O Dom Quixote de Allan kardec e Miguel de Cervantes

É muito comum escutarmos por aí que a arte imita a vida. Mas também não é nenhum despropósito pensar que em alguns casos é a vida que imita a arte. Bastante demonstra a veracidade dessa segunda possibilidade o fato que se passou com o pobre do Menezes por exemplo.

Esse Menezes a que me refiro era um grande amigo, muito culto, amante da literatura e adepto do espiritismo. Depois de aposentado, não tendo mais em que empregar seu tempo dedicou-se com tamanho fervor a essas duas paixões, que detinha-se na leitura dos clássicos e de livros da doutrina de Kardec durante todo o período que passava acordado. De tanto que se entretinha nessas coisas, que pouco a pouco começou a inserir uma coisa na outra, e fez tamanha confusão, que acabou por misturar a ciências das letras com as teorias da religião, fundindo tudo numa coisa só.

Em certo tempo então, o infeliz pôs-se a crer ser ele próprio a reencarnação de Dom Quixote de La Mancha, e acreditou de tal maneira nessa aberração, que não houve qualquer teórico, seja literário ou kardexista, capaz de convencê-lo de que o personagem de Cervantes era um ser fictício e, portanto, sendo desprovido de espírito, não poderia reencarnar. Inútil a argumentação. O Menezes cismou de tal forma que era a reencarnação do lunático fidalgo espanhol, que fora impossível dissuadi-lo disso.

É claro que despertou uma certa inquietação na família aquela insistência do Menezes e dizer-se o espírito de Dom Quixote retornado à terra, mas por fim tomaram por menos, uma vez que em avançada idade, não era nada extraordinário que ele tivesse certos devaneios. Mas a preocupação começou a crescer quando o Menezes insistia em que tinha deixado pendências na sua vida passada, a vida de cavaleiro andante, e que deveria pôr-se agora a realizá-las, a fim de libertar sua alma daquela frustração. Nesse propósito colocou um anúncio no jornal oferecendo um bom valor como oferta pra um cavalo puro-sangue.

A família tomou-se de aflição com essa atitude do velho, imaginando que ele realmente pudesse ser capaz de querer se fazer de cavaleiro, e, montado no garanhão saísse por aí em busca de aventuras para impressionar sua Dulcinéia. Isso bem entendido, porque ainda que eu tenha omitido esse detalhe, o pobre do Menezes já havia eleito para si uma Dulcinéia. Possuía ele em sua biblioteca uma edição de Iracema, de José de Alencar, cuja capa era ilustrada com uma pintura que representava a personagem índia que dava título à obra. Pois o Menezes olhando aquele retrato da Iracema, logo disse que era uma fotografia da sua Dulcinéia. Ele afirmava que ela também estava reencarnada e morava lá para as bandas de Tocantins. Mas, retornando aos acontecimentos, a família fez lá suas peripécias e finalmente conseguiu embargar a negociação do cavalo.

O coitado do Menezes ficou desolado, contudo, não se deu por derrotado, afinal, um cavaleiro não se deixava vencer facilmente. No auge da alienação, meteu uma panela na cabeça afirmando ser o elmo encantado, numa perfeita caricatura envelhecida do Menino Maluquinho, pegou uma vassoura que lhe parecia a mais valorosa das espadas, tomou uma bicicleta como montaria, e partiu em busca das mais engenhosas aventuras, disposto a enfrentar temidos perigos, para honra de sua amada donzela, como digno, valente e honrado cavaleiro andante que era.

Outro dito bem comum por aí é aquele que assegura que desgraça pouca e bobagem. Pois bem. Para fazer jus a esse provérbio, eis que quando partiu o Menezes em seu ofício da cavalaria andante, por infeliz coincidência, encontrou pela rua um bêbado, com quem estabeleceu um diálogo, provavelmente sem pé nem cabeça, mas que no fim da história pôs o bebum na garupa da bicicleta, e seguiram os dois rua abaixo. Soube-se depois que o Menezes havia prometido ao pinguço nomeá-lo secretário municipal em um distrito lá em Fernando de Noronha onde dizia-se futuro prefeito, e foi assim que convenceu o ébrio, que pouco conhecia a geografia política brasileira a segui-lo na jornada como escudeiro.

A história que se passou daí pra diante só conheço em resumo. Mas foi relatado que Dom Quixote e Sancho Pança tupiniquins, o lunático e o pinguço, seguiram de bicicleta pela cidade, um com uma vassoura, o outro com uma garrafa de água ardente, aprontando as mais curiosas aventuras que aqui relatarei tão logo tenha tempo de transcrevê-las.