O BARÃO E O MUSEU um conto de fantasmas

PRÓLOGO

Conta-se, que nos tempos medievais, numa sangrenta batalha, um destemido cavaleiro avançava no meio dos inimigos, matando, ferindo, vitorioso. Até que numa distração cortaram-lhe a cabeça. Sua determinação era tão grande que ele continuou a matar e a ferir com a mesma fúria, até que alguém gritou: - Ei! Você perdeu a cabeça!!! E dando-se conta então, caiu do cavalo e ficou ali, morto, enfim.

INTRODUÇÃO

São Paulo, milhões de pessoas transitando por dia em suas ruas. Buzinas, fumaça, carros, ambulantes, pregões, cheiros, gente que vai, gente que volta, homens elegantes, mulheres finíssimas, homens mal arrumados, mulheres desleixadas, gente que trabalha, gente que atrapalha, gente que tem o que dizer, gente que não deveria dizer nada...

Multidões.

Multidões absorvidas pelo caos urbano.

Trancadas em seus próprios mundos, alheios a tudo o mais que acontece.

O progresso, a evolução, a batalha diária pela sobrevivência, a competição profissional, a corrida pelo sucesso; todos esses fatores contribuíram para que as pessoas se tornassem frias e individualistas. Conseqüentemente elas acabaram por desconhecer o que se passa à sua volta.

Na verdade, muitos dos que transitam entre nós já se foram, mas é tão grande a voracidade com que se vive na quarta metrópole do mundo que não há tempo para se lembrar que já não se respira, que não há sangue nas veias, que já não há fome, sede, não há necessidade de dormir, de amar, de sorrir, de chorar, de sentir saudades, de sonhar com o futuro, refletir no passado e vencer o presente.

Pessoas que já se foram, mas não sabem disso.

Morreram, mas não foram avisadas.

Há jovens, adultos, idosos; homens e mulheres nessas condições.

Você pode ser um deles.

Eu posso ser um deles.

Será que todos não os somos?

Será mesmo que você está entre os viventes?

Já pensou em parar e olhar seu pulso, sentir sua respiração?

Há quanto tempo você não sente fome, sede, desejo, amor?

Talvez você almoce e jante, mas está preso àquela rotina de décadas; talvez você deseje e chegue em casa querendo encontrar seu amor e amá-lo intensamente, e o faça, mas está prisioneiro daquilo que sempre fez, dia após dia, anos a fio.

Talvez sejamos todos como o cavaleiro sem cabeça, esperando que alguém nos chame a atenção e diga: -Ei! Você já não vive!

Mas será que você realmente quer ouvir esta triste realidade?

Vamos combinar assim, você não me avisa nem eu te aviso, e continuaremos a andar no meio da multidão, trabalhando, estudando, comendo, bebendo, desejando, amando, perdidos em nós mesmos, como os vivos...

Se é que os vivos existem.

I

O Barão

O observador mais sagaz, o olho mais clínico, jamais perceberia. Muitos são aqueles que parecem ser e não são; deveriam ter ido, mas não foram; morreram, mas não deitaram.

Carlos trabalha dia após dia numa rotina intensa, mas há meses sofreu um enfarto fulminante, e na correria do dia a dia não se deu conta de que seu tempo aqui terminou;

Rita foi vítima de um choque elétrico muito intenso, mas seus afazeres estressantes a impediram de pensar a respeito;

André é um motoboy que teve seu pescoço cortado por uma linha com cerol... Continua na sua lida diária;

Jorge tem uma bala alojada no peito. Há muito que seu coração não bate.

Sabe essa pessoa que está ao seu lado? Finja esbarrar nela sem querer e veja se a mesma tem pulso; veja se já não estão dilatadas suas pupilas.

Toque-se a si mesmo... E descubra.

Há quase noventa anos, em São Paulo, Francisco Borges de Sá, Barão de Anhangabaú, rico fazendeiro, dono de terras e mais terras no interior do estado de São Paulo, e de uma belíssima mansão da então nova e pouco habitada Avenida paulista, que perdera tudo o que tinha com a queda do café, morreu num colapso cardíaco com a notícia de que devia mais do que valia suas fazendas e casas com todos os seus bens.

Jamais poderia pagar suas dívidas, seu café apodrecia nas docas do porto, e seus agregados queriam seu pescoço.

Nunca foi encontrado pela família. Passou direto pela morte. Saiu mundo afora pedindo socorro a quem pudesse salvar seu patrimônio.

A família se mudou, gerações se passaram. Netos, bisnetos, trisnetos, foram para longe. Tais descendentes não fazem idéia de quem fora o Barão.

Mas um dia, cansado de pedir recursos, sem se dar conta de que, por décadas, não dormiu, não comeu, não bebeu, não amou; e que vieram os paralelepípedos, os trilhos de bondes, foram-se os bondes, veio o asfalto cobrindo os trilhos dos bondes, vieram pontes, viadutos, rodovias, máquinas possantes começaram a percorrer as ruas, prédios brotaram do chão como resultado de uma grande semeadura de gente, a população multiplicou-se, as casas agora estavam umas por cimas das outras até a altura das nuvens, a comida passou a vir em caixas e latas, as mulheres não tinham mais roupas e os homens perderam a classe.

Aposentados foram os vestidos compridos, os babados, as flores nas lapelas, chapéus, bengalas e castões.

Esquecidos foram o cavalheirismo e a cordialidade, e a língua falada também mudou.

O Barão não mais sabia falar com as pessoas, suas roupas se gastaram, e ele se deu conta de que as décadas em que se perdeu na busca de um socorro que nunca veio fizeram dele um trapo ambulante.

II

O Museu

Estava então de volta à sua casa. E realmente encontrou-a.

Estava de outra cor, mais viva, as paredes novas. Como?

Carros à volta, num estacionamento onde antes era seu lindo jardim.

Foi subindo a escada. Foi barrado por um grandalhão de terno preto: - Fora daqui, mendigo sujo!!!

Foi a primeira vez que o Barão ouviu isso.

Ele que fora nos áureos tempos do café um ícone da elegância e do bem trato.

Foi a primeira vez que realmente, em décadas vagando pelo mundo, olhou-se de verdade.

Estava em petição de miséria.

Uma coisa estranha foi lhe sucedendo, um frio intenso que lhe saia pela boca, junto com um gosto amargo na língua. Uma tremedeira que lhe tomava todo o corpo, uma fúria incontrolável, desejo de sangue, ódio animal.

Quando esses cavaleiros sem cabeça descobrem-se perdidos no tempo e se dão conta de que são mortos-vivos esquecidos em si mesmos, descobrem também que não são mais como eram quando vivos e que agora podem pegar grandalhões de preto e abrir-lhes ao meio com uma das mãos, além de perceberem que há muito não comiam, e que a carne humana lhes fazem bem, que a cada ser humano devorado revigoram-lhes as forças e o entendimento.

Tudo o que aquele grandalhão sabia, agora estava na mente do Barão, e então ele entendeu que seu casarão agora era o Museu de São Paulo, e havia um busto seu em bronze bem no alto da escadaria de entrada.

As pessoas se aglomeraram a um canto, assustadas, enquanto o Barão entrava pelas portas de sua casa, agora museu. Ele entendeu que não era mais sua casa, ele entendeu que o tempo passou, ele entendeu que morrera, que todos os seus se foram.

Revoltado, começou a destruir tudo o que encontrava pela frente, indo em busca de um lugar para si, sua antiga biblioteca, que agora era a sala onde estavam expostos objetos de sua época.

Ali se trancou, ou melhor, ao passar, a porta se fechou atrás de si com o comando de sua mente.

Descobriu mais uma habilidade, logo foi percebendo que possuía esses poderes paranormais, e a festa começou.

Iniciou um sobe e desce de objetos e móveis por todo o museu e a sua risada era como um eco de muitas vozes.

As pessoas que estavam dentro ficaram presas, pois as portas se trancaram. As pessoas de fora correram para trás das viaturas que haviam chegado. - Atenção! Saia com as mãos para o alto! O prédio está cercado! – falava ao megafone o sargento, um segundo antes das oito viaturas serem viradas de rodas para o ar.

III

O Barão e o Museu

O Barão apareceu na janela de sua antiga biblioteca e com as mãos estendidas simulava agarrar o pescoço do sargento e estrangulá-lo, o que realmente sucedeu ao combatente, que foi ficando roxo, arregalando os olhos, e tombou ali mesmo.

Rajadas de metralhadoras, bombas de gás, gritos, desespero. O céu se fechou de negras nuvens e relâmpagos cortavam-no de alto a baixo.

Flashes dos fotógrafos dos principais jornais, câmeras, repórteres, e todos constatavam apavorados que o Barão não aparecia nas fotos e filmagens.

Começou um caos desesperador, pessoas gritando:

- Fantasma!!!! Fantasma!!!! Uma espécie de telefone sem fio começou e argumentos e sugestões levaram todos a entender que se tratava do desaparecido Barão.

Chamaram padres, pastores, exorcistas, bruxos;

Eram rezas, orações, invocações, encantamentos. De nada servia.

Os fenômenos naturais se descontrolaram, a Lua e o Sol eram visíveis e brilhantes, e o céu hora se tingia de vermelho, hora de violeta, hora ficava escuro como a noite e cheio de estrelas, mas ali continuava o Sol.

Os pássaros voavam de todos os lados assustados, cães latiam, as pessoas desesperadas gritavam, e de repente a saraiva caiu como chuva e casas e carros se incendiaram, pessoas foram queimadas vivas, as placas tectônicas se deslocavam fazendo com que em meio a terremotos que jamais São Paulo imaginou que veria, mais gente sofresse, sendo engolida pelo chão. O sangue tomava conta das ruas, e as lojas eram saqueadas por oportunistas que se aproveitando do caos, levava o que podia.

No meio do tumulto alguém teve a idéia de pedir que jogassem a chave da casa ao Barão; que depositassem as armas no chão e dissessem ao megafone que a casa estava lhe sendo entregue de volta; e que ele era bem-vindo ao seu lar. E assim foi feito.

Um policial pegou o megafone que o sargento havia derrubado ao morrer asfixiado, o curador do museu correu corajosamente para perto da porta e tirou as chaves do bolso do que sobrou do vigia devorado pelo morto e ali a depositou, à porta de entrada.

Todos colocaram suas armas no chão e levantaram as mãos, enquanto o soldado esperou que o curador voltasse e lhe entregou o megafone: - Senhor Barão, aí estão as chaves de sua casa, estávamos apenas cuidando e conservando-a para quando voltasse. Tivemos muito zelo por ela e agora lhe entregamos lhe dando as boas vindas ao senhor.

O Barão se trancou dentro do museu e tudo se aquietou. O céu voltou ao normal, e fez-se um silêncio que dava pra ouvir uma folha caindo.

IV

Paz?

Dias se passaram enquanto a área ficou isolada.

Nenhuma manifestação do fantasma.

Alguns corajosos se aproximaram do casarão, tentaram abrir as portas, nada.

Machados, marretas. Abriram.

Tudo era destruição lá dentro. Vasculharam todos os cômodos e não encontraram o Barão.

Mas havia cinco pessoas, as quais o Barão havia trancado ali. Estavam bem, não quiseram atendimento médico, nada. Relutaram e insistiram tanto que ficaram sem atendimento mesmo.

Saíram andando e bem.

Mas havia algo em seus olhos, não sei, um olhar frio... Seus semblantes eram caóticos... Será que...

Bobagem, quem nesta cidade não tem olhar frio e semblante caótico?

Entraram na multidão. Se vivos, se mortos, quem sabe, não sabemos nem de nós mesmos, não é?

V

Talvez, Paz!

E o Barão? Nada! Nem sinal.Nem um vestígio.

Alguns dias de vistorias e depoimentos, reformas e restaurações e o museu foi reaberto; mas o busto do Barão de Piratininga foi transportado para o meio do saguão principal, com uma nova pintura, placa de bronze, e uns dizeres: “Francisco Borges de Sá, Barão de Anhangabaú, grande cidadão brasileiro, pioneiro de desenvolvimento de São Paulo, dono desta casa”.

Talvez isso tenha feito com que o Barão não voltasse mais. Talvez ele definitivamente tenha descansado.

Mas os vigias, que passam as noites em claro, percorrendo os corredores do museu, até hoje contam histórias de acontecimentos estranhos, passos na biblioteca, que para acalmar um pouco mais os ânimos do fantasma voltou a ser biblioteca, onde de vez em quando acha-se um livro fora do lugar.

E muitos funcionários juram ter visto os olhos do busto de bronze os seguirem.

Se é verdade ou mentira, quem pode afirmar?

Qual será o mundo dos vivos, o deles ou o nosso?

Onde há uma resposta?

Encontrando ou não, termino este relato dizendo a você, caro leitor...

QUE DESCANCE EM PAZ!

Danilo Macedo Marques
Enviado por Danilo Macedo Marques em 13/11/2006
Reeditado em 23/03/2010
Código do texto: T289936
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