O Suicida

O SUICIDA

Joanilson Marinho da Silva

Foi só um tiro. Um único tiro, seguido de um zumbido igual ao de um avião a jato no momento da decolagem. O túnel, de que muitas vezes ouvira falar por aqueles que já estiveram perto da morte, pareceu mais longo e mais estreito. De repente, desemboca na amplidão, um extenso jardim, onde as pessoas passeiam e conversam animadamente. Não viu ninguém conhecido até agora. Sente-se calmo, tranquilo e não tem dúvidas de que a sua atitude, até agora, foi a melhor para todos. Já tem certeza de que o suicídio foi o melhor remédio e não tem mais dúvida de que realmente está morto. A sua aparente calma, esconde a ansiedade pelo que está por vir. As pessoas o olham com certa curiosidade, enquanto ele caminha pelo jardim. Não sente frio nem calor. Sente apenas curiosidade. Procura dentre aquelas pessoas algum parente, amigo ou conhecido, para lhe dar as primeiras informações. – Graças a Deus, as coisas não são tão feias como se diz lá na terra a respeito dos suicidas, - pensou Roberto, lembrando-se das conversas sobre o assunto, além de algumas leituras que fizera. Ao compor este pensamento sentiu que todas aquelas pessoas ali presentes voltaram-se para ele, como que recriminando-o por esta infeliz ideia.

O tiro na têmpora direita trespassara-lhe o crânio, provocando grande derramamento de massa encefálica, o que lhe acarretara morte imediata, sem qualquer chance de sobrevivência. Roberto estava sozinho em casa. Fora encontrado deitado de peito para cima, os braços abertos e a arma, um revólver calibre 38, pendente na mão direita. A perícia técnica concluíra que Roberto deitara-se exatamente na posição em que fora encontrado, parecendo querer evitar uma queda ou um maior trauma, como se existisse trauma maior do que a morte violenta.

Roberto era um sujeito bem sucedido. Bem casado, com dois filhos adolescentes e já bem encaminhados. O casamento, já com cerca de vinte e cinco anos, estava mais sólido do que nunca. Rosa, sua esposa, era uma mulher dinâmica que nunca deixou que problemas relativos aos filhos e à sua casa fossem criar dificuldades para Roberto. Os pais de Rosa, assim como os de Roberto, já haviam falecido há alguns anos. Roberto era filho único e herdara os negócios do pai, um empresário da construção civil, que já tinha encaminhado o Roberto no mercado desde a adolescência. Os filhos Robertinho e Flavinha já estavam cursando a Faculdade de Engenharia e também ajudavam o pai nos negócios.

Ninguém entendeu a atitude de Roberto. Não havia nada que justificasse tal comportamento. A família organizada, os negócios bem encaminhados, tinha bom relacionamento no grupo social em que vivia, portanto, nada que conduzisse a tão tresloucado gesto. As especulações eram sobre algum problema sentimental, tanto da parte de Roberto quanto do lado de Rosa; alguma doença grave em Roberto, em Rosa ou em algum dos filhos. Só especulações. Alguns amigos chegaram a sugerir que Roberto andava parecendo depressivo, arredio e desinteressado pelos amigos e sem participar das atividades dos grupos a que pertencia. Tudo especulação. Rosa e os filhos nunca detectaram nada que pudesse sugerir um ato tão radical e penoso.

Agora Roberto caminha por entre bonitas alas de eucaliptos duplamente enfileiradas, no centro de um vasto campo gramado que é circundado ao longe por palmeiras imperiais, estas intercaladas por pequenos bosques floridos. É um ambiente de paz e de tranquilidade. Estas alas conduzem a um grande prédio branco, com aspecto de hospital. Roberto vai sendo conduzido pela curiosidade, mas os circunstantes parecem muito mais curiosos em verem a decisão firme dele se dirigindo àquele edifício. Durante o trajeto, Roberto tenta se lembrar dos reais motivos que o levaram a tirar a própria vida. Aparentemente nada, apenas um vazio que vinha tomando conta de si e que ele fazia questão de não transmitir para as pessoas que o cercavam, seja a família ou os amigos. Chegara a ler alguns artigos sobre a depressão e a falta de perspectiva de vida, mas nada que pudesse lhe dar algum incentivo maior. Nunca fora muito religioso. Não tinha tempo. Algumas vezes tentara ler a Bíblia. Achava muito complexa a leitura. Não frequentava igrejas, mas respeitava Deus, segundo pensava. Havia lido que “a rigor a Religião deve orientar as realizações do espírito, assim como a Ciência dirige todos os assuntos pertinentes à vida material. Entretanto, a Religião, até certo ponto, permanece jungida ao superficialismo do sacerdócio, sem tocar na profundez da alma” (*). Continuara sem bem entender. Já tinha tudo o que precisava. Não era ganancioso. Não pensava em grandes realizações. Para o seu nível de vida estava muito bom. Já não ansiava mais nada, perdera simplesmente a vontade de viver. Portanto, tomara a decisão de partir. Além do que já possuía, havia feito um seguro de vida milionário para a família, o que garantiria à esposa e aos filhos uma vida tranquila pelo restante de sua existência.

Roberto chegou à entrada daquele belo edifício, onde as pessoas estavam vestidas de um branco imaculado, igualmente como aquelas que avistara no jardim, o que fazia parecer serem as mesmas pessoas, os mesmos rostos. Até agora não se dirigira a ninguém. Procurava por algum conhecido ou, quem sabe, por seus pais ou parentes. No centro do amplo saguão de entrada existia uma mesa, com um grande livro aberto sobre ela, e uma pessoa ao lado, o que lhe pareceu, para orientar os recém-chegados. Dirigiu-se ao local, sempre observado pelos presentes, e, quando já ia falar com a pessoa que se encontrava ao lado da mesa, a fim de saber como encontrar alguém conhecido, esta se adiantou como que lendo o pensamento de Roberto, e, sem nada falar, o conduziu, segurando-o pelo braço, para um salão que mais parecia a nave de um templo, onde inúmeras pessoas estavam silenciosamente sentadas, em confortáveis cadeiras, como que aguardando alguém. A pessoa que o conduziu, um homem de meia idade, possuía um semblante que transmitia calma, apenas acenou com a cabeça para o local onde Roberto deveria sentar.

Não demorou muito, entrou no recinto um homem que aparentava cerca de 60 anos, moreno, barbado, de boa aparência, também vestido com uma bata branca. Disse que seu nome era João e estava ali para apresentar as boas vindas a todos e prestar os esclarecimentos inerentes ao grupo. Roberto estava atento. Não desgrudava os olhos do homem. Acompanhava cada um dos seus movimentos. O instrutor celestial continuou a sua palestra dizendo que todos os que ali se encontravam, haviam desencarnado na mesma época, há cerca de dois anos, e que todos haviam tirado a própria vida, isto é, todos eram suicidas. Como tal, todos tinham que reencarnar novamente a fim de completarem a sua missão na terra, porque eles próprios a haviam antecipado. – Se Deus não permite que se tire a vida das outras pessoas, quanto mais a própria vida, acrescentou. Duas grandes surpresas para Roberto: a primeira, referente ao tempo já decorrido da sua morte; e a segunda, em relação a ter que voltar para a terra. Achava que não fazia uma hora ainda que havia morrido e depois achava, também, que tinha cumprido bem o seu papel na terra, sendo um sujeito de bons costumes, cumpridor dos seus deveres, bom pai, bom filho, bom esposo, etc.

Em seguida, João disse que cada um dos presentes iria receber maiores informações por intermédio de instrutores individuais, de preferência pessoas conhecidas. já desencarnadas.

Nesses dois anos, as coisas não andaram tão bem para a família de Roberto o quanto ele esperava. O seguro de vida milionário deixado por Roberto não foi pago, porque uma das principais cláusulas desses contratos é a não cobertura da morte por suicídio, o que possivelmente era desconhecido por Roberto. Quase dois anos após a sua morte, seu filho Robertinho teve que casar às pressas com a namorada por esta ter engravidado. Os negócios estavam em dificuldades porque a área de construção civil estava saturada, os preços baixos de imóveis e uma quebradeira geral no mercado. Após a morte de Roberto, Rosa sofreu um choque muito violento, o que a acometeu de grave lesão cerebral, prostando-a na cama.. Flavinha continuava estudando, mas prejudicava o aprendizado por ter que acompanhar a sua mãe continuamente. A situação ainda não era de desespero total, mas estava caminhando para tal.

Após a reunião com o instrutor João, Roberto foi conduzido para um pequeno e confortável escritório aonde iria se encontrar com o novo instrutor individual. Estava aguardando com certa resignação, mas confiante em conseguir informações sobre sua família com o seu conhecido, além de tentar junto a ele a não reencarnação. O novo instrutor espiritual era pessoa por demais conhecida de Roberto, fato que muito o alegrou, logo que o viu entrar no escritório. Era o Romero Correia, mais conhecido por Correia, antigo Contador da firma de Roberto e com quem mantivera estreitos laços de amizade na terra. Correia falecera há cerca de oito anos, vítima de ataque cardíaco. Uma perda muito grande para Roberto. Correia fora o principal responsável por boa parte do sucesso da empresa de Roberto. Era um sujeito de bons costumes, bom profissional, leal, amigo, religioso, enfim um grande homem. Algumas vezes tentara conduzir Roberto à igreja, mas era desconversado por ele, que sempre alegava falta de tempo. O diálogo foi amigável, mas bastante objetivo. – Graças a Deus é você, Correia! Sei que vai me ajudar a resolver esta situação, disse Roberto em tom de súplica. Você sabe o quanto eu era honesto nos meus negócios, como era leal com os meus familiares e amigos e... – Não se apresse, Roberto! Temos tempo, - disse Correia, tentando acalmar o amigo.

Conversaram por várias horas. Roberto ficou sabendo que Correia não poderia modificar nada do que havia sido determinado pela liderança daquele hospital celestial. Tomou conhecimento de que o período em que esteve inconsciente correspondeu àquela fase em que ele achava que estava num túnel. A região onde ele passou todo aquele tempo, quase dois anos, era o local sombrio no qual ele recebeu uma espécie de depuração e restauração do trauma, e que normalmente aqueles que conseguem sair logo de lá, esquecem completamente o sofrimento a que foram submetidos. Tomou conhecimento de que a sua família estava sofrendo bastante e que seu filho estava prestes a se casar. E o mais difícil para Roberto foi ter que aceitar a sua reencarnação na pele do seu próprio neto, isto é, ele voltaria reencarnado como o primeiro filho de Robertinho. E tinha que ser logo porque a sua nora já estava no primeiro mês de gravidez, isto é, estava na fase inicial da concepção.

Como instrução propriamente dita, Roberto aprendeu que para se renovar, deve começar primeiro pela “renovação de seus costumes pelo prato de cada dia. Diminuir a volúpia de comer carnes de animais. Evitar todo e qualquer tipo de excitantes, seja o álcool, as drogas, etc. Evitar os abusos do fumo, pois dá pena ver a angústia dos desencarnados amantes do cigarro. Em relação ao sexo, deve guardar muito cuidado na preservação do equilíbrio emotivo. Concernente aos bens, dinheiro, etc, não adiar as doações, caso esteja pensando em fazê-las. Sobre os testamentos e demais documentos da família, deixá-los sempre atualizados, porque a família muitas vezes padece em cartórios e outras repartições congêneres.” (*) Neste caso, Roberto sofreu mais porque ficou sabendo sobre a ineficácia do seu seguro de vida. “Referente à família, a orientação é não se apegar demais aos laços consanguíneos. Ame a sua esposa, seus filhos e seus parentes com moderação, na certeza de que, um dia, você estará ausente deles e de que, por isso mesmo, agirão quase sempre em desacordo com a sua vontade.” (*)

A despedida dos amigos foi tranquila e emocionada. Roberto estava arrependido do que fizera, mas bastante confiante no sucesso da sua nova missão. Já estava preparado para reencarnar e fora muito beneficiado, porque iria ter a oportunidade de reparar os danos causados à sua própria família. Hoje mesmo estaria na terra, na condição de embrião de seu próprio neto e filho de seu próprio filho.

Dorinha, sua nora, estava completando quarenta e cinco dias de gravidez no dia em que Roberto reencarnou. Tendo em vista a difícil situação financeira por que estavam passando Robertinho e sua família, Dorinha sentiu que não era chegado o momento de terem aquele filho. Nem combinou com o marido. Tomou um conhecido e eficiente abortivo, e dois dias depois...

(*) – Tópicos baseados na Crônica “Treino para a morte”, do livro Cartas e Crônicas, de l974, de Chico Xavier.

Joanilson
Enviado por Joanilson em 02/04/2011
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