POST MORTEM

Histórias de sexagenários geralmente abordam o tema da morte. Enquanto sugam com maior intensidade a luz e o ar, o que provoca a revitalização instantânea de antigos neurônios, fazendo aflorar antigas lembranças, sente-se o bafejar da indesejada, vislumbram-lhe a multiforme aparência, tratam-na como uma mulher da qual é impossível fugir-lhe dos braços. Minha última conversa com Rafael não foi diferente. Enquanto esperávamos um telefonema da agência bancária sobre uma operação de câmbio, resolvemos molhar a garganta em um modesto restaurante situado na esquina da Rua A com a Rua B. Rafael era jornalista e havia concluído seu curso na Universidade Católica, um complexo educativo localizado bem próximo de onde estávamos. As ruas vestidas pelas sombras dos oitizeiros traziam boas lembranças.

- Ali na Mansão do Fera declamei Neruda e Vinícius, disse ele apontando para o prédio transformado em comitê político. Eu me lembrei da turma em volta da mesa repleta de cervejas (havia estudado também um ano de jornalismo com ele). Frases soltas circularam atraídas por algo que lhes desse sentido.

- Rafa, a professora de literatura elogiou teu poema! Disse Mônica, a mais gostosa.

Ele olhou para mim. Queria que lhe falasse sobre o assunto, pois havia faltado a aula.

- Ela adorou teu texto sobre o Grande Solitário, foram minhas palavras.

Como agora, seus olhos se encheram de lágrimas. Da poesia saltamos para os escritores latino-americanos e mergulhamos no realismo fantástico de Gabriel Garcia Marques.

- Ninguém escreve ao Coronel, visse como termina a história?

- Merda!

- Traduz bem o clima de impotência diante de uma burocracia sufocante. Um casal de velhos apodrecendo.

- E já aparece ali o coronel Aureliano Buendia que vai aparecer no Cem Anos de Solidão.

- Lembrei de meu conto Grãos de Terra Sobre, onde falo da morte de minha avó, emendou.

Senti a respiração no meu cangote. O cheiro de oiti foi substituído por um forte aroma de jasmim. Um prólogo do assunto que estava por vir:

- De que jeito gostarias de morrer?

Perguntou-me quase a queima-roupa. Numa fração de segundos todos os mortos conhecidos desfilaram diante de mim: Liliquinha com seu dedinho indicador preto, queimado pela ação da eletricidade (meu pai deixou um bocal ligado sobre a mesa): meu avô com o crânio rachado ao pular do trem; o pai de Bitonha, um amigo de infância, assassinado com várias facadas; Minha tia Penha fulminada por um derrame cerebral (disseram que foi desgosto por ver a filha única se entregar a um malandro); meu amigo Joca, um soldado do corpo de Bombeiros, afogado numa garagem subterrânea ao efetuar uma operação de salvamento por ocasião da enchente de 1975; minha avó vitimada por um câncer de pulmão, aos setenta e sete anos; minha irmã morta por haver ingerido comprimidos indevidos, e por fim minha mãe vítima também de derrame cerebral após uma operação para lhe estripar um nódulo canceroso. Tantas maneiras de morrer. Como escolher? Acabei optando pela morte rápida.

- Gostaria de morrer dormindo.

- Como meu pai, disse ele aumentando as lágrimas.

Tomando carona nas emoções dele vi Seu Vavá (Ivanildo Rocha) sorrindo para mim. “Parecia me chamar. Fui me deitar enquanto Irene preparava a comida. Estava tudo normal. Apenas um pequeno cansaço natural, coisa de velho, mesmo. De repente senti o coração fechar, ainda abri os olhos e tentei chamar Irene, mas não consegui. Faltou-me o ar e fui apagando, apagando. Acordo sempre quando lembram de mim, depois volto para meu descanso eterno.”

A voz do filho fez desaparecer os mortos.

- Não, não quero morrer dormindo. Morte bonita foi a da minha avó. Todo mundo ao redor, até Cristina minha noiva na época. Cheguei perto dela, chorando, ela então perguntou está chorando? Está todo mundo chorando vovó. Besteira! A gente vive pra isso! É sua noiva? Tem um cheiro bom, mas não é com essa que você vai casar. Uma a uma chamou as irmãs e se despediu.

- Mas porque estamos falando de morte? Perguntei como se fosse possível sair daquele abraço existencial.

- É que tive um sonho esta noite impressionante. Meu pai, meu tio Sílvio, e minha avó apareciam diante de mim. Viemos buscá-lo!

Olhei as copas dos oitizeiros aparecendo por trás de sua cabeça. O vento balançava os galhos e feixes de raio de sol tentavam perfurar o manto das pequenas folhas. Pequenos grupos formados por moças e rapazes conversavam em frente da entrada para a Universidade. Decerto discutiam Darwin, ou as implicações da descoberta da partícula de Deus, ou ainda davam os últimos acertos sobre a estratégia para conseguir uma boa nota de matemática, o terror dos humanistas. Entrei no sonho. Os três mortos ao redor do meu amigo. Sentados? De pé? Talvez só a cabeça de cada um, flutuando em uma névoa azul, ou então vestidos com vestes brancas ao redor da cama, estendendo os braços para arrastá-lo para o além.

- Os três afirmaram que chegara a hora de eu ir com eles, o que rebati que não concordava com aquela idéia.

Risos.

O fato de haver uma hora, um dia, uma data para ir beijar a terra dos campos santos não se coadunava com as nossas opiniões.

- Estou tranqüilo. Não vou morrer agora. Foi apenas um sonho.

Quis adiantar para ele que certa vez sonhei e o sonho se realizou, mas o sonho fora enigmático, interpretado por um amigo. Então você estava numa praia olhando diversas pessoas desenhando partituras? Isso mesmo. De repente alguém gritou: Mandraque! E todos ficaram imóveis. O ser que havia gritado se aproximou dos desenhos e rabiscou algo nelas. Em seguida estalou os dedos e desapareceu no ar. As pessoas começaram a brigar acusando uns aos outros pelo estrago na partitura. No meio da confusão olhei para o alto e vi um grande elefante caindo do céu sobre o mar. Rapidamente gritei para todos que corrêssemos para os lugares mais altos, pois quando o animal se chocar com as águas vai gerar um maremoto e muita gente pode morrer. Meu irmão, disse meu amigo segurando-me o ombro, isso é um grande escândalo que vai acontecer na igreja. E é na área da música. Um mês depois um presbítero se envolveu com a mulher de um dos integrantes do coral da igreja. Até ai pode parecer coincidência, mas ao constatar que o presbítero transgressor era o mais gordo dos gordos existentes e com uma função de destaque, percebi que eu tinha sido avisado pelo sonho que o escândalo aconteceria. Por isso nada contei ao emocionado jornalista. Mas mesmo assim prolonguei o assunto, já acostumado ao cheiro de jasmim.

- Sabe o que acho? A morte é o fim de um ciclo. Tua avó tinha razão. Tudo que nasce morre.

- O problema é o que vem depois. Não sabemos de nada e acho que nunca vamos saber, só quando chegarmos lá.

Eu ia responder alguma coisa quando o celular tocou. Era o gerente do banco avisando que a transação bancária poderia ser feita, porém só no dia seguinte.

-Eu não disse aquele otário? Agora pode ser que tenhamos que pagar mais, caso o dólar aumente amanhã.

- Ou pagar menos se o dólar baixar. Vamos tomar a última que a noite se aproxima.

Os carros já passavam com as laterais acesas. As sombras começaram a recolher as folhas dos oitizeiros. Seguimos pela Corredor do Bispo na intenção de apanhar algum ônibus que nos levasse para o centro da cidade. Tudo foi muito rápido. Não vi a moto avançando por trás da fileira dos veículos. Antes do choque ainda me lembrei do sonho de Rafael.

henrique ponttopidan
Enviado por henrique ponttopidan em 21/08/2010
Reeditado em 06/08/2011
Código do texto: T2450321