Lobo Vermelho - Capítulo 1 - A jóia de Morroverde - parte I

I.

Ainda faltavam duas horas para o nascer do sol. Petro sentou-se sobre o monte de pedras caídas do que fora, muitos anos antes, a fachada de sua primeira escola. Vista daquele lugar, Morroverde era-lhe curiosamente tímida. A via pavimentada com blocos de pedra rigorosamente idênticos, ladeada por pedras brancas e redondas, estendia-se do atracadouro da balsa até a cidade em uma linha tortuosa pelas bordas do vale. A estradinha tornava-se a avenida ampla da cidade, dividindo-a em duas partes desiguais, transformando-se em sua praça-mercado. Na praça, a avenida tornava-se a escadaria de seiscentos e dois degraus que conduziam os estudantes à escola, no alto da colina que dava nome à povoação. Além da rua velha e seu pavimento impecável, havia uma longa mureta que a acompanhava de perto: o engenhoso aqueduto que trazia a água do rio até o moinho, e de lá, era derramada no açude da face leste da praça. A rua, o aqueduto, moinho e o açude eram as únicas coisas ainda intactas em Morroverde. O restante, as pouco mais de duzentas casas, a casamaior, o templo, o horto, os parreirais e as duas pequenas vinícolas, tudo fora incendiado. Não eram construções fáceis de queimar. Em Morroverde, há muito os edifícios eram cobertos com telhas de barro, em vez dos antiquados tetos de madeira e palha. Ainda assim, dos telhados aos porões, tudo estava carbonizado, negro e ainda quente. E ele sabia também que em meio a todo aquele entulho fumegante de telhas, pedras, tijolos e madeira, havia famílias inteiras, rostos dos quais tinha a lembrança clara, nomes de sua infância e primeiros anos da juventude. Naquele momento, reduziam-se a carvão e cinzas uma cidade, sua balsa, seus hábitos rudes, sua religião, seus habitantes provincianos e tímidos. Do alto do monte de pedras que uma vez foi uma escola, aos olhos de Petro, sua cidade natal parecia uma fogueira de acampamento, pisoteada por um soldado para que as brasas não voltassem a acender antes de a companhia seguir viagem. Sentiu os pés formigarem dentro das botas. Teve vontade de descer descalço até o rio, como fizera incontáveis vezes quando criança. Mas não o fez. Tinha uma necessidade física, que a custo estava sendo contida, de estar mais próximo daquela terra, das pedras que cortara para dispor naquela rua, naquela praça, naquela escadaria. Seus pés tinham saudade da delícia de terem as solas espetadas pela grama, e do calor que aquelas colinas de rocha nua e verde guardavam do sol até a noite avançada e faziam com que as madrugadas de outono fossem tão agradáveis. Entretanto, Petro não descalçou as botas. Permaneceu sentado sobre o entulho, pensativo. O pelotão esperava suas ordens.

— Devemos partir em instantes, Senhor. A dragona já está fria.

— Ajude-me com isso, Tenente.

Petro levantou-se amparado pelo ombro de Taleno, seu tenente-de-ordens. Em pé, deu uma última olhada para o vale e a estradinha de paralelepípedos.

— Inclua nas ordens do sargento uma tarefa extra, Tenente. Peça que o destacamento retire as pedras da rua, e enviem para o quartel em Avvena, aos meus cuidados. – e, entregando nas mãos do seu subordinado a caixa de metal negro que continha a Jóia de Morroverde, disse – Guarde isso no cofre do meu veículo. Já trabalhamos o bastante por hoje.