Medida Preventiva de Caráter Provisório

Quem passou por aquela localidade num determinado período da história, imaginou sem dúvida ser uma cidade fantasma. Se por um lado havia por todos os cantos casas, estabelecimentos comerciais, prédios públicos, praças, como uma cidade qualquer, por outro lado não se encontrava qualquer alma viva pelas ruas. Todos os prédios, fossem residenciais, comercias, públicos, privados, estavam trancados, e não se via sinal de ninguém em canto nenhum, como se todos os habitantes tivessem abandonado o lugar, ou estivessem mortos. Porém, a impressão de cidade fantasma resultava enganosa, pois não era esse o caso. Tratava-se de uma história muito mais curiosa, que somente muito depois se teve notícia, e que aqui se relata em resumo.

Tudo começou quando o período da pena aplicado a um determinado preso já tinha se esgotado. Chegara o tempo de devolvê-lo às ruas. Um promotor de justiça recorreu ao juízo alegando que se tratava de um delinqüente altamente perigoso e, solto, representaria perigo à sociedade. Após todas as proposições jurídicas, o magistrado competente decidiu consultar um psicólogo para ajudar na avaliação do caso.

O psicólogo, doutor renomado de uma grande universidade, pediu um tempo pra estudar a situação. Após fazer pleno levantamento dos fatos, e depois de uma análise minuciosa das condições mentais do detento em questão, escreveu ao Juiz, dizendo que foram identificados no indivíduo distúrbios mentais graves, provenientes de danos neurológicos, associados a traumas e abusos sofridos na infância, o que caracterizava o cidadão com propensão a um comportamento violento. Desta forma, aconselhava que o mesmo deveria ser mantido apartado do convívio social por representar real período aos cidadãos de bem. Por fim, dizia o doutor que os estudos não tinham caráter definitivo, e que ele ia avançar nas pesquisas para dar um parecer conclusivo. O juiz por sua vez, convencido pelo laudo médico, e evocando sei lá quais artigos da lei, determinou que o réu permanecesse recluso, pelo menos até que houvesse o parecer final do psicólogo, por meio de uma determinação que nomeou Medida Preventiva de Caráter Provisório - MPCP. No meio do despacho o magistrado explicava que, como o próprio nome dizia, a medida tinha um caráter preventivo, já que individuo, conforme parecer técnico, representava risco de práticas de novos crimes, e era mais salutar evitar um crime que ter que puni-lo depois de ocorrido. Dizem alguns, que o erudito juiz até escrevera no despacho o popular adágio “É melhor prevenir que remediar” (grifo nosso).

O professor havia prometido na correspondência enviada ao Juiz prosseguir suas investigações científicas acerca do caso em tela. E assim o fez. Dentro de alguns meses enviou ao juiz uma tese recheada de estatísticas alarmantes, com fundamentações bem conclusivas, demonstrando por A + B que quase na totalidade dos criminosos era reincidente, com provas convincentes de que o cidadão que cometia um crime, quase sempre cometia um segundo, e um terceiro, e sucessivamente. Desta forma, para surpresa geral, não só reafirmava que aquele detento fosse mantido preso definitivamente, como também recomendava nenhum preso deveria mais ser liberado, visando à segurança da sociedade, por que as pesquisas deixavam bem claro que provavelmente iriam voltar a praticar os atos criminosos, e mantendo-os reclusos, muitos crimes seriam evitados. Os números demonstravam isso, dizia o relato do professor, e ignorar tal evidência seria expor a sociedade ao risco. Entretanto ressaltava que o relatório ainda não era conclusivo, de tal feita que o avançar das sondagens poderia apontar para dedução diferente. Foi um choque ao meio jurídico e legislativo tal recomendação. Mas ela parecia tão clara e bem fundamentada que não deveria ser ignorada. De forma que os juristas e legisladores uniram forças, e evocando legislaturas há muito enterradas e jurisprudências que nunca existiram, deram lá o jeito de garantir uma outra Medida Preventiva de Caráter Provisório estabelecendo que todo condenado nunca mais fosse solto, em benefícios do cidadão de bem, pois de acordo com o que estudos científicos asseguravam, como cometeram um crime, quase certamente cometeriam outro. A medida valeria até que posterior laudo médico orientasse o contrário.

A essa altura o doutor psicólogo dedicava-se com tal afinco ao estudo das mentes criminosas, suas causas, suas características, suas variantes, que em poucos meses encaminhava à suprema corte um novo parecer, ainda mais chocante, mais assustador, recheado de observações, conclusões, teorias e estatísticas, conjecturas, que mais uma vez deixava a comunidade em choque. Comunicava agora o professor uma nova descoberta, e fazia com tamanha convicção, que não houve qualquer autoridade que ousasse questionar-lhe. Dizia ele agora, utilizando um novo termo, qual seja, sociopata, que havia indivíduos que já estavam predispostos a um comportamento transgressor e violento, sem qualquer sentimento de culpa ou arrependimento. Tinham um perfil mental e moral muito parecido e pré- estabelecido. A maioria deles não manifesta exteriormente sinal de possuir essas características, o que os tornariam ainda mais perigosos, porque dificilmente se poderia identificá-los no convívio social antes que praticassem o ato criminoso. Representavam um perigosos oculto porém real. Apresentavam um comportamento social normal, mas que entretanto, a qualquer momento eram capazes de explodirem em toda sua agressividade. O pior, dizia o estudo, é que muito ao contrário do que se pensava, esses indivíduos representam uma parcela muito maior da sociedade do que se tem notícia. Era uma bomba relógio prestes a explodir. Entretanto, ele desenvolvera uma técnica de análise psicológica capaz de identificar pessoas com o referido perfil, que tinham predisposição a se tornarem delinqüentes. Dessa forma, as autoridades em polvorosa, decidiram submeter toda a população uma análise psicológica em massa. Aqueles que apresentassem os sintomas descritos pelo Doutor, deveriam ser sumariamente presos, por meio de uma nova Medida Preventiva de Caráter Provisório a fim de evitar que futuramente viessem a cometer atrocidades. Tudo isso para garantir a segurança dos cidadãos de bem e o bem estar social. A MPCP deveria vigorar até que novas conclusões do estudioso aconselhassem o contrário.

Depois das medidas preventivas emergenciais, constatou-se que 10% da população fora encarcerada. Mas aí veio o golpe de misericórdia.

Não tardou muito a chegar um relatório ainda mais aterrador do Professor. O professor descrevia uma situação muito mais que alarmante, uma situação na verdade desesperadora. Já nas primeiras páginas do novo documento ficava dito que os perigos eram muito maiores que se imaginava a princípio. Ele havia agora observado que dentre as pessoas que praticavam crimes, nem todas tinham o perfil patológico de psicopata ou sociopata, fato que o levou a concluir qualquer pessoa, mesmo sem nenhuma disfunção cerebral ou desvio psicológico, por vezes, por força das circunstâncias era levada a praticar crimes, alguns hediondos. Desta forma ele, o Doutor psicólogo, havia provado por bases científicas, comprovadas pelas estatísticas, que todo ser humano em si poderia vir a praticar um ato criminosos (de gravidade indeterminada), ainda que não possuísse nenhuma predisposição psicológica ou patologia mental de delinqüência. As palavras no fim do relatório endereçado á corte de justiça tinham um tom desesperado, e diziam que o perigo estava por todo o lado. As última frases eram “pelo que fica provado de acordo com esses minuciosos estudos, Excelência, o perigo está por todos os lados. Nesse momento a pessoa mais próxima a nós ( incluo nisso nossos filhos e esposas), podem vir a se tornarem nossos próprios assassinos), ainda que elas mesmas nem imaginem isso. Todo ser humano é um criminoso em potencial, e hoje com desespero vejo que qualquer pessoa que se aproxime de mim representa um real perigo à minha integridade e à minha vida. Não suporto mais o convívio social, que nada mais é que uma exposição voluntária ao risco de morte ”. O juiz ao ler o relatório foi tomado de um terror tão grande que decidiu que não ia retornar mais pra casa. Não se sentiria nunca mais seguro, nem mesmo no seu próprio lar. Martelavam-lhe na cabeças as palavras do psicólogo: o perigo está por todos os lados... incluo nisso nossos filhos e esposas... Todo ser humano é um criminoso em potencial. Sabia que era preciso tomar uma decisão preventiva com extrema urgência. Deveria reunir todo tribunal e também os legisladores....mas não teve coragem...eram todos criminosos em potencial, não poderia aproximar-se deles. A Solução foi uma teleconferência, cada um em sua própria casa.

A decisão foi rápida.

Foi baixada uma lei que todos os cidadãos, sem qualquer distinção ou privilégios, deveriam ser imediatamente presos, a fim de que fosse garantida a ordem e a segurança social para o futuro. Foi ordenado aos policiais que depois de prenderem todo mundo, prendessem também a si próprios na cadeia, pois eles mesmos, ainda que não soubessem, tinham possibilidades matemáticas comprovadas por estudos sérios de ser tornarem um criminoso eventual. O juiz e os legisladores cumpririam por sua vez prisão domiciliar. Na casa do juiz foi determinado que cada membro da família ficasse em seu quarto, estando expressamente proibido de dele sair sob a pena de ir para o regime fechado, ou seja, a cadeia pública. Dessa vez era uma Medida Preventiva de Caráter Permanente. Só assim a segurança dos cidadãos poderia ser garantida.

Assim, voltando aos visitantes que passaram por aquela localidade naquele período, perceberiam que não se tratava de uma cidade fantasma se fossem a um certo lugar, onde veriam muita gente: o presídio.