmos programas infantis através de um mesmo canal repetidas vezes. O mundo progrediu, mané!)

Espalhou-se entre a bicharada a notícia de que haveria uma festa no céu. Mas com um senão: sem transporte. Aberta a qualquer bicho, mas que eles se organizassem para fazer o baile, pois lá em cima este babado de música e músicos era meio mixa, furreca e, na melhor das hipóteses, encontrariam alguns tocadores de harpa e, convenhamos, um baile só com músicas de harpa é para pecador nenhum botar defeito.

Moleza! A maioria dos bichos que sabe tocar algum instrumento sabe também voar. Quem nunca parou para ouvir um solo de flauta executado pelo sabiá-laranjeira? E o som inconfundível da flauta doce do curió? O cavaco sempre afinado do canário da terra, geralmente acompanhado pelo violão de sete cordas do urubu rei? Iriam todos voando, usando seus próprios e confiáveis recursos. Mole!

Mas, e a percussão? Ninguém, mas ninguém mesmo abriria mão de uma festa sem os sapos. Na percussão eram inimitáveis. Além disso, a rã touro era o que existia de melhor na execução da tuba e ninguém poderia duvidar das virtudes do sapo-boi no bongô. Gordo daquele jeito, quase não se via o instrumento entre as pernas, aquela barba sempre bem-feita (sapo barbudo sempre existiu, não é de agora, não), brinquinho na orelha esquerda, óculos de grau, era uma graça! Às vezes também se arriscava no piano ou teclado, mas era divino no bongô. A rã pimenta? Quem poderia substituí-la no Uh! Quando a orquestra fazia aquela pausa na execução do Mambo Jambo?

Não poderia haver uma rodada de samba sem a participação do sapo-ferreiro. Ele era um trem no repenique e no triângulo. O sapo martelo no surdo e no atabaque e quem poderia esquecer o sapo-cururu no pandeiro ou no tamborim? E os solos de piano ou simplesmente o correr os dedos longos pelo teclado para preencher um pequeno hiato dos instrumentos de sopro? Todos responderiam sem pensar: a perereca verde. Sapo-boi poderia quebrar o galho, mas não era bem a sua lavoura.

Não haveria outro jeito. Sem a “sapaiada” a festa não teria graça e estavam todos ansiosos para ir, pois toda aquela geração não ouvira notícia de outra e talvez não houvesse tão cedo igual evento. Constava da mala direta que o pessoal lá de cima estava meio sem motivação, assim tristonhos, sem absolutamente nada para fazer e a chefia resolvera chutar o balde e botar pra quebrar. Comida e bebida por conta da casa e duraria do anoitecer até o amanhecer do outro dia. E foi aquele alvoroço. Roupa nova (vocês precisavam ver a elegância do urubu rei na sua casaca preta!), sapatos, tênis, instrumentos revisados e planos para levar os sapos. Uns já até haviam sugerido: o sapo-boi desejava ir de carona dentro do baixo de cordas do urubu-de-cabeça-vermelha.

- É ruim, heim, bicho! Já terei de levar aquele baita instrumento e com tu dentro? Sai pra lá! Te manca, ô meu! (urubu paulistano).

E aproximando do dia marcado, já se podia ouvir e ver da terra alguma agitação lá em cima. Ruídos de coisa sendo arrastada ou caindo, jogos de luzes, fogos de artifícios, enfim, São José provavelmente estava assoberbado, pois era o único residente que sabia trabalhar com carpintaria e marcenaria e, claro, seria ele o encarregado de construir o palco etc. São Pedro não era do ramo e, além do mais, parecia não ter mais aquela paciência inicial. Fora designado para tomar conta da parte da entrada e tinha problemas todos os dias com aquelas almas que pensavam bastar arrepender-se no dia anterior e pronto! Com ele não tinha isso não! Merece, merece; não merece, desce para as profundas. Nem olhava para a cara da alma penada. Incorruptível!

E esse era um dos motivos para a festa. Antigamente esse controle era feito lá na porta do céu, sistema antigo de fichário, aquela fila enorme, tal como hoje na época das matrículas nas escolas públicas, INPS etc. Atualmente o sistema está informatizado, com sensores eletrônicos, muito mais rápidos e se a alma não serve, é desviada logo de trajeto e vai para a guarda de Belzebu. Além do mais, o movimento atualmente caiu muito, é pequeno, quase não chega mais ninguém... Madre Teresa, D. Hélder Câmara, Mons. Mieli, Ayrton Senna, Garrincha, Vó Zipina... E havia certo tédio. São Pedro até resolveu trançar uma tarrafa, pois ainda tem pretensão de voltar aqui para uma pescaria, mas ele deve apressar-se, pois se demorar um pouco, não achará mais nenhum peixe cá embaixo com toda esta farra descabida e irresponsável dos humanos.

Ele também sabia haver aqui uma terra fabulosa. Parece até que Deus quis fazer um resumo de tudo de bom na grande obra e colocar num cantinho. Havia furacão? Não, não havia! Terremoto? Isola “brother”, tem nada! Vulcão? Que isso! Há somente uma pequena imitação no réveillon na praia de Copacabana. Deserto? Negativo! Neve e toda sujeira depois? Também não! Terra ruim? Que nada! Clima bom? Qualquer um que se deseje! Água? Vixe! As pampas! Guerra? Nada! Ensaiaram umas “duasinhas”, mas não emplacaram. O pessoal não tem a mínima vocação! Mas para compensar... O povo daquele canto era de lascar, de entortar o cano da garrucha! Ele tinha quase certeza de que alguém iria aprontar, burlar a vigilância e entrar. Ele estava preocupado. Malandragem não faltava. Estaria muito atento! Ele já estava escaldado com as almas vindas de lá. Elas não entendiam que quando partem da Terra não há mais nenhuma relação com as coisas de lá: poder, dinheiro, influência, aquele jeitinho... Tudo ficou para trás, não se traz nada!

E a grande noite chegou. Animação total. Total liberdade nos salões, vestimentas coloridas, de início certa timidez logo dissipada pelo efeito da cervejinha, das batidas (uísque não havia, muito caro). Alguém burlou a fiscalização e entraram bebidas alcoólicas. Deveria haver somente refrigerantes. Apesar dos cuidados de S. Pedro...

O Pica-pau pegou a batuta e bateu algumas vezes na estante e chamou os músicos para início do baile. Como homenagem aos habitantes locais não acostumados com os ritmos modernos, iniciaria com uma valsa das bem antigas.

Foi delirante o solo de flauta do sabiá-laranjeira, acompanhado pela flauta doce do curió. Em determinado momento a orquestra que atacava com todos os instrumentos, a um sutil sinal do maestro, calou-se e aquele som divino de um violino solado pela patativa e após certo tempo, baixinho, lá no fundo, em crescente, se ouvia o trinar melodioso de um canarinho Roller. Até São Pedro parou ligeiramente de fazer a tarrafa e levantou os olhos para a orquestra.

Depois vieram ritmos variados. A apresentação do Carcará na guitarra elétrica executando um clássico Heavy Metal foi de enlouquecer. E as músicas se sucedendo, bebida rolando, comida de tudo que era espécie.

Já lá para as tantas, a coisa foi ficando feia. Tinha nego já de chifre caído com a cuca cheia de cana. O caburé estava uma graça! Parecia que os seus giroscópios estavam malucos, a cabeça não parava de girar; deu “tilt” na caixa de marchas: engatava para frente, dava dois passos e revertia dando ré de mais passos ainda e caia sentado. O tuiuiú, já não aguentando ficar em pé, cismou de fazer um “4”! Foi um espetáculo à parte! Todas as vezes que tentou, se não fora o bico longo, estaria deitado lá até hoje! Incrível! Ele, um bicho muito sério, ria tanto a ponto de contaminar todos ao redor: gargalhada geral! No final estava quieto num canto, mais triste do que sempre fora.

De madrugada, raiar do dia, a passarada que está acostumada a acordar cedo, se mandou. Os sapos que geralmente começam dormir com o dia clareando, ferraram no sono e perderam a carona. E agora?

Mandar levar. Chamaram o Arcanjo que já viera a Terra muitos anos atrás e entregaram a tarefa de voltar com os bufos, já que não poderiam fazer por seus próprios meios.

Pegaram uma nuvem e se mandaram. Mas, surpresa! Aqui em baixo a coisa estava feia! Queimadas, seca, fumaça para todo o lado e fumaça e nuvem não se combinam. Não poderiam aproximar-se muito e o jeito era pairar sobre um lago e a turma pular.

Agora a gente entende porque sapos são achatados, só vivem em água e continuam fazendo as suas batucadas todas as noites nos brejais por ai afora. O tuiuiú ainda treinando as margens dos rios o “4”, ficando horas sob uma pata e o caburé continua com a mania de virar a cabeça para trás do corpo. Acho que eles ainda têm esperança de um outro dia voltar. Tomara. Nessa altura, eu já serei um “anjão” e poderei estar lá participando também, ou ajudando S. Pedro a tecer sua tarrafa. Vou cair na farra! He! He!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 19/05/2009
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