O trinta

Ele quer escrever. Cheguei a duvidar desse seu desejo, talvez uma certa cena, um querer ser apenas, mas sou obrigado a reconhecer, ele quer mesmo, aliás mais do que isto, ele necessita, para continuar vivendo, para não cair na mesmice. A questão é que ainda não encontrou um tema, um pretexto, qualquer que seja, para construir o seu texto, para levar avante o seu projeto.

O diabo é que tem lhe vindo alguns assuntos, ideias vagas, não muitos há que se reconhecer, mas tem sido atrapalhados, obstruídos, por vezes trombados, pelo... trinta. Por incrível que pareça! Essa palavra tão longe de se constituir um tema, tem insistido em se interpor em seu caminho, quer dizer, no caminho do seu pensamento em busca de um verdadeiro tema. Cá comigo fico até achando que é algo do gênero obsessivo, tamanha a força e o despropósito da mesma.

Nos últimos dias ele tem procurado privilegiar pequenos fragmentos de situações, ou de sonhos, ou de coisas lidas ou ouvidas, afinal quantas vezes desses fragmentos surgem contos, com começo meio e fim, feito sementes à espera do canteiro e do adubo, mas essa do trinta já é demais. Parecendo tiririca, matando suas sementes.

Se ainda fosse um pouco a mais, poderia se ajustar com a idade de Cristo, data marco para a história do ocidente, coisa aliás grande demais para um simples conto. Mais simples e adequado talvez fosse algo a partir de um “diga trinta e três”, frase tão repetida, com rigor e reverência, no sigilo do exame médico de antigamente, em épocas em que o paciente era auscultado, percutido e tocado em todo o tórax, na procura de condensações, ruídos adventícios, espessamentos ou dilatações pulmonares, e seu diagnóstico em geral surgia dali, naquele instante íntimo de relação humana médico paciente, dispensando exames laboratoriais. Talvez um bom começo para uma história dramática de um adoecer humano, um câncer de pulmão por exemplo, colocando um homem diante do seu fim, lhe dando um prazo fatal em que terá que escolher, priorizar seus atos e investimentos humanos em detrimento de outros, talvez tentando realizar a sua obra se ainda não o fez.

Ou se fosse o trinta ao contrário, matematicamente só valeria o três, o que daria bons motes, um é pouco, dois é bom, três é demais. Afinal quantos triângulos acontecem no dia a dia da vida, e se três é demais no ditado popular, nas relações humanas nem sempre é assim, ao menos por um certo tempo. Chega até a ser muito bom em alguns casos, e tem servido para grandes histórias em livros e romances e filmes. Entre tantos, vieram-lhe o Dona Flor e seus Dois Maridos e o O Amante de Lady Chatterley, magníficos. Tudo isso se ele não quisesse tocar ainda no grande tema cabalístico bíblico da santíssima trindade.

Às voltas com a palavrinha, lembrou-se, piorando sua indisposição, de alguns versos de uma música de sua adolescência, “não confio em ninguém com mais de trinta anos...”. E será que dá prá confiar num texto que não vai além do trinta?

E por falar em confiança, não foi com trinta moedas que Judas traiu Cristo?

Balzac prestou bela homenagem à Mulher de Trinta, desde então conhecida como balzaquiana, idade em que a mulher atingiria o auge da feminilidade, quando a beleza e a maturidade se dosam com vigor e equilíbrio, ao mesmo tempo em que se iniciaria a descida, ou subida, para o envelhecimento.

E bastou sua metade para que a Raquel nomeasse um dos seus grandes romances.

Quando ele era criança achava que a idade do trinta era a porta para a velhice, um pé para a morte, e não se imaginava vivendo além dos trinta. Passar do trinta era uma espécie de completude, sem volta. Depois passou a rubricar os seus livros na página trinta, até ali não havia certeza de terminar a leitura, ainda havia tempo para desistir, poderia não gostar do livro. Porém ao alcançá-lo, podia seguir em paz, certo de que atingiria o fim, não havia mais lugar para volta, para desistência. Talvez também por isso não conseguia gostar dos contos, geralmente com menos de trinta páginas, portanto fugazes, incertos, não confiáveis. Demorou muito tempo para perceber que cada coisa tem o seu trinta, que o trinta de cada coisa tem um tamanho peculiar, leva um tempo que varia diferentemente, o difícil é perceber, identificar, respeitá-lo.

Quando ele tinha trinta anos correu sua primeira maratona, e nesse tipo de prova ocorre algo que talvez possa ser uma coincidência em relação a essa verdadeira luta interna que vem travando para se livrar da palavra intrometida. Dos quarenta e dois quilômetros de extensão, ao se chegar por volta do trinta toda a reserva de glicose do organismo foi consumida, isto para um corredor de preparação mediana como era o seu caso, e o corpo, para continuar correndo, tem que acionar mecanismos metabólicos não usuais, estressantes, para produzir açúcar, provocando um conflito extremo entre o corpo e a mente, levando muita gente a desistir naquela marca. Porém ao ultrapassá-la não há como parar mais, se segue feito autômato, indiferente à dor, ao frio, à exaustão. Foi assim nas suas três maratonas.

Aliás, como está sendo difícil para ele dar continuidade ao seu texto, será que se esgotou sua reserva de glicose com que vinha escrevendo os anteriores?, inda mais que jamais teve muito preparo físico como escritor, sua reserva glicídico-temática sempre foi precária, o que dirá agora se acaso atingiu a marca do trinta, terá que buscar novas alternativas, novos caminhos para se alimentar, talvez a partir do mais efêmero, do mais aparentemente insignificante. Tudo lhe poderá servir de pretexto.

Tirando raiva, ira nata, tornando-se artista.

Menos mal, de alguma forma ele conseguiu, aliviou tanto a sua necessidade de escrever, e quem chegou até aqui pode comprovar, quanto a vontade intrometida da palavrinha em se expor, ao menos em parte. Me parece que ela desejava se ver apresentada em trinta argumentos, mas isso ele não conseguiu, ou não se deu a tal trabalho.

E depois do trinta, não haverá mais volta? Certo é que continuará empurrando a pedra até o topo da montanha, e de novo, e sempre, até o fim. Talvez, assim como só se pode falar de um fato, depois de ocorrido, o seu trinta já tenha ficado lá atrás. Ou não, como um sonho a ser sempre perseguido, o seu trinta jamais possa ser alcançado, para manter nele vivo o escritor.