Feia?

a caveiruda se rebocava. de meia em meia hora ia ao espelho rebocar a bocarra de um batom cor de lama. depois de besuntar bem os beiços esperava a escuridão da boate transformá-la em cinderela de fábula. assim, amanheceu o dia e a carruagem não veio. a vontade de ser uma bella donna ficou perdida no vapor da noite esgotada. agora, ela descia as escadas do inferninho, meio torta e acompanhada do etílico caminhar que se expandia para os lados, batia descompassada na laje, os sapatos pintados de caneta hidrocor. o sol dourado batia em seu rosto de esfumaçado colorido, que borrado, revelava toda a fealdade que o breu da noite escondeu.

mas faltava pouco para anoitecer. em pouco tempo ela novamente se esconderia feliz em meio às sombras necessárias à sobrevivência dos rejeitados. era inverno, o dia durava menos e isso lhe fazia um enorme bem que se bastava. depois do mágico batom-lodo aplicado, dançaria nas nuvens vaporosas do gelo seco. tudo ficaria bom novamente, e a ilusão do escuro seria a sua maior arma contra todos que não a olhavam.

a feia não era feia, mas ela precisava das sombras para se transformar.

mariana nisemblat
Enviado por mariana nisemblat em 31/10/2006
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