O Retorno do Dragão de Trevaterra - Parte final

Era muito escuro (ou obscuro). Difícil andar com sapatilhas delicadas.

Sapatilhas delicadas... que bobagem. Ao ultrapassar a mata fechada que a Rainha (Rainha ou menina? Nem a modesta informante que vos fala diretamente de Lugarnenhum sabe. Chamaremos de menina, pois despida de tudo o que deixou para trás, havia deixado de ser Rainha há tempos.) ultrapassara, nem que fosse um ser etéreo, alguém teria seus sapatos inteiros. Pois foi com as roupas rotas e sapatos a se desmanchar que a menina entrou em Trevaterra. Uma cidade cheia de dragões construtores, e casas que nunca acabavam suas obras. A cada andar feito, eles aproveitavam suas asas para fazer um mais alto ainda. Os dragões eram estranhos. Mecânicos. Suas diferenças ultrapassavam a espécie. Além de não serem humanos como a menina, ainda deixavam que a lógica retirasse dos seus olhos qualquer resquício de paixão (e se não havia paixão, por que contruir sem parar?).

No final de uma estrada muito longa estreita, sem muitas árvores, havia uma casa com um andar apenas. Era diferente. e vermelha. E ainda por cima, tinha luzes acesas.

A menina se aproximou, e foi quando encostou a mão no vidro, como se tocasse a pata do dragão que estava dentro da casa, através da janela, que descobriu o grande segredo de Trevaterra: lá, qualquer ser humano se tornava invisível. Talvez por isso o dragão tenha se mudado para lá, para nunca mais vê-la, nem nua, nem de forma alguma.

Os olhos eram os mesmos. Fundos, cansados, enigmáticos até. E muito lá no fundo ela sabia que alí estavam todas as paixões do mundo. Ele não era um dragão. Era o Dragão. O seu Dragão. Olhando naqueles olhos que não a podiam enxergar, ela viu tudo... os beijos de boa noite, quando um dormia na casa do outro, na infância. Ele deitado em seu colo embaixo de uma árvore, na adolescência. A rebeldia contra um sistema defasado mas que insistia em existir (ao qual os dois se haviam rendido). Os acordes do violão que ele tocava, e que nunca mais ouvira, pois eram tão raras a vezes em que o Dragão fazia isto, que ela nunca estava presente. O café forte, que toda a vez que ele oferecia, tinha que retornar a cozinha para colocar mais água, já que nunca se dava por vencido com os gostos da menina, que incluiam café fraco e sem acúcar. E a chuva que caía no dia em que ela pela primeira vez entrou na caverna. Os beijos. As mão entrelaçadas com suas patas. As músicas tristes.

Uma dragão fêmea veio do fundo da casa. Entrelaçou entre seus braços a cintura do Dragão. Ele suspirou e fez um carinho em suas patas, virou-se para trás e abraçou-a também.

A menina sentiu vontade de gritar, de chorar, de quebrar o vidro. Nada adiantaria. Era como se estivesse morta; e era assim mesmo que sentia-se.

Voltaria a Lugarnenhum. Lembrou dos principezinhos e do ministro com quem deveria trabalhar. Lembrou que tinha amigos, inclusive uma pequena moça dos povos distantes (e pequenos!). Lembrou que no caminho encontrara vários bardos, mestres, profetas, marinheiros e outros muitos; e que talvez fossem muito mais sensíveis que um dragão que enfraqueceu diante das dificuldades.

Voltaria, e tinha apenas uma certeza:

Nunca mais seria rainha. Nunca mais.

"...Diga a ela que me viu num bar

E eu estava com uns amigos

Apesar de eu conhecer quem me rodeia

Tantos estranhos tão perto

Na verdade, longe do principal

Diga a ela que me viu sozinho

Diga que ela sabe onde eu estou

Diga a ela que me viu sozinho

Na verdade ela sabe onde eu estou

Diga a ela que me viu na rua

Que eu caminhava muito devagar

Que eu olhava para todos para enxergar

Tanto espaço dentro de mim

Na verdade, ela sabe quem eu sou"

(Trecho da música "Diga a ela", da banda "Nenhum de Nós")

Continuação de "O Retorno do Dragão de Trevaterra. Parte V".

Caroline Garcia Cruz
Enviado por Caroline Garcia Cruz em 16/06/2009
Reeditado em 28/12/2011
Código do texto: T1652421
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