Um motociclista a caminho do Céu

Um motociclista a caminho do Céu

Era tarde da noite, quando fui despertado pelo toque do telefone. Corri para atender. Como sempre, quando o telefone toca nessas horas, penso em desgraça: acidente, doença.

Do outro lado da linha, uma voz iniciou o diálogo que segue:

-- Tio Armando?

-- Sim! – respondi eu. Meio acordado e meio dormindo, não identifiquei o meu interlocutor.

-- Quem fala? – perguntei.

-- Sou eu, o Dudu! Não está reconhecendo minha voz?

-- Sim, agora reconheci. Tá muito longe! – disse eu, tentando me justificar.

-- Desculpe-me por ligar essa hora da noite, tio!

-- Tudo bem contigo, meu filho? completei.

-- Mais ou menos!

-- O que houve? De onde estás falando? – eu estava certo de que alguma coisa séria havia acontecido. O Dudu, pra me ligar àquela hora da noite. Mas meu interlocutor manteve-se mudo.

-- Tu estás na casa da namorada? – indaguei.

-- Não, tio!

-- Na casa da outra namorada? Ou da outra? Ou da outra? – brinquei.

-- Não tio, nada disso!

-- E então?

-- Tou ligando aqui do Céu!

-- Como? – indaguei, perplexo.

-- Do Céu! Foi isso mesmo que o senhor ouviu!

Já bem acordado, porém, atônito com o que acabara de ouvir, eu refutei:

-- como do Céu, se a semana passada eu soube que estavas cá na Terra a fazer travessuras?

-- Vim pra cá de moto, tio! A viagem foi de repente, não estava nos meus planos.

-- Então foste voando! Havias me dito, certa vez, que tua motocicleta não era para corridas, apenas para passeios. Disseste-me que costumavas passear com pessoas mais velhas e algumas delas da minha faixa etária. Lembras desses teus dizeres?

-- Lembro, tio!

-- Eu, entusiasmado, cogitei em fazer parte do teu grupo. Pelo que havias me dito, até parecia um daqueles clubes da terceira idade. Pensei em comprar uma motocicleta. Visitei algumas lojas, contatei alguns consórcios. Seria menos sofisticada que a tua, possivelmente de segunda.

-- Puxa, tio, teria sido legal!

-- Eu até já me via junto com a tua turma, circulando na Doca? Mas...

-- Mas o que, tio?

-- Tua tia vetou o meu projeto. Disse que moto, só se fosse por cima do cadáver dela. Meus filhos disseram que eu estava ficando “um velho maluco”. E acrescentaram: “decrépito e irresponsável”. Diante de tanto “incentivo”, tu deves imaginar o que aconteceu.

-- Desculpe-me, tio. Animei o senhor porque o considero ainda jovem. Até um delegado era do meu grupo. Não via nada de ruim em um professor aposentado fazer parte dele. Ficaria orgulhoso se isso tivesse acontecido!

-- Mas me fala da tua viagem. Por que tanta correria?

-- Eu tava atrasado para um compromisso. Não tive outro jeito. Acelerei e quando vi, já estava aqui no Céu. Na verdade, não tão bem no Céu! Ainda não me deixaram entrar.

-- Como não te deixaram entrar?

-- Eles fazem uma triagem. O pessoal encarregado, uns anjos!

Como?

-- Foi isso mesmo que o senhor ouviu, uns anjos. Já preenchi várias fichas de cadastro e ainda não pararam de me perguntar sobre minha vida, na Terra. Um interrogatório, tio.

-- Eu não sabia que existia tanta burocracia aí no Céu! Pensei que o processo de admissão fosse mais simples, mais ligeiro. O pessoal daí precisa se informatizar! Mas já concluíram o interrogatório?

-- Que nada, tio, Querem saber quantas namoradas eu tive, se eu sou católico, se eu sou evangélico, se eu sou judeu, se eu sou budista. Já me perguntaram se eu havia pertencido ao Hesbollah. O pessoal do Hesbollah anda em baixa por aqui. Um bombardeio de perguntas. Já imaginou? Tem horas que eu não sei o que responder!

-- E Deus, falaste com ele?

-- Ainda não me deixaram passar da porta. Nela há um anjo-porteiro, narigudo, com cara de pouca conversa. Parece um leão-de-chácara.

-- Pela tua descrição, esse anjo narigudo me faz lembrar o porteiro descrito por Kafka em “Diante da Lei”.

-- Faz lembrar o que, tio?

-- Deixa pra lá!

-- Tem um outro anjo aqui. Ele possui asas menores e é sisudo. Seu rosto sugere aquelas figuras da Inquisição, encontradas nos livros de História Geral. Aliás, não sei pra que tantas asas. Ainda não vi um só anjo passar voando pela minha frente.

-- E o que é que faz esse segundo anjo?

-- Esse é o perguntador, tio! Não pára de me fazer perguntas. Estou perdendo a paciência!

-- Calma, meu sobrinho querido. Nessas horas, perder a paciência não é a melhor sabedoria. Esqueceste as lições do teu pai? Tens que usar de um certo jogo de cintura. Esse anjo parece ter influência. Pega leve!

-- Vou tentar, tio!

-- Se encontrares Deus, diz a ele que eu acho que ele não pode ficar pegando as pessoas assim de surpresa e levando aí pro Céu. Deveria, antes, mandar um ofício, uma carta, uma notificação ou, pelo menos, um bilhete no estilo Jânio Quadros. Daria tempo pra gente se preparar, fazer um penteado, avisar a família, os amigos...

-- Pode deixar, tio. Quando encontrar Deus, vou repassar suas ponderações, críticas e sugestões. Mas acho que ele não vai gostar. Já senti, por alto, que viver bem, por essas bandas, é não questionar a ordem instituída. Ouvi quando o anjo narigudo sussurrou ao ouvido do anjo sisudo: esse rapaz não tem jeito de subversivo?

-- É, meu sobrinho, a coisa é mais séria do que eu pensava.

-- Certa feita, tio, eu ouvi um pregador dizer num programa de rádio aí da Terra, que o único anjo que tentou subverter a ordem celestial foi expulso do Céu. Fundou o Inferno.

-- Então, toma cuidado!

-- Vou seguir o seu conselho, tio!

-- Quero te pedir uma caridade.

-- É só dizer, tio!

-- Se encontrares o Santo Antônio, diz a ele que minha tia Bentinha está esperando a resposta ao pedidinho: queria que o Santo lhe ajudasse a encontrar um marido. Quando protocolizou seu pedido, tia Bentinha estava com 27 anos. Mas até agora não veio a resposta (nem a solução). Tia Bentinha está com 87 anos. Ainda tem esperança de alcançar a graça. Talvez um anjo-burocrata tenha enfiado o processo nalguma gaveta.

-- Tá bem, tio. Vou dar o recado. Se conseguir localizar o processo, farei o esforço para que ele siga sua tramitação.

-- E a tua moto, sobrinhão?

-- Não querem deixar eu entrar com ela. O anjo-porteiro, aquele narigudo e com cara de leão-de-chácara, disse que eu só entro se for sem a moto.

-- E agora, o que vais fazer?

-- Bem, um anjo simpático que acabou de passar pela porta, me disse que aqui mora um ex-motociclista. Chegou ao Céu outro dia e entrou com sua motocicleta, casaco e capacete. Disse-me, ainda, que o tal ex-motociclista, quando ainda na Terra, esteve envolvido com a “máfia das ambulâncias”. Pelo que percebi, parece que há um esquema. Vou tentar descobrir!

-- Só não entendi para que vocês querem moto aí no Céu?

-- Ah tio, num lance, vislumbrei uns caminhos que sobem não sei pra onde e lá adiante descem não sei pra que lugar. Não parecem aquelas estradas, avenidas e ruas aí da Terra. Acho que, aqui, o trânsito é mais bem organizado. Ainda pouco, vi um anjo com apito na boca, um bloquinho na mão esquerda e uma caneta na direita. Acredito que seja um anjo-sinaleiro. Tem cara e jeito de autoridade!

-- Já estou te vendo dum lado pro outro: vrummm....vrummm...

-- Não se preocupe, tio. Prometo que vou ter mais cuidado.

-- E as anjas? Que tal?

-- O que, tio? O senhor tá querendo dizer os anjos?

-- Não, tou querendo dizer anjas, mesmo?

-- Não sei se tem anjas, tio. Nunca ouvi falar disso. O senhor tá ficando biruta. Quem lhe disse que existem anjas?

-- Bom, cá na terra, as pessoas especulam sobre o sexo dos anjos. Meu avô discordava. Dicotômico, na sua preleção, ele dizia, determinado: “se tem homem, tem mulher, se tem macho, tem fêmea, se tem anjo, tem que ter anja”. No próximo telefonema, espero que me esclareças essa dúvida.

-- Alô, tio! Alô, tio! Alô, tio! Alô, Alô, Alô...Tá me ouvindo, tio?

-- Muito longe! Será que a ligação vai cair, meu sobrinho? Parece que a telefonia aí do Céu não é melhor que a daqui. Tou ouvindo um zunido...

-- Melhorou, agora, tio? Mexi aqui no fio. Dei um soco no aparelho. Talvez isso aconteça por se tratar de um telefone público. Fica bem em frente à porta do Céu.

-- Ah, sim!

-- Um momento, tio. O anjo cara-de-inquisidor tá aqui fazendo novas perguntas. Vou respondê-las e volto a falar com o senhor.

-- Alô, Dudu! Alô, Dudu!

-- Oi!

-- Cuidado, meu filho! As perguntas desse anjo podem ser uma armadilha. Anjo com cara de inquisidor...

-- Tio! O anjo quer uma declaração firmada em cartório, de que eu acatarei as normas celestiais e, em hipótese alguma, contestarei qualquer uma dessas normas.

-- Pra que ele quer essa declaração?

- Ele me disse que é uma condição essencial para eu entrar no Céu.

-- E a motocicleta?

-- Não sei! Estou esperando o ex-motociclista, o “da máfia das ambulâncias”. De repente...

-- Ora, sobrinho, aí no Céu, diferentemente cá da Terra, a lei não é igual para todos? Não há uma constituição, um código? E a tábua (de leis) de Moisés, por onde anda?

-- Não sei, tio. O senhor insiste em me fazer perguntas que não tenho como responder.

-- Desculpe-me, sobrinho!

-- Mas eu disse ao anjo-narigudo que só assino a declaração se ele chamar o ex-motociclista, o da “máfia das ambulâncias”. Parece que ele concordou. Pegou uma trombeta e fez soar um som estridente. Acho que é assim que chamam as pessoas, aqui.

-- Tu tens muita coragem, meu sobrinho! Desafiar um anjo não é tarefa pra qualquer um.

-- Que nada, tio! O senhor tá exagerando! Mas enquanto não resolvem se entro ou não entro no Céu com a minha motocicleta, me diz como andam as coisas aí na Terra.

-- -Ah, meu sobrinho, continuam no mesmo. Gente matando gente. Até as crianças e os velhos não são poupados. O pior é que alguns matam em nome da liberdade e outros dizem que matam em nome da paz. Há até quem mate em nome de Deus. Um cinismo sem par. Quando topares com Deus, pergunta se ele deu procuração para alguém fazer essa matança toda cá na Terra.

-- Que coisa triste, tio! Vou perguntar a ele.

-- Obrigado, meu sobrinho!

-- Tio, o ex-motociclista, o da “máfia das ambulâncias”, acabou de chegar. Está ali gesticulando. Ele murmurou alguma ao ouvido do anjo narigudo. Não entendi o que foi. Só sei que o anjo narigudo fez sinal pra que eu entrasse com minha moto.

-- Boa sorte pra ti, sobrinho. Tomara que o Céu seja legal, divertido. Tomara que não seja um lugar de gente sisuda que não faz outra coisa a não ser meditar e rezar, como diziam minhas tias beatas. Elas contavam, também, que o Céu era habitado por uns tais anjos da boca mole. Eles diziam amém a cada blasfêmia proferida aqui na Terra. Confirma, pra mim, a existência desses tais anjos da boca mole.

-- Pode contar comigo, tio!

-- Ah, não querendo abusar da tua boa vontade, vê se tem algum barzinho, alguma birosca onde eu possa tomar minha cervejinha. Acho que teu pai também vai gostar.

-- Fique tranqüilo, tio!

-- Ainda falando sobre o Céu: será que o padre Antenor, o pastor Esequiel e o rabino Natanael têm razão? Eles dizem que o Céu é um paraíso e deve ser a meta de todos nós aqui da Terra.

-- Vou confirmar isso pro senhor. Volto a lhe telefonar outro dia para contar as novidades. Assim, no futuro, o senhor poderá escolher pra onde vai.

-- Tá bem!

-- Tio, eu vou desligar. Estão me convidando a entrar no Céu. Vou seguir seus conselhos. Se as coisas não forem legais por aqui, ligo de novo pra gente trocar idéias. Dá um beijo em todos aí!

-- Ok, Dudu. Vou dar o beijo em todos. Vou aguardar tua ligação. Enquanto isso, eu vou lembrar de ti com muita saudade, apesar da peça que me pregaste. Teu sorriso, teu abraço, tuas brincadeiras, tua meiguice estarão sempre na minha memória, pelo menos enquanto eu a tiver. Com essas tuas virtudes, duvido que te deixem sair do Céu. Um beijão pra ti. Até sempre!

Tio Armando

Fiz este conto pensando no meu querido sobrinho Eduardo que se foi deixando muita saudade, embora boas lembranças.

Alvesfilho
Enviado por Alvesfilho em 18/08/2006
Código do texto: T219476