Jet Lag - O Subconsciente da Dor

Introdução ao Lar Doente

Como explicar, de maneira lógica, os estranhos acontecimentos na vida de Gustavo Jorge? E caso se encontre alguma resposta, seriamos capazes de entender? Pois bem, as vezes a realidade contraria a razão. Mas não estaria a 'realidade' distorcida, ou então enganada ao discordar da razão? Ou seria o contrário? Nos encontramos num empasse difícil de resolver, uma vez que estes dois valores são, profundamente, culturais. Não podemos negar que para determinada cultura conversar com mortos é um ato normal, quanto para outra é uma ação improvável e quem o diz fazer é um louco, maluco.

Mas para melhor entender estes estranhos acontecimentos, é preciso que se saiba algo sobre seu passado. Alguns tormentos acondicionaram sua personalidade a ser o que era até alguns momentos. Traços do passado estão agora expostos numa doença, em número indizível de tanta dor e insatisfação. Como em qualquer história, um começo é preciso para que se faça entender meio e fim, tendo exposto nessa breve introdução algumas características e pontos cruciais ao enredo desta história, é digno começar contanto sobre suas primeiras alegrias, ou talvez sonhos.

I - O Lar Doente

Lívia estava nua sobre a cama, da janela entravam raios de luar que salientavam as curvas do seu corpo enegrecido pela noite. Da janela aberta entrava uma brisa de ar, capaz apenas de mover a leve cortina branca e os fios do cabelo de Lívia, que balançavam frente ao rosto. A pele branca reluzia onde era tocada pela luz da lua, nas partes contrárias era escura, como se fosse um vulto, uma sombra. Seu seio se mostrava firme e pequeno, iluminado em metade pela lua. A cama levemente desorganizada era aconchegante para uma noite de volúpia, de prazer, ela deitada imóvel, era a figura pálida do amor, um sentimento absurdo de paixão expresso em cada imagem deste quadro. A medida em que se aproxima da bela deitada percebe seu rosto numa ansia de prazer, todas as formas convergindo para a mesma busca. Encosta sua mão no ombro dela, não recebe nenhum movimento de resposta. Apenas a pele fria. Seus dedos se arrastam até o pescoço fino, nota alguma saliencia naquela pele. Aproxima seu rosto do corpo frio. Afasta o cabelo com calma, e com mais calma ainda, Lívia permanece imóvel. Percebe então a marca de sua mão no pescoço dela, um calor lhe sobe do estômago, como se queimasse sua barriga, as pernas tremem e em um segundo parece entender toda aquela cena. Com pressa vira seu rosto, olha para um rosto sem vida, frio, pálido. Coloca a mão em baixo de seu nariz, não existe ar. Não há respiração. Um pânico toma conta dele e é nessa hora em que olha para as suas mãos e as vê vermelhas, sinal de um recente uso de força bruta. Assassina. Antes que pudesse tomar alguma decisão, escuta passos atrás dele. A porta estava aberta, escuta um estrondo e ela é fechada. Por instantes hesita em olhar para trás, mas quando olha, vê Lívia, nua, vindo em sua direção com uma faca.

- Acorde! Acorde!

"Hãn?", ergue-se num salto e senta na cama.

- Está bem Gustavo?

"Um sonho? Foi um sonho? Mas era tão... Meu deus! Foi horrível", e se pôs a chorar olhando para suas mãos, tão normais quanto as de um bebê que acaba de acordar.

Lívia lhe acode, pede para explicar o que aconteceu, e após saber do sonho, diz algumas palavras de alívio e brincando pede para ele lhe estrangular enquanto transam. Minutos depois, passado o susto, estavam em perfeita harmonia, e era domingo, o dia estava lindo, o jardim florido, haviam pássaros lá fora, para que se importar com um pesadelo?

Arrumou a cama e desceu as escadas para tomar um café. Vestia apenas uma bermuda leve que usava para dormir enquanto Lívia já havia tomado banho, feito o café e vestido uma roupa agradável. Na mesa, trocavam juras de um amor ameno, com jeito de que não pode ser abalado por nada nesse mundo. Uma estabilidade morna que chegam os casais ao completar alguns anos de matrimonio. Mas seria mentira negar o fato de que ainda havia um fogo entre os dois, algo que de certa forma os ligava um ao outro. Este estreito elo, era o que os mantinha juntos, fazendo criar mundos de fantasias e sonhos belos, os conservava em uma estranha felicidade, que as vezes era confundida com ócio.

Sairam de mãos dadas para um fatídico domingo no parque, passos lentos, caminhada leve, aquela estabilidade era tanto no trajeto como na vida dos dois. Sentaram em um banco perto de outros casais. Era o primeiro domingo de primavera, a natureza parecia estar em erupção e quanto mais belo o dia ficava, mais certeza ilflamava nos dois: viveriam juntos para sempre, esta era a verdade. Deles.

Após afagos e mais juras de amor, Lívia notou que Gustavo olhava para duas crianças brincando juntas. Seu rosto era atônito, o olhar ia longe, se perdia no futuro daquelas crianças e retornava para si, como quem pensa no improvavel. Um momento de tristeza tomou conta do casal. Até as mãos, antes juntas, se separaram, indo cada uma para um canto. Gustavo olhando as crianças, Lívia olhando Gustavo, e o futuro incerto surgindo novamente para eles. Voltaram lentamente para casa, o trajeto parecia mais longo e seus pés um pouco mais pesado.

A voz embargada da mulher tristonha falou:

- Gus... ainda tem medo de que eu não consiga?

- Que isso Lívia, tu vai conseguir sim... é só que... não é tempo ainda!

- Talvez não seja só isso...

- Como assim?

- Eu andei pensando - Lívia gaguejou - na verdade tive uns sonhos... sonhos estranhos...

- Sonhos estranhos? - Lembrou do sonho que teve naquela manhã.

- Isso me deixou com mais medo! Talvez... talvez eu nunca consiga! Sempre sonho com mortes, seguidamente estou matando você... ou então...

- Lívia!

Gustavo complacente abraça sua jovem esposa e a conduz aos prantos para dentro de casa. Não se discutiu mais sobre o assunto naquela casa, houve um silêncio mórbido que só foi quebrado quando deitaram na cama:

- Boa noite..

- Boa noite...

E os dois olhos se fecharam pesados, talvez com medo de não abrir mais, ou com medo do que iriam ver desta forma.

II - Um Psicólogo Para Dois

Na manhã seguinte Gustavo Jorge vai até a casa de um amigo psicólogo sem contar a sua esposa. Faz isso na melhor das intenções para não complicar mais as coisas, para fazer com que as coisas continuem "normais" dentro de casa, para que "não exista" problema.

Logo ao chegar é convidado a sentar no clássico divã. A sala permanece calada, quase muda. Gustavo fica calmo a ponto de ouvir sua respiração, que é ofuscado pelo som dos passos do psicólogo que vem em sua direção. O homem estranho senta na frente de Gustavo que já esta de olhos fechados, com uma expressão serena de quem dorme um sono leve. Aos poucos a respiração fica mais leve, e os olhos se fecham mais pesados, ele retira um cachimbo do bolso. Dá duas tragadas e sorri...

Antes da fumaça tocar seu rosto, Gustavo sente um calafrio na espinha.

Um clarão!

III - As Dores Reais

Ao acordar naquele banheiro sujo, que fedia como o útero de um demônio apodrecendo em enxofre, Gustavo Jorge se descobre envolto em sangue, em quantidades suficientes para manter um cavalo vivo. Sente um estranho alívio, como de quem acorda de um sonho ruim e ainda tem metade da noite para dormir. Um súbito pensamento lhe invade as idéias "Lívia... nosso bebê..." e começa se sentir estranhamente atormentado por aquela ideia. Aos poucos se levanta e descobre que o banheiro além se sujo, manchado de sangue, fedorento e quebrado, tem uma porta de ferro enferrujada. A cena lembra algum filme que ele viu no passado, porém mais importante que isso é aquele pensamento de encontrar Lívia e seu filho. Antes de começar a se perguntar porque e como foi parar ali, ele abre a porta e se encontra em um enorme corredor escuro que parece não ter fim. Aos poucos seus olhos se acotumam aquele escuro e ele começa a perceber manchas na parede, sujeiras no chão, goteiras sobre sua cabeça. Começa então a tentar lembrar de onde estava noite passada. O esforço faz com que sua cabeça começe a doer, e seus olhos se contraem em estranha vertigem. Cai de joelhos, se sentindo tonto, vê ao seu redor as paredes se afastarem e depois se aproximarem, como numa estranha dança muda. Aumenta um zunido em seus ouvidos, o som entra na sua cabeça e é como se tivessem cem abelhas elétricas dentro dele, fazendo um estranho ritual de barulho e baderna. Sente algo preso na garganta e começa a lhe faltar ar, com muito esforço consegue tossir e espirra sangue quente em toda sua mão. Fica um gosto quente de ferro na boca, seu sangue é preto, denso, quase como petroleo. Aos poucos volta ao normal. A lembrança também surge.

Noite passada, recorda ele, estava no hospital com sua mulher que chorava aos prantos de dor. Que dor era aquela? Comparável talvez a dor que sentia agora, mas não, era algo diferente. Lembrava de algo, algo que não explicar o que era.

Um apagão! Caiu no chão!

Foi como se tivessem batido na sua cabeça, mas não havia nada nem ninguém ali. Também não teve dor, apenas um apagão, parecia que a lembrança tinha um preço, sua sanidade talvez fosse esse preço. Mas levantou, ainda tonto com o ocorrido, mas tentando entender o porquê das coisas, que ficavam cada vez mais desconexas.

Seguiu caminhando pelo corredor que ia ficando cada vez mais estreito e escuro, chegando ao ponto em que não conseguia mais nem identificar seus próprios pés. Foi quando então encontrou uma porta, muito parecida com a qual saiu do banheiro e entrou no corredor. Forçou-a para dentro e ela parecia não querer abrir, mas sentia que não havia nada obstruindo a passagem, era sim uma espécie de força magnética que ali operava. Gustavo Jorge, nosso herói desencontrado, sentou no chão, parecia desolado, sem forças para continuar. Não podia lutar contra sua mente, não podia vencer os esforços fisicos daquele lugar, nem ao pouco sabia que lugar era aquele, apenas uma leve lembrança de um hospital, as paredes brancas, as cadeiras em seus lugares, as enfermeiras, os médicos, agulhas... agulhas?

Agora uma dor lancinante, como a de um soco no pulmão. Gustavo, que estava sentado, cai no chão batendo com o rosto no piso gelado.

"Há algo de errado comigo?" pensa ele enquanto esta babando sangue no chão sujo.

O ar fica pesado, dificil de respirar. Seu pulmão parece ter se fechado e uma pressão começa a subir para a cabeça. Seria qualquer coisa, menos a morte, disso ele tinha certeza e faria qualquer coisa para descobir o "que" era aquilo.

Levantou com muita dificuldade, as pernas pareciam pesar dez toneladas. Segurou firme na parte alta da porta, manteve as costas contra a parede. As pernas voltaram a ceder, caiu na porta. Ela abriu finalmente.

O rosto bateu no chão frio, seus olhos custaram para abrir. Aos poucos foi retomando a consciencia e com isso a dor. Ergueus os olhos e olhou ao seu redor. "Impossível!". Uma surpresa surreal, estariam seus olhos brincando com a realidade?

III.I - Dab Tsog ou o Apertar do Demônio

Estava de volta no banheiro onde havia acordado, no centro sujo daquele pequeno espaço estava Lívia, morta, segurando um bebê no colo. Ela usando um vestido branco extremamente sujo e rasgado em muitos lugares coberto de sangue, os braços moles amparavam um bebê que se movia lentamente e emitia algum som primitivo. Tomado por um espanto sobrenatural ele avançava em passos lentos, sentia as pernas tremerem, o coração bater forte, talvez forte demais. Quanto mais perto estava dos dois, mais seu coração batia forte. Escutava seus batimentos cardíacos, eram mais rápidos do que os de um pássaro. Olhou para o peito e se notava uma saliencia bem no lugar de seu coração, no lado esquerdo do peito. A dor aumentava e ele chegava mais perto da criança, próximo de seu rosto. Levou a mão no peito, estava prestes a explodir, já havia paralisado suas pernas, era dificil se mover ou respirar. Caiu no chão, ao lado do corpo de Lívia. Puxou o braço frio da mulher e fez com que o bebê caisse para trás, vindo lentamente para perto dele, escorrendo pelo sangue no vestido. O pulante coração deu um salto e parou. Seus olhos permaneceram aberto e ainda restava alguma consciencia, estava paralisado, era um estado que lembrava o "Dab Tsog", ou "Apertar do Demônio", na cultura nômade do sul da China. A criança cai no chão, seus olhos despertam em um vermelho infernal, há sangue em todo o corpo deste pequeno de pouco mais de 50 centimetros. Os olhos apavorados de Gustavo vêem o bebê deslizar vagarosamente até seu corpo, o manchando de um sangue ainda quente. Paralisado ele pressente uma agonia mortal, como se a guilhotina viesse em camera lenta cortar sua cabeça e ele não pudesse fazer nada. O bebê sobe com muito esforço para cima de Gustavo que não pode fazer nada, senta sobre as suas costas, logo atrás do pescoço e ali ele permanece, com um olhar vermelho banhado em sangue. Os batimentos cardíacos voltam a acelerar de maneira sobrenatural. Um sorriso na boca do bebê diabólico sentado sobre Gustavo. A velocidade aumenta, os olhos quase saltam do rosto, ele sente o pavor percorrer frenéticamente seu corpo, bombeado por um coração desenfreado. E é só o que sente seu corpo vegetativo, pavor, apenas pavor. Um ultimo piscar de olhos.

O coração explode. Gustavo não abre mais os olhos, um sangue espesso escorre em sua face...

No fim, se vê escrito na testa do bebê "Dab". O demônio permanece ali sentado sobre Gustavo Jorge, que finalmente teve o coração implodido.

Novamente um clarão...

IV - Estranho Assombramento

Um leve desconforto começa a percorrer o corpo de Gustavo Jorge que ainda está desacordado com a cabeça sobre o volante. Os vidros começam a ficar embaciados por conta da falta de oxigenio ali dentro. Seria estranho terminar assim nossa história, um homem com problemas, que esconde a infelicidade numa ficção de realidade, morrer sufocado no carro após voltar do trabalho. Mas ele não está morto, não ainda. Tem os olhos abertos, que permanecem sem piscar e a respiração lenta, como de quem dorme um sono profundo. Aos poucos, muito lentamente ele vai retomando os movimentos do corpo, como uma estátua de cimento que aos poucos ganha vida. O rádio permaneceu ligado, ou foi ligado por outra pessoa que ali esteve, porque estava num volume baixinho, mas ainda podia se ouvir uma voz distante e característica falando:

"Acorde de um leve sono, viva dentro de seu próprio sonho! Não era a felicidade que você buscava? Mas que preço será que você estará disposto a pagar? Ninguém conhece seus limites até testá-los, não é mesmo? Mas eu aposto que se você acordar deste sono, vai despertar para um sonho que só será bom se você decidir, afinal, a escolha sempre esteve com você! Sei que as palavras que você fala, não são as palavras que você desejaria falar, que existe algo preso dentro de você. Não é sempre assim? Pegue um revólver, coloque uma bala apenas no tambor e gire com a força que sua vida vale. Depois mire na sua testa e conte até três antes de puxar o gatilho. Não é um bom método para se ver até onde pode ir? Depois que você puxar o gatilho só restarão duas sensações, a de ouvir o "clack" da arma falhar e então uma onda de pânico e desespero tomar conta do seu corpo, justamente por continuar vivo, por sobreviver a este demônio de ferro, seguido de uma leveza abstrata de ainda poder sentir o oxigênio ou então, a maior sensação de alívio que pode se ter, a de ouvir seu dedo apertar o gatilho lentamente e então um som forte estourar ao pé de seu ouvido e então a inconsciencia, que não deixará você saber se falhou ou se atirou. Mas por enquanto, acorde... seu sono se torna leve, cada vez mais leve..."

Depois disso o rádio se calou e Gustavo Jorge foi despertando calmamente, até que o rádio voltou a falar, dessa vez informava apenas o horário:

"São 20 horas e 15 minutos, hoje é terça-feira, dia 18 de julho..."

Ouvindo isto ele finalmente acorda. Sente a cabeça pulsar levemente sobre seus ombros e uma estranha sensação de estar no lugar errado, como quem dorme no metrô e perde a estação. A mente confusa começa a desmembrar algumas informações e tenta esboçar algum raciocínio lógico. O locutor no rádio volta a repetir:

"São 20 horas e 17 minutos de uma terça-feira gelada de julho, 18 de julho!..."

Ele sai do carro e vai até a porta de sua casa, está cansado como se tivesse trabalhado o dia inteiro, mas parece ter algo flutuando na cabeça, como um sonho estranho que não se consegue relembrar. De qualquer forma ele entra em casa, num alívio por tudo permanecer "igual"...

- Ah que bom que você chegou heim Gus? O Dab tava chamando por ti, vai ali no quartinho dar um oi pra ele... ah, ja aproveita e leva isso aqui pra ele... eaí, como estava o trabalho hoje? Ficou até tarde por causa do teu amigo aquele, passou lá de novo? Ah, antes de levar a mamadeira pra ele, me alcança ali o leite... Gus? O que foi?

Era como se estivessem jogando com a mente do pobre infeliz. Permaneceu calado, olhando Lívia com olhos de desespero. Não havia nada de errado naquilo, ele apenas se sentia confuso, um pouco enjoado, pensou que o problema fosse com ele. Imaginou estar apenas um pouco indisposto, talvez estivesse um pouco com febre e isso estivesse alterando a suas percepção das coisas.

- Não... está tudo bem, desculpe! Só estava pensando nas coisas lá do serviço... Ah, deu uma saudade de ti, me dá um beijo antes!

De um jeito ou de outro, as coisas fluiam, e por mais que ele tentasse se recordar de algo, esse 'algo' não vinha, porém o mais estranho eram as coisas que ele não lembrava, mas ao ver, ou serem mencionadas, brotavam em sua memória como se realmente aquilo existisse.

Pegou a mamadeira e se dirigiu ao quarto do bebê. No caminho foi reconhecendo a nova decoração da casa, mas o estranho era que se tentasse se recordar alguns instantes atrás, não lembraria de nada. Parou na porta onde Dab estava. Tentou se lembrar do rosto de seu filho ou ao menos da idade, mas como esperava não conseguiu. Sentiu um leve mal estar com isso e novamente se sentiu desorientado, como se novamente tivesse perdido a estação do metrô.

Pôs a mão trêmula na maçaneta da porta, que tinha detalhes infantis, e antes de girar levou ao mão ao bolso. Um estranho objeto de ferro, que agora pesava e se fazia notar. Sentiu um calafrio percorrer sua espinha no mesmo momento em que o ferro se mostrou também gelado. Engoliu em seco, como quem prevê um pesadelo. Logo retirou o objeto do bolso, segurava-o por um cano de ferro, que tinha um brilho difuso. Confirmou suas expectativas, um revólver de ferro pesado. Assustado levou a mão no outro bolso e viu outra surpresa, uma bala. Apenas uma. Algo veio a sua cabeça, como a lembrança de um sonho torto, mas não conseguiu concretizar. A casa parecia silenciosa, como se todos dormissem ou simplismente não estivessem ali. Era o começo de um forte sofrimento, presumiu. Mas ainda se indagava sobre como aquela arma fora parar no seu bolso. Não trazia nenhuma recordação sobre ela, por mais que se esforçasse para lembrar. Sua mente era um campo de xadrez em que as pessoas tinham vida própria, ou, eram movidas por alguém superior. Gustavo Jorge não conseguia caminhar, as pernas estavam fracas do susto, do suspense, da sensação de estar dentro de um pesadelo.

Sentiu as vistas pesarem, o teto foi se aproximando fazendo um ruído ensurdecedor. As paredes se tornaram escuras, o chão ia se distanciando, a respiração ficava mais lenta... lenta.. o ruído ia se acalmando, mas o teto seguia descendo, ou ao menos parecia, Gustavo escutava agora o som do seu coração. Um momento de instrospecção...

Tudo escuro...

Apenas um som metálico percorrendo a escuridão..

Segundos de pânico..

Alguém acende a luz!

V - Um Momento de Instrospecção e Roleta Russa às Escuras

Se faz a luz para se notar Gustavo Jorge em um ambiente desconhecido. A luz é fraca, mas agradável, ele abre os olhos e enxerga sem esforço a parede, a cadeira e a mesa. Subitamente caminha até lá e se senta, como se algo o mandasse fazer aquilo. Não existe uma porta na sala, está dentro de um quadrado fechado, medindo pouco mais de cinco metros quadrados. Apesar da boa iluminação, o ambiente é escuro, negativo, tem um ar espesso, parece pesado. Mas Gustavo Jorge se acomoda em uma boa cadeira e solta o revóvler na sua frente. Deixa a bala ao lado, ela rola e quase cai da mesa, apenas não cai porque num gesto de reflexo rápido, Gustavo consegue pega-la. Alguns minutos se passam sem que ele faça movimento algum, apenas olha fixo para a arma, a bala, e sua mão. A mesma mão que em sonho apertava o pescoço de Lívia e quem em realidade a afagava e fazia bem.

Sentiu um peso então. Não sabia se realmente a fazia bem. A realidade sempre foi o sonho de Gustavo, mas pela primeira vez, ele começava a se questionar, se perguntar sobre aquilo. Sua mente trabalhava com clareza agora, estava realmente procurando explicações. Talvez só agora ele tenha notado que seus sonhos e pesadelos traduziam suas vontades, todas reprimidas durante o dia, enquanto ele tentava viver da farsa, de um sonho que se sonha acordado, mas sozinho.

Levantou e caminhou pela sala, sabia que aquele lugar que estava era apenas sua subjetividade trabalhando e se acalmou quando tocou no seu corpo e sentiu seu coração pulsando lentamente, sua respiração calma e precisa evidenciava que estava em calma, talvez pela primeira vez e então tocou os lábios secos, que procuravam palavras para explicar o que lhe acontecia. Lívia era o grande problema, presumiu, já que não podia lhe dar um filho, já que era a criatura mais detestada da Terra, e para a terra ela deveria voltar!

Escutou um ranger de madeira no piso gelado. Olhou para mesa e lá estava seu amigo psicólogo. Com um gesto fez sinal para se acalmar e sentar. Tinha um rosto calmo, como a representação de um sonho bom. Sentia que as coisas iam bem, e por um instante retirou a raiva de dentro de si e se sentou calado, olhando fixo para o homem, a arma e a única bala.

- Então, se sente melhor agora? - o psicólogo tinha um sorriso fraternal, mas que ia muito além de um simples gesto amigável. Aquilo penetrou em Gustavo

- Talvez... eu tenho pensado sobre a realidade, quer dizer, sobre os meus sonhos!

- Não são sonhos meu filho...

- São sonhos sim, eu sei quando estou sonhando! Sempre acordo com a sensação de que é realidade...

- É porque é a realidade!

- Então eu estaria morto se fosse! - Gustavo tinha um ar sarcástico quando falou, deixando até escapar um pedaço de sorriso

- E de fato já se perguntou se está? Quem sabe esteja mesmo!

- Ah não, não vem de escada que o incêndio é no porão!

- O incêndio é onde você mesmo espera... quem sabe você está morto, vamos adotar essa ideia?

- humm... ok! - começava a ceder ao jogo do psicólogo

- Pois então... você está morto, mas não da maneira que imagina, está morto por dentro, seus sonhos estão destruidos e foi você mesmo quem fez isso! Tem um sentimento dentro de ti que eu posso sentir, o de culpa, o de tristeza, e só você sabe o quanto isso te machuca, mas você não o coloca pra fora, porque está morto, porque seu sonho é algo que você mente para si mesmo, e se ilude na realidade projetada pelas tuas vontades... meu caro, acredite quando eu digo que você está morto!

De algum modo incompreensivo, surge uma culpa e uma desilusão em cima de Gustavo Jorge, que se sente perambulando em um inferno sem sentido que precisa ser encarado para poder sair dessa.

Da sua garganta seca e hesitante saem palavras confusas, mas ao menos verdadeiras.

- Nunca consegui falar o que queria para Lívia, você sabe, ela é frágil, sofreria muito com qualquer palavra mais forte minha. Acho que cultivei todo esse medo dentro de mim, que enferrujou minha coragem, destriuiu meus sonhos e enfim, fez eu subjetivar a realidade, como tu mesmo disse. Desde que descobrimos que... bom, que ela não poderia gerar a vida, nossa vida sentimental passou a ser uma enganação sem sentido. Uma busca por algo que não poderia jamais ser encontrado e que acabava conosco.

- Você acabou matando não só a si mesmo, mas também a Lívia.. acredita que existe amor com mentira? Mentira pra si mesmo, mentira para seu interior?

- Não! Não existe! Não posso negar que nosso fogo já se apagou há um bom tempo... e que o que nos prendia era um vago respeito, e uma singela esperança de um dia ela engravidar! Mas que humilhação... desculpe as lágrimas...

Gustavo se contorcia em choro, enquanto o psicólogo armava um sorriso que o constrangia.

- Sinto um pedaço dos teus sonhos deslizando junto de tuas lágrimas..

- Não, agora eu sei.. eu sei o que devo fazer!

Carregou a arma com a única bala que tinha, estava certo de que precisava abandonar aquela loucura, precisava abandonar seus sonhos para poder viver. Estar vivo era matar, cortar a própria carne para sobreviver. Iria se salvar pulando fora daquela ilusão.

Apontou o revólver carregado para o rosto do psicólogo que mantinha um sorriso enferrujado, enegrecido de sarcasmo. Sem esforço apertou o gatilho e sentiu o cheiro de pólvora tocar suas narinas e o estouro ensurdeceu seus ouvidos. Os olhos se fecharam e não abriram novamente...

Não ali...

VI - Um Tiro na Realidade

Abriu os olhos. Sentiu um leve desconforto, como se não tivesse tido uma boa noite de sono, mas logo recordou de algum traço do passado que o fez se encorajar para levantar da cama. Ouviu um barulho na cozinha, era Lívia preparando o café. Tentou recordar dos sonhos, mas não conseguiu, tinha apenas uma intuição, um sentimento. Algo que o livraria da culpa, ou talvez fosse necessário a fazer. Passou a mão debaixo do seu travesseiro, um revólver. Não gelou, nem tremeu as pernas, agiu no impulso. Levantou de um salto e correu para a cozinha, sentindo uma força voraz conduzir suas pernas, algo dentro dele gritava, louco para ser expulso. Uma bala apenas, uma bala na realidade e livraria seus pesadelos.

Lívia de costas nem viu nada, apenas caiu quando sentiu sua nuca molhada de sangue. Não falou, não retrucou, não observou e nem desobedeceu nada. Morreu. Gustavo Jorge ficou parado alguns instante vendo o sangue escorrer, ainda com o som do revólver ecoando em sua cabeça. O som foi aumentando, pensou "Não! Dessa vez não! Eu posso controlar meus próprios medos! Me sinto bem assim!". O revólver passou a pesar mais de cem quilos na sua mão, então largou ele no chão. Sentiu um alivio, como se retirasse um peso de suas costas. Passou a mão na testa, suava frio e ainda escutava o zunido que lentamente aumentava. Abriu a porta e saiu, correndo sem parar.

VII - A Fuga Surreal

Ele corria por uma rua triste e esquecida pelos deuses, ria de qualquer piada, como o clown desabrochado ri do humor negro de piadistas sodomitas. A medida que avançava pela escura alameda suja, seus pés se enfiavam em neve cinzenta, suja dos telhados lotados de poeira litorania e folhas secas e mortas da ultima troca de estação. O desespero lhe levava aos prantos, que se confundia com um riso, um certo desapego à sua própria vida e situação desconfortável naquele instante, mas em sua memória algo estava escapando e não iria mais voltar. Sentia lampejos súbitos de uma vontade insana, a de voltar e resolver toda a encrenca que havia criado, mas sua mente confusa parecia não se orientar ao sabor da razão, e sim ao do vento, e seguia como as folhas tristes que caiam carregadas de flocos de neve naquela tarde cinzenta e gélida. Seguia correndo, levando seu corpo amortecido para um lugar bem longe, já havia perdido a rota da sanidade e estava muito longe de qualquer outra estrada conhecida. Seus pés congelavam a cada passo descuidado que enchiam os sapatos pretos de neve branca ou de agua quase congelada, que encontrava nas poças sujas pelo caminho torto e descontente.

Levemente os olhos se fechavam e abriam es espasmos de sanidade, confundindo a realidade com o sonho, as alucinações, as seções com o psicologo, alguns pensamentos induzidos por drogas sintéticas que lhe forçavam a mente a trabalhar, a enxergar imagens do passados, caleidoscópios elétricos da subjetividade inconsciente da sua cabeça. A mente entrando em parafuso e ele louco pra saltar fora daquilo, mas não sabia onde estava a porta de saída, por isso corria para um futuro incerto em meio a neve desértica que é a solidão fria do lugar onde se encontra, preso dentro de si mesmo.

Foi quando então Gustavo Jorge ouviu o som das sirenes o perseguindo. Havia morte no seu inconsciente, mas ele não conseguia lembrar, tentou correr mais forte para as viaturas não o alcançar mas foi inútil. Porém, as duas viaturas que tocavam suas sirenes no ar passaram reto por ele, o deixando para trás, sem saber o que fazer. Lentamente sentiu seus pensamentos se cristalizar, e soube o que deveria fazer. Voltou todo caminho caminhando devagar, não existia mais culpa ou tristeza no rosto de Gustavo Jorge, apenas um sonho. Fugiu para dentro de seu sonho.

NOTA PARA COMPREENSÃO DO TEXTO E TÍTULO:

"O Jet lag é uma fadiga de viagem, é uma condição fisiológica que é uma consequência de alterações no ritmo circadiano. As alterações podem provocar uma mudança do trabalho do organismo. O organismo de uma pessoa está acostumado com o tempo de rotação da Terra e quando uma pessoa viaja em um avião mudando de meridiano, pode ocorrer que o dia passe mais rápido e provoque o Jet lag. Acredita-se que a condição é o resultado do rompimento do ciclo " luz / escuridão ". Pode ser provocado por fatores ambientais.

O Jet Lag ocorre como consequência de viagem através de vários fusos horários, o que se tornou comum com as viagens a jato e daí o nome em Inglês (Jet, jato; Lag, diferença de horário). Desta maneira após uma viagem passando por vários fusos horários a pessoa se sente como se o relógio interno dela (relógio biológico) não estivesse no mesmo do horário do local." Wikipédia.

Reny Moriarty
Enviado por Reny Moriarty em 06/10/2010
Reeditado em 06/10/2010
Código do texto: T2541322
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