O Preâmbulo

O PREÂMBULO

Joanilson

Parece que ele está saindo de um estado de letargia geral. Aos poucos vai recuperando o tato. Passou por uma espécie de túnel viscoso, estreito, escorregadio. Depois mergulhou num pequeno tanque como se fosse uma nave, pela qual se sente transportado. Acha que saiu de uma nave menor, da qual foi expulso ou expelido. Parece um sonho. Que sonho esquisito!

Antes o ambiente era escuro, líquido, quente, sons surdos orquestravam o silêncio. Sim, mas como é que ele sabe disso, se ele só sente. Ele não ouve, não vê. Sente, apenas. Aliás, ele nem sabe se sente. Ou, melhor, ele ainda não sente. A sensação é de um sonho profundo. Será um sonho ou um pesadelo? Não sabe! Ele não sabe se sabe ou se não sabe. O sentimento é de alívio e de cansaço ao mesmo tempo. Ele flutua ou está submerso. A corrida foi estafante, sôfrega. Agora o descanso merecido. É inverno ainda, ou está chegando a primavera! Não dá pra saber. No nordeste não se distinguem as estações do ano. São os meses da seca, da seca inclemente, da seca estafante, da seca insuportável, da seca de morte, da seca do forte, e depois da esperança, a esperança da chuva. A esperança... verde. É essa esperança que ele cultiva. Sair desse sonho. Sonho ou pesadelo. Acordar. A memória, a matriz da vida, a identidade, tudo desconhece. Ou não lembra. Não tem lembranças...

Agora há tranquilidade, harmonia, segurança, confiança. Continua seu sonho, agora mais calmo, sem apreensões. Não identificou ainda onde está, se submerso ou flutuando. Sente (sente?) que está avançando. Parece estar num balão, numa bolha. Há momentos de tensão, alvoroço, alternados por calma profunda, sem imagens, sem sons, mas alguma coisa lhe diz que logo, logo, será revelado o sonho. Acordará. Não lembra o seu mundo. Não sabe de onde veio, nem se veio de algum lugar. Não sabe ainda qual é o seu mundo. Não sabe para onde vai. Dorme e acorda sonhando, aliás nem dorme nem acorda, só sonha. Será sonho mesmo?

A primavera do calendário já acabou. É chegado o verão. Ele continua submerso ou flutuando! Agora já sente, sim, o calor. É alguma coisa quente que lhe toca. Quente e líquida. Continua tudo escuro. O som surdo ainda não ouve. Mas já sente. Alterna momentos de agitação e calma, calma profunda. Sente segurança também. Não conhecia esse sentimento. Nunca mais sentiu cansaço. O silêncio é profundo mas sente movimentos fortes vigorosos, que algumas vezes o fazem rodopiar, como que sacudido por um vendaval ou por uma onda gigantesca. Será que ele sente realmente tudo isto? Como vai saber? Se nem dorme nem está acordado, apenas sonha. Mas está avançando, mesmo na escuridão profunda, negra, está avançando. Há também uma sensação de dormência generalizada, entorpecimento total, como que ainda saindo de um estado de letargia; um torpor silente, calmo. Mas caminha e avança para sair desse estado sonolento. Há uma sensação de quietude, de calma, espiritualmente sem agitação. Este estado não aparente, latente, de onde teria vindo, não o preocupa, não se agita por isto. Não se preocupa por nada. Só espera e avança. Aguarda o seu momento. O verão está prestes a acabar. O verão do calendário, porque aqui é sempre verão. É nordeste. Para ele pouco importa, se faz verão ou outra qualquer estação.

Há agora um estado de turbulência. Há agitação. Há movimentos bruscos em seu redor. Ondas gigantescas o ameaçam. Fica à mercê dessas ondas. Há desconfiança, insegurança. Que sensação desagradável! Preocupa-se com o que virá. Foram momentos horríveis. Eram esses os sentimentos que lhe vinham. Não sabe o porquê. Não desconfia de nada, mas sente essa sensação. Alguma coisa que o rodeia lhe transfere essa sensação. O que será que está havendo? Ouve alguns ruídos estranhos, muito longe, distantes, indefinidos. Até antes nunca tinha ouvido nada. Agora os ruídos são constantes, ininterruptos. Vai continuar avançando na escuridão, agora com os sons surdos, muito distantes. A incerteza continua, mas ele não desiste, persiste no seu caminhar, prossegue a sua exploração indormida. A ânsia por sair dessa situação, desse sonho é mais forte do que a incerteza de tudo que o cerca. Há em sua gênese a necessidade de descobrir logo se realmente vive um sonho, ou um pesadelo, ou esta é a sua realidade. Os momentos de instabilidade, que duraram um bom tempo, foram substituídos por momentos de felicidade. Felicidade, sim. Não recorda de já ter tido momentos de felicidade. Que bom sentimento! – Diria, se pudesse falar. Já pode emitir sons. No seu sonho, delicia-se emitindo sons. Sons surdos que só ele ouve. Os sons agora estão mais presentes, mais fortes. Quer chamar atenção para ver se acorda, se sai dessa morbidez. Mas todo esforço é vão. Acha que está próximo de alguém. Sente, ainda na escuridão profunda, que alguém lhe toca, indiretamente, como que lhe roçando as costas, a cabeça. Boa sensação. Já acha que vai acordar. Será que está dormindo mesmo?

É chegado o outono e com ele as novidades dessa viagem fantástica. O nosso viajante já vê, vez por outra, uma rápida claridade, como um flash fotográfico. Será o final desse túnel? Outras vezes essa tênue luz se prolonga por algum tempo, seguida de calor. Continua a sensação tátil, agora mais apurada. Um estranho gosto salgado de vez em quando atiça o seu paladar, mas não sente vontade de comer. Sente estar atrelado à suposta nave por uma espécie de cinto preso ao seu corpo. Desconhece que mistério o envolve nessa estranha nave. As sacudidelas continuam como se fossem turbulências ou marolas, seguidas de calmarias. Escuta, através das paredes do ambiente em que está envolvido, vozes surdas, que lhes chegam aos ouvidos como ecos borbulhantes. Uma dessas vozes lhe soa mais próxima e mais grave. Mesmo ainda parcialmente perceptível, essa voz próxima lhe traz calma e suavidade, tranquilidade. Esse é o grande motivo da sua relativa persistência em aguardar os acontecimentos e deixar que a viagem, ou sonho, continue. Não sente tanta pressa em concluir o sonho, ou a viagem.

O outono já está prestes a acabar, é final de maio ou início de junho. Agora ouve ruídos bem mais fortes, como espocar de balões, explosões que ecoam no seu ambiente e que povoam o seu sonho. Já distingue bem mais próximas as vozes, algumas que já identifica e que lhes são bem familiares. Toda aquela letargia já passou, agora se sente mais confiante que logo chegará ao final dessa fantástica viagem. A única angústia é provocada pelo inusitado, pois não sabe até agora porque esse sonho tão prolongado, e que acha que tenha se passado em apenas uma noite, lhe traga alguma ansiedade. É como se estivesse vivendo um sonho controlado por alguém, que também controlasse a hora do seu despertar. A angústia justifica-se porque em alguns momentos do seu sonho (ou pesadelo) sentiu turbulências e agitações externas que lhes deixavam apreensivo e com vontade de apressar o seu despertar. Quando começou a aguçar mais a sua audição, ouvia sons melodiosos que lhes traziam certa calma; outras vezes e com certa repetitividade ouvia sons e vozes externas como que produzidas por aparelhos sonoros, ora acalentadores, ora depressivos. E estes sentimentos eram como que transmitidos para a sua cápsula instantaneamente e traduzidos pelo próprio ambiente que à mercê desses sons, desses sentimentos, se agitava ou se acalmava, conforme o que fosse captado. O que mais lhe acalma, no entanto, é o sentimento que na maioria das vezes ele sente, de que esse seu sonho lhe trará muita paz e amor. Amor, é isso, que sempre tem ouvido, mesmo que soe de forma pouco definida, é essa a palavra que lhe parece definir bem o final do seu sonho ou da sua viagem.

Hoje, logo cedo ele começou a se agitar e sentir-se incomodado com aquele ambiente líquido e quente. Encontra-se ansioso. Acha que já é chegado o momento do seu despertar. Por sua vez, sente que a bolha,ou nave, em que se encontra encerrado também está agitada, como que se contorcendo, se movimentando o tempo todo para um lado e para o outro, passando a ideia de angústia e apreensão. Continua ouvindo as mesmas vozes familiares, mas desta feita apresentando certo nervosismo, como se esperassem por alguém e esse alguém não tem uma hora marcada para chegar. De repente, ele sentiu uma espécie de esvaziamento do ambiente em que estava envolto. Teve medo. O que vai acontecer? Será que é agora que eu vou acordar? As alterações em sua volta se avolumaram. Mais preocupação, mais movimentação, até uma sensação nova, desespero. Tudo isto seguido de relativa calma, calma. Calma, foram estas palavras que tiveram um efeito tranquilizador. Outras palavras se seguiram, ouvidas, mesmo com toda a balbúrdia e movimentação que acontecia em volta dele: - Meu Deus! Está perto! - ouvia ele -, apesar do borbulhar e dos ecos ondulados que chegavam aos seus ouvidos. Pela primeira vez ele ouviu um som limpo, vozes limpas, nítidas, um tilintar metálico. Sentiu um contato próximo, direto, brusco. Uma claridade nunca antes observada, chega a doer nos olhos. Vê imagens ainda não muito límpidas. Parece que acordou. Ou o sonho recomeçou?

Hoje é o dia 4 de junho de l998... Um frio horrível nunca sentido... Uma palmada no traseiro...Choro, muito choro, muitos choros, choros de felicidade!!!

Nasceu Gabriel! O meu primeiro neto.

Joanilson
Enviado por Joanilson em 02/04/2011
Reeditado em 04/05/2011
Código do texto: T2884797
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