Enseada - Capitulo II - Aprendiz.

Uma Banshee* nunca revelava seu nome, apenas os mais evoluídos eram dignos de sabê-lo. Poderia ter mil faces ou, até mesmo, nenhuma diferente da que tivera em sua última vida. Faria de acordo com o desejado no momento em que tivesse que acontecer seu retorno.

Da forma como a conheci ainda criança, apenas os cabelos negros e olhos verdes foram mantidos. Agora, se apresentara a mim com característica de uma vida mais antiga e mesmo assim, tinha a impressão de tê-la conhecido muito antes. Sua beleza era incrível, muito homens perderiam suas almas desejando ser dignos de estar ao lado dela. Mas uma de nossas características era a de não poder se deixar envolver por ninguém, estávamos de certa forma, condenadas a ficar para sempre sozinhas. Assim, evitaríamos nos distanciar das responsabilidades adquiridas muito tempo antes e cumpriríamos a promessa de sempre proteger nosso povo.

Se a solidão nos atingia? Sim, muitas vezes sentíamos falta de amar alguém, de ter uma família e sermos livres para viver. Na maioria das vezes tínhamos tanto a fazer pelo nosso povo, que acabávamos sempre deixados de lado nossos sentimentos mais íntimos, era para isso que vivíamos, era para isso que sempre lutávamos.

A noite ia alta, já via que o dia se aproximava e as brumas deixavam o frescor da madrugada. Seria uma linda manhã.

Sentia um imenso cansaço após aquele longo aprendizado, nos despedimos e voltei a meu corpo físico para me recuperar desta viagem. Ao amanhecer, com certeza, teria mais lembranças e saberia o que fazer com elas no momento oportuno.

Carregava sempre comigo meu livro das sombras, este teria muito que guardar para quando precisasse por em prática cada uma das lições aprendidas. Seu nome secreto? Somente eu sabia pronunciar. Como aprendiz que era, fui orientada a nunca revelá-lo a ninguém, isso poderia acabar comigo fazendo-me perder minha força. Apenas a sacerdotisa tinha minha autorização para manuseá-lo a fim de realizar alguma pesquisa, seu conteúdo poderia ser lido, porém, nem ela mesma poderia escrever nele. Ali eu registrava todos os rituais e encontros de estudo em linguagem encantada.

Nas noites que se seguiram continuávamos nossos encontros, havia muito a ser feito e ela estaria sempre ao meu lado para que isso acontecesse. Durante o dia colocava em prática meus afazeres de aprendiz. Por estar tão acostumada, a solidão que ali existia nada me afetava, não havia mais ninguém com quem falar. Não fosse os animais que passeavam tranquilamente por aquela enseada sem se importar com minha presença, não teria contato com mais nada vivo. Um isolamento necessário para tanto conhecimento.

A cada dia sentia meus poderes sendo aperfeiçoados, sabia que em breve faria uso deles. Nos rituais da lua eu conseguia energizar minha mente e aura**, nos rituais ao amanhecer com os primeiros raios de sol tocando minha pele, eu aumentava esta força. A terra me protegia e dava segurança. A floresta me ensinava a ouvir o silêncio e a respeitar seus seres mágicos. Cada parte do cosmos contribuía para me fortalecer. Em breve poderia voltar ao lar que havia sido destruído por aqueles bárbaros e dar continuidade ao que estava escrito no livro do destino desde que se dera inicio à vida na terra.

O caminho era difícil de ser seguido. Precisava manter o controle de tudo o que me era transmitido, não poderia sobrar espaço para falhas, se acontecesse, seria fatal para todo um povo que esperava de mim uma proteção.

Ao mesmo tempo em que me preparava para o confronto que viria, sentia em meu íntimo um crescente medo de não estar apta aos acontecimentos inevitáveis.

Não deveria ser assim, houve época em que nossas aldeias viviam em harmonia, nenhum problema nos afetava e ali reinava a paz. Mas bastou apenas um desentendimento entre as tribos para que desencadeasse esta guerra sem fim.

Eu sabia o real motivo, presenciara desde o começo a saga desta sacerdotisa. Iniciou quando um jovem aldeão, fora o único a se aproximar de uma de suas protegidas. O único que tocara o coração desta jovem fazendo com que desejasse deixar sua vida de aprendiz. E esta belíssima moça quebrou todas as regras quando conheceu aquele a quem entregou seu coração. Aquele que a amara com a mesma intensidade, mesmo tendo a certeza que jamais poderiam viver juntos. Sabendo que ela não poderia abandonar de forma alguma sua vida para fugir com ele, o jovem deixa sua tribo e vai embora para longe, morrendo algum tempo depois em uma batalha que não era sua.

Foi a causa de grande revolta por parte da tribo vizinha, fazendo com que procurassem reparação por uma vida perdida. E a forma de reparar seria com a vida da pobre e enamorada moça.

Parecia ser pouco motivo para desencadear um ato tão terrível, mas não era. Quando eles vieram cobrar o que achavam ter direito. Nossa sacerdotisa mandou-os embora dizendo que não a entregaria e que não voltassem mais.

Juraram vingança contra ela. Nem que tivessem que destruir toda uma aldeia, fariam cumprir sua vontade. E foi assim que nos surpreenderam uma noite quando todos dormiam, eles chegaram e destruíram tudo. Admirados, não acreditavam no que viam. Eles a encontraram tranquilamente sentada. Parecia estar a espera deles. Na verdade, estava mesmo.

Eu já havia saído dali, ela havia me enviado para uma ilha distante, onde ninguém me encontraria. Eles não poderiam me destruir, então fui protegida para retornar quando tudo estivesse terminado e pudesse reconstruir nosso lar.

Certa noite, enquanto estávamos nos preparando para mais um dos rituais a serem realizados senti que estava modificando minha imagem, sentia-me mais leve, cheguei a ver que levitava, já não precisava de esforço algum para transpor os lugares desejados. Pude, com muito orgulho, perceber que estava pronta. Que a hora se aproximava e eu teria de voltar. Após esta iniciação, meu batismo de fogo, fui presenteada com um anel de quartzo-enfumaçado***. Este seria meu amuleto e me daria toda proteção, pois tal pedra era considerada sagrada desde o tempo dos druidas. Evitando que ficasse vulnerável e absorvesse fluídos negativos.

Aos poucos fui compreendendo que nossa missão era difícil de ser realizada, as amarguras que encontrávamos pelos caminhos nos faziam vulneráveis e ao mesmo tempo mais fortes, nosso corpo frágil envolto em roupas tão pesadas nos apresentava como pessoas incapazes de prosseguir sob grande dificuldade, mas ao mesmo tempo, nosso poder nos fortalecia e nos levava aos mundos distantes e a energia que recebíamos nos deixava com mais coragem para lutar.

Em dado momento, não sei precisar realmente quando, acordei daquele transe. Ouvi novamente a voz rouca do mago que chamava pela garotinha e pedia que me trouxesse um pouco de chá revigorante. Ainda me sentindo um pouco zonza, sorvi toda aquela bebida sem nada dizer. Algo estava diferente em mim agora, me sentia estranha, precisava pensar mais no que havia descoberto e teria tempo para falar depois...

Continua...

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*Banshee = espírito feminino/ fadas = cultura celta.

**Aura = segundo várias religiões e tradições esotéricas, é um elemento etéreo, imaterial, que emana e envolve seres vivos ou objetos; é por vezes, também considerada como um atributo inerente aos seres vivos.

*** Quartzo-enfumaçado = Considerada uma pedra sagrada desde os tempos dos druidas, conserva esta idéia ainda hoje na Escócia. Também é usado para evitar a vulnerabilidade em absorver fluidos negativos.

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SanMara
Enviado por SanMara em 07/08/2009
Código do texto: T1741142
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