Do outro lado do espelho II (variação sobre o mesmo tema)

Sucumbi ao forte sentimento de irritação quando percebi que meu reflexo no espelho do banheiro estava zombando de mim. Fazia caretas, mostrava a língua, agia sempre com intenção de me atrapalhar. Se me punha a fazer a barba, a minha imagem no espelho se virava de costas. Se ia ajeitar o penteado, a imagem se abaixava. Às vezes simplesmente se escondia e recusava-se a aparecer, e meu rosto não se refletia.

O comportamento daquele reflexo rebelde foi me irritando de tal modo que quando mais uma vez fez uma zombaria, num ímpeto de fúria passei os braços para dentro do espelho, agarrei minha própria imagem pelo pescoço e puxei-a para fora. Má sorte minha que ela caiu sobre mim, de modo que iniciamos o combate estando eu em desvantagem.

Ali no banheiro travamos luta corporal rolando pelo chão entre socos e pontapés, expressando nosso ódio recíproco. As circunstâncias me desfavoreciam. Os anos de experiência como meu próprio reflexo de espelho lhe permitiam imitar todos os meus golpes com inacreditável destreza. Era capaz de prever todas as minhas investidas antecipando as respostas, de modo que ocasionou o curioso e inédito fato de que o seu contra-ataque precedia ao meu ataque. Assim, sentindo a enorme probabilidade de derrota, apelei para o recurso que me restava. Chamei por socorro.

Gritei pela minha esposa, dizendo que estava sendo agredido, que ela viesse rápido. Ela, precavida como sempre, apareceu na porta do banheiro armada de um porrete, que não consigo ver explicação de onde ela o tenha conseguido. Mas fiquei feliz em ver que ela parecia armada, o que seria um ponto em meu favor. O que eu não contava é que, além de surpresa com a cena que ela presenciava, ela ficasse também confusa. Sim, ela ficou parada, indecisa, sem saber qual era o verdadeiro eu. E sua dúvida crescia, quando eu e o meu reflexo afirmávamos sermos o eu verdadeiro, e que o outro era o impostor. Era impressionante como ele se parecia comigo, nos trejeitos, na voz, enfim, até mesmo nas palavras que escolhia. Ela, embora atordoada percebeu que deveria tomar logo uma decisão para encerrar o combate. Era preciso desferir o golpe no intruso. De repente seu rosto iluminou-se, como parecendo ter certeza de quem era o falso marido, o qual deveria agredir. Foi nesse instante que senti a pancada na cabeça.

Quase desacordado notei quando me ergueram do chão e me jogaram pra dentro do espelho. Sem forças entretanto, não consegui evitar que o fizessem, nem mesmo fui capaz de protestar. Já por detrás do vidro, ainda consegui ouvir meu maldito reflexo mentir assegurando que ela tinha acertado o impostor, que por pouco lhe salvara a vida. Alimentei em mim o enorme sentimento de frustração por ter que admitir que minha esposa não fora capaz de me distinguir do meu reflexo, depois de tantos anos de convivência.

***

Aqui dentro do espelho é um tédio infinito. A única coisa que me animava era a vingança que eu ensaiava, e nos momentos que meu reflexo vinha olhar-se, se passando por mim, eu lhe aprontava as mesmas coisas que ele fizera comigo, fazendo zombarias, gracejos, impedindo-o de se arrumar, na esperança que ele também se irritasse um dia e me puxasse de volta para o meu mundo, para uma nova briga. As coisas pareciam que iam ter sucesso, até que o infeliz descobriu o espelho da sala, e desde então nunca mais o vi.

Alex de Paula Souza
Enviado por Alex de Paula Souza em 08/06/2010
Reeditado em 08/06/2010
Código do texto: T2308133