O poço dos desejos

- Papai, me dá uma moeda?

- Claro que sim, princesa.

E lá se foi a pequena Sara, saltitante em sua amarelinha imaginária, em direção ao poço dos desejos, conforme estava pirogravado na pequena placa de madeira, que se mantinha suspensa por dois pequenos pedaços de corrente, fixadas na trave de madeira envernizada que fazia o pé direito do quiosque, erguido com colunas também de madeira envernizada e coberto com telhas de cerâmica de estilo colonial. E repousando sob a sombra do quiosque, um poço protegido por uma pequena muralha circunferencial, erguida com pedras e argamassa. As pedras recobertas com um verniz em tom amarelo, deixando em destaque as nervuras em tinta preta. Em sua volta um ladrilho de pedras brancas e grama completavam o cenário do atrativo supersticioso daquela praça com belíssimos canteiros de tulipas, passeios ladrilhados com pedras brancas e contornados por pedras pretas, bancos de ferro com assento e encosto de madeira envernizada, posicionados sob a excelente arborização de acácias. Estrategicamente posicionados no centro da praça, dois ipês amarelos faziam as vezes de anfitriões daquele ambiente criteriosamente decorado.

Minutos depois, já estava de volta a pequena Sara:

- Pronto papai, já fiz o pedido do dia do meu aniversário!

Cosmo a abraçou e, tomando-a pela mão, foram para casa preparar-se para a festinha de comemoração do seu oitavo aniversário.

Todos já haviam-se recolhido. Cosmo foi ao quarto de Sara e deu-lhe o tradicional beijo de boa noite, tirou a boneca “Camile” dos braços da menina, arrumou sua coberta... Apagou a luz e saiu. Ouviu o relógio da igreja do outeiro em suas badaladas. Soava a última das onze batidas do relógio, quando cautelosamente trancou a parta da sala, transpôs a varanda e sentou no jardim, de onde observava a silhueta dos ipês da praça que se destacavam ao reflexo da simpática e enigmática lua cheia. A brisa fria que vinha da rua convidava-o a um breve passeio.

Saiu em direção a praça, à passos lentos e em introspectiva meditação a respeito da história do poço dos desejos. Desde criança acompanhara a história supersticiosa daquele poço, onde pessoas atiravam moedas e faziam pedidos; algumas chegavam a jurar que haviam realizado seus desejos naquele poço. Ele, particularmente, nunca escondeu de forma alguma sua descrença no tal poço. Mesmo assim, resolveu naquela noite, fazer um desafio a si mesmo e ao poço. Aproximou-se do poço, arriscou uma olhada à sua volta para certificar-se que não haveria testemunhas, já que todos sabiam da sua descrença. Enfiou a mão no bolso, de onde tirou uma moeda, atirou-a ao poço e ironicamente proclamou:

-Quero saber os desejos de todos!

Subitamente ouviu ecoar as próprias palavras, mas nada aconteceu. Apoiou as duas mãos na pequena parede e debruçou-se um pouco, com o olhar focado no fundo do poço. Insistentemente, debruçou-se um pouco mais... Quando sentiu seus pés deslizarem no ladrilho de pedras. Sem que houvesse tempo para qualquer reação, já sentia-se na eminência de um mergulho no que parecia ser apenas um pequena lâmina d’água. Enquanto submergia, sentia uma sensação estranha de que estava sendo tragado pelo poço... Debatia-se em inútil tentativa de retornar à superfície. Quando já se sentia sufocado pela ausência de oxigênio, foi instantaneamente envolvido por uma sensação de alívio. Não podia entender como encontrava-se sentado no fundo do poço e não havia água. Apenas uma densa camada de argila macia... Com o toque dos dedos procurou sentir aquele solo completamente seco, com um olhar curioso e perplexo fez uma rápida exploração daquele local. Uma gruta com paredes de pedra com uma tonalidade intermediária entre a cinza e a marrom, com safiras encravadas eqüidistantes entre si, que causava-lhe a impressão de um lustre com encantadora luminescência azul. Olhou para cima e viu a coluna d’água suspensa sobre sua cabeça, erguendo-se nas pontas dos pés conseguiu alcançá-la com suas mãos em um mergulho invertido. Ao retirar as mãos, observou as gotas d’água que desprendiam-se delas em uma ascendente queda de retorno à coluna. Maravilhado, mergulhou as mãos novamente... Repetiu-se a mesma cena. Em um impulso mecânico, fez um gesto de secar as mãos nas pernas da calça, quando percebeu que já estavam secas e que a sua roupa também permanecia completamente seca. Envolvido por uma sensação de susto e encanto, tentando convencer-se de que tudo aquilo era real, perguntou-se:

-Será que eu morri... Ou estou sonhando?

Sentou novamente abaixo da coluna d’água, fechou os olhos e respirou pausada e profundamente. Lentamente, abriu os olhos e observou à sua frente uma rampa - com sutis degraus que mais pereciam uma seqüência de pequenas ondulações – em suave declínio que se estendia desde o local abaixo da coluna d’água até a estreita porta arredondada que dava acesso a um campo de onde vinha uma luminosidade semelhante à luz do dia. Sobre a rampa, repousavam algumas dezenas de moedas dispostas aleatoriamente em toda sua extensão.

Cosmo, embora curioso, com a mente um tanto entorpecida com tudo que estava acontecendo, distraidamente inclinou-se um pouco à frente, estendeu o braço e apanhou uma das moedas que estavam próximas. Como não bastasse as surpresas que haviam ocorrido até aquele momento, uma brisa fria vindo do campo lá fora adentrou a gruta, as safiras encravadas na parede tornaram-se mais brilhantes como se tivessem luz própria e tudo em volta assumiu uma tonalidade azul, decorrente da luminosidade que emanava das safiras. Uma voz vindo de lugar nenhum, invadiu sua mente, referindo-se a ele como se fosse o próprio poço e revelando-lhe seu desejo:

-Me chamo Rômulo, e há anos atrás perdi minha namorada para meu amigo Cosmo, com quem ela casou-se. Nunca a esqueci, como também nunca perdi a esperança de um dia ver esse casamento desfeito, mesmo que para isso tenha que ser sacrificado o próprio Cosmo, não importa. E então terei a chance de reconquistá-la... É isso o que mais desejo.

Impulsivamente, Cosmo deixou cair a moeda que tinha em sua mão, com os olhos arregalados, o coração acelerado, um intenso calafrio percorreu-lhe o corpo inteiro. No mesmo instante em que largou a moeda, todo aquele cenário desfez-se. Cessou a brisa e sumiu a luminosidade das safiras. Perplexo, Cosmo procurou relaxar e analisar aquele fato. Permaneceu sentado e meditativo por alguns instantes, cruzou os braços e vez por outra arriscava uma ansiosa esfregada no estreito bigode. Com o olhar fixo em um pequeno aglomerado de moedas que esbarraram umas contra as outras, selecionou uma e a fechou na mão... Novamente se refez o cenário de instantes atrás, e uma voz surgiu em sua mente:

-Me chamo Bruno, meu pai está sem emprego já há algum tempo, ele é muito preocupado com nosso presente de natal. Embora eu não ligue muito, sei que se ele não puder comprar nossos presentes no natal, irá ficar deprimido. Por isso o que mais quero é que consiga um emprego antes de chegar o natal.

Cosmo largou a moeda e cessou aquela voz, mais uma vez desfez-se o cenário. Naquele momento, percebeu como funcionava aquela situação encantadoramente mágica. Curioso, desceu um pouco a rampa, apanhou outra moeda e fechando-a na mão:

-Meu nome é Adalberto, durante boa parte da minha vida trabalhei como motorista de ônibus, geralmente não parava para apanhar idosos com passe livre. Não consegui acumular riqueza alguma durante a vida. Hoje, com sessenta e cinco anos, sou paraplégico. Além de depender de ônibus para meu deslocamento, só posso apanhar os carros equipados com elevadores para cadeiras de rodas, na maioria das vezes eles não param... Tudo que quero é um pouco mais de respeito e solidariedade da parte dos condutores de ônibus.

Maravilhado com tudo aquilo, Cosmo apanhou uma moeda após outra, e mais outra... Ficou sabendo os desejos de muitas pessoas, alguns de seu agrado, outros nem tanto. Estava completamente absorto na seqüência de relatos que ouvia, quando subitamente foi interrompido pela queda de uma moeda no fundo do poço... Observou atentamente a trajetória da moeda que desceu pela rampa, transpôs a porta e ao tocar a grama continuou deslizando como se não houvesse atrito algum naquele solo. Cosmo correu até a porta arredondada que dava acesso ao campo, ficou deslumbrado ao ver um enorme gramado semelhante a um campo de golfe, com aclives, declives e pequenas depressões, um pequeno lago e uma vegetação sempre arbustiva com flores completamente exóticas. Continuou a acompanhar a trajetória da moeda, que deslizou em curvas e repousou em uma pequena depressão na grama. No local onde estava a moeda passou a germinar uma forma vegetativa, surgiram ramificações e folhas, e duplicaram-se até que formaram um arbusto, de onde surgiram flores semelhantes a orquídeas. Cosmo curioso, aproximou-se e tocou o arbusto... E surpreendeu-se ao ver cena semelhante a que viu na gruta, e uma voz invadiu sua mente:

-Meu nome é Marcelo, prestarei exame vestibular para o curso de medicina... Desejo apenas ser aprovado.

Largando o arbusto, dirigiu-se à outro que estava próximo, ao tocá-lo, o mesmo encanto e uma voz:

-Eu sou o Rafael, há dois anos namoro com Aline, a filha do farmacêutico. Por ser um vendedor de lanches, seus pais não querem que ela leve à sério nosso namoro... Tudo que mais quero é casar-me com Aline.

Largando o arbusto, Cosmo recordou que conhecia Rafael e que viu seu casamento com Aline acontecer. Permaneceu pensativo por alguns instantes e dirigiu-se a outro arbusto, depois a outro, e mais outro... Percebeu então que muitos dos desejos que ouviu no campo, eram desejos que havia visto realizar-se. E que os desejos que ouviu na rampa da gruta eram desejos que nunca foram realizados. Curioso, tocou outro arbusto, e uma voz:

-Me chamo Sara, hoje é meu aniversário de oito anos, meu pai me deu o melhor presente que existe, mesmo sendo uma sexta-feira ele não foi trabalhar e passou o dia inteiro comigo... Foi uma grande surpresa... Desejo ter uma surpresa maior que essa no meu aniversário de dez anos.

Foi então que Cosmo voltou à realidade, e lembrou que tinha que sair do poço e votar para Sara e Anne, sua esposa. Voltou ao interior da gruta e desempenhou todo esforço possível na tentativa de retornar à praça, tudo em vão. Desiludido, sentou abaixo da coluna d’água, meditativo a respeito do seu desejo. E viu que saber os desejos e os anseios das pessoas não valia à pena, pois seria difícil conviver com toda aquela gente conhecendo seus desejos mais íntimos.... Quando, subitamente, caiu uma moeda e estacionou no início da rampa. Cosmo, em um impulso, apanhou-a e segurando-a na mão ouviu:

-Sou eu, Sara. Hoje é meu aniversário de dez anos, e fazem dois anos que meu pai desapareceu... Tudo que eu mais queria na vida era que ele estivesse comigo hoje no meu aniversário.

Cosmo com o coração apertado, pensou um pouco e sem demora atirou a moeda ao campo. Logo começou a surgir um arbusto e em seguida começou a florescer... Inesperadamente a coluna d’água desabou, dando início uma grande inundação. Cosmo saiu correndo de dentro da gruta em direção ao campo... Mas, em segundos, tudo estava inundado. Cosmo tentou nadar... Boiar... Mas, de repente, tudo escureceu.

Começou a surgir sutilmente uma luz... Aos poucos ficando mais intensa... Cosmo despertou, com o sol encandeando seu olhar. Percebeu que estava sentado, escorado na parede do poço, ao seu lado esquerdo haviam duas garrafas de vinho vazias e duas taças, em sua mão direita havia uma moeda... Levantou, olhou para o fundo do poço, sem recordar nada do que aconteceu, ainda descrente atirou a moeda e falou:

-Quero apenas que as pessoas saibam conviver com seus anseios e seus desejos!

Saiu em direção à sua casa, chegando na escadaria da praça, avistou uma criança brincando na calçada, e comentou consigo mesmo:

-Se aquela menininha não fosse tão crescida, poderia jurar que era minha pequena Sara.

.

FIM

Zemar Sousa
Enviado por Zemar Sousa em 27/10/2006
Reeditado em 26/05/2017
Código do texto: T275211
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